sábado, 24 de dezembro de 2011

O tempo não destroi aquilo que ele mesmo ajudou a construir.

O rio turbulento é apenas o motivo para que a ponte que o supera seja mais forte e mais bela. 

Feliz natal.

Deu na Folha

Atriz de "A Doce Vida" pede dinheiro para sobreviver


DA FRANCE PRESSE, EM ROMA
A atriz sueca Anita Ekberg, ícone do cinema e que em setembro completou 80 anos, empobreceu a ponto de ter que pedir ajuda financeira à fundação do célebre cineasta italiano Federico Fellini, informou nesta sexta-feira o jornal "La Stampa", da cidade de Turim. 

"Não é elegante dizê-lo, mas a senhora Ekberg sofre de uma verdadeira falta de liquidez", disse ao jornal Massimo Morais, um administrador nomeado pela Justiça e que pediu em nome da atriz os subsídios de emergência da Fundação Fellini.
"A fundação ainda não respondeu, mas eu conto com a solidariedade dos benfeitores, que queiram ajudar, mesmo modestamente, uma grande atriz que merece", disse. 

A atriz marcou a história do cinema com uma lendária sequência no filme "A Doce Vida" (dirigido por Fellini em 1960) rodado junto à Fontana de Trevi e na qual Ekberg atua junto a Marcello Mastroianni. Ekberg agora vive em um asilo perto de Roma.

Divulgação
A atriz Anita Ekberg em cena do fime "A Doce Vida", de 1960
A atriz Anita Ekberg em cena do fime "A Doce Vida", de 1960  
Limitada a uma cadeira de rodas desde que quebrou o fêmur em uma queda, Ekberg teve que deixar sua casa depois de um incêndio provocado por ladrões. Além de alguns vizinhos e dos serviços sociais, a diva recebe poucas visitas e passa o tempo escrevendo suas memória. 

Ao celebrar seus 80 anos, em setembro, a atriz admitiu em uma entrevista que se sentia "um pouco sozinha". "Os dias são infinitamente longos", disse ao jornal "Il Corriere della Sera".

Alberany, o abominável, recebe a ajuda de uma mosca e consegue escapar de juiz insensível. (O leitor precisará ler o capítulo anterior para compreender este capítulo))

Alberany transforma sua prisão em formidável procissão de infames perdulários

Ora, metido eu naquela infecta masmorra pensava em como dela me livrar. Enquanto isso, meu amigo, homem de esperteza salafrária, buscava amenizar ali os nossos dias. Utilizando-se de toda a sua astúcia dirigiu-se ao carcereiro, sujeito de modesta inteligência. Como nos haviam permitido ficar com nossos andrajos de falsos eremitas ele vestiu aquela lamentável roupagem, pegou do cajado e assim falou ao pobre idiota:
- Ó bondoso servidor do Altíssimo. Eis que chegou a hora de honrar o divino.

O carcereiro estranhou o manhoso procedimento. Mas veio ver do que se falava e o tratante assim o enganou: - Ó amável ser que povoa este antro com sabedoria e luz. Preciso falar-vos em nome de Deus.

- O que quereis de mim, prisioneiro? - o pobre homem se acautelava. Mas o malandrim que o assediava era calejado na arte de engabelar. Afirmou-se um eremita a serviço do Papa e preso ali por equívoco. E, respondendo à pergunta do carcereiro, disse:
- Nada desejo, a não ser a salvação de vossa alma. E que presteis serviços aos anjos e aos santos - o pobre homem era um temente. E ao ouvir tais palavras arregalou os olhos e perguntou o que seriam esses tais serviços e como poderia prestá-los. O magano não se fez de rogado e disse:
-  Saibais que nos últimos tempos os santos e os ajnos deram-se a beber vinhos e outras bebidas espirituosas, quero dizer destiladas, para ampliar seus altíssimos pensamentos. E assim, sendo eu e meu companheiro homens rezadores e dados a transes místicos, recebemos dos anjos e dos santos incumbência de adquirir tais artifícios e com tais nos aprofundarmos no contato com as entidades superiores. E trazei-me também pão e leite, que nem só de espírito vivem os santos.

Meu amigo tinha um jeito imponente de falar e isso conveio a seus malsinados intentos. O miserável carcereiro atirou-se de joelhos aos pés daquele sequaz da patifaria orando as pobres coisas que sabia orar. Logo saiu e retornou, vergado ao peso de grande carga de vinhos, bebidas destiladas e os alimentos pedidos. Não é preciso dizer que com isso empenhou sau paupérrimo salário. 

A masmora, assim, transformou-se numa festa. Meu amigo e eu, dizendo palavras sem sentido e inventadas, simulávamos transe sob o olhar apatetado do carcereiro. Depois íamos descansar. Porém, passavam-se os dias e coisas aconteciam. Como a vinda novos presos, homens deploráveis, tipos iguais a nós, perniciosos. Logo tínhamos ali um magote de malfazejos da pior espécie. Espertamente começamos a cantar hinos e louvores e logo tínhamos uma seita de safados a explorar o mísero carcereiro.

Mas, ai, o tempo passava e eu sabia que a mão da justiça cairia sobre mim. Eis então que aconteceu algo inesperado. Uma mosca apareceu na nossa cela e, por artes não sei do quê, seu zumbido a mim se assemelhou a uma voz e ela me dizia que poderia ajudar-me. Estupefato por estar falando com um animal, e animal tão horrendo,contei-lhe a minha desdita e ela assegurou que poderia efetivamente livrar-me da prisão. 

Explicou-me com um bater de asas que os prisioneiros dali eram sempre julgados por dois juízes: um, probo e justo e esse seria bom para mim, pois, quando lhe explicasse que era apenas um patife espertalhão, não um parricida, saberia dar-me pena mais modesta; quanto ao outro, era homem da mão pesada, dado a fraudar processos, tomar para si as coisas dos pobres e das viúvas e aplicar penas duríssimas ao mais pequeno furto, caso o apenado nada lhe desse em troca. E contou-me tudo a respeito do funesto elemento, dizendo que, na audiência, eu deveria insinuar ter conhecimento da vida privada do magistrado que, em público, aparecia como homem honrado. De posse de tais conhecimentos preparei-me para enfrentá-lo.

Veio afinal o dia do interrogatório. Eu e meu detestável amigo fomos levados à presença do juiz. Era justamente o molesto magistrado, que assim tratou-me: - Ah, temos aqui dois mouros, heim? Sois mouros, pois não? Tendes todos os jeitos de mouros...

Senti que estava às voltas com um pergosíssimo embusteiro, talvez pior do que eu ou pelo menos igual a mim, só que do lado oposto. Defendi-me. Ele contra-atacou: - Então, se não sois mouros sois certamente marranos, solertes e febris em vossos intentos - garanti que não, mas ele insistiu: - Sois sim, sois feiticeiros e, vós, um parricida. 

Nisso, vi a mosca voejando ao retor de minha cabeça, orientando-me a reagir. Foi o que fiz. Pedi a palavra, o juiz deu-ma e contra ele investi, blandicioso: - Ó judicioso magistrado, homem de benquerenças com a Justiça! Sei que sois altaneiro e sábio em vossas decisões! Sei, por exemplo, que respeitais vossas criadas, sem delas abusar, e sustentais os pobres e as viúvas sem de suas bocas retirar o pão. E que em vossas terras todos ganham o almoço e janta cantando no cultivo das videiras, e que tendes apenas uma mulher e digníssima esposa. E somente com ela tendes filhos, sem jamais, no exercício da magistratura, haver claudicado em favor dos fortes e dos opressores. E acima de tudo, sois leal a El Rey, sem se apoderar dos impostos a ele devidos.

Eu sabia pela mosca que o juiz era exatamente o contrário de tudo aquilo. E ele, sentindo-se atacado perante a corte que presidia, à frente do capitão da guarda, dos guardas e do povo em geral que a tudo assistia, percebeu a minha insinuação e a minha manha. Notei pelo seu olhar que o havia encurralado. 

Ele pediu o processo, leu-o e permitiu que me defendesse. Especialmente da acusação de parricídio. Minha defesa foi altaneira e forte e afinal, tendo o juiz subjugado, fiz meu ataque final. Reafirmei que éramos, eu e meu amigo, homens santos a serviço do Papa em pregação pela Cruzada, a última, a que libertaria a Terra Santa das mãos dos mouros, e mais: queria ser libertado juntamente com a súcia que ficara na masmorra, pois eram todos homens de rezas e de expiações e com eles iria continuar aquela santa luta. 

O juiz, apavorado, declarou: - Ó homens de lei e de justiça forte. Fostes, vós e vossos seguidores lídimos, perseguidos por equívoco judicial e por infame e turbulenta multidão, avara de justiça. Estais livres para o exercício do vosso mister. Ide e pregai a palavra da salvação e da bondade. E para que tenhais de mim a certeza de magistratura altíssima, dou-vos estas moedas de ouro a fim de contribuir com a vossa e augusta causa! Eia!


Isto feito, entregou-me o dinheiro, libertou-me das cadeias, a mim e ao salafrário que me acompanhava, e determinou imediata soltura dos infames lá na masmora. Saímos todos pela cidade, uma malta de maus praticantes. Notícia espalhou-se pela cidade: um grupo de santos homens havia sido libertado por bondoso juiz e agora pedia esmolas para libertar a Terra Santa; seria a última Cruzada, depois de centenas de anos da última surtida daquela virtuosa guerra.


Pessoas boas e tolas nos paravam nas ruas para nos encher os bolsos e os sacos. Assim, ao final do dia já tinhamos uma bela fortuna. Dirigimo-nos a uma casa de tavolagem e ali, sob o argumento de saudação aos santos e aos anjos, que nos últimos tempos haviam se dedicado à beberagem, como meu amigo sempre anunciava, promovemos grande esbórnia. E chegando entre nós um velho em andrajos, ele sim, um verdadeiro eremita, acusou-nos de falsários e mandriões. E já intentava levantar o povo em protesto, quando o silenciamos com vigoroso golpe na cabeça.
(Continua)

 
Presépio

--- Walter Medeiros

 Vi trinta Presépios de gênios,
 Onde a luz do mundo se confunde
 Com a beleza do Menino Jesus,
 De manjedoura tão rústica,
 Os visitantes atentos e curiosos,
 Os anjos espreitando cada hora,
 A apreensão de Nossa Senhora,
 São José com seu cajado forte,
 Os animais de olhos e focinhos,
 E a paisagem de Jerusalém.

 Vi Nossa Senhora em oração
 Sentindo o cheiro das folhas,
 Imaginando o destino do Filho,
 E os visitantes de todo mundo,
 Amigos, parentes e até reis,
 Cada um com suas intenções,
 E a notícia, que ia se espalhando,
 De que ao mundo estava chegando
 Para a terra o Messias Salvador
 Num Manto branco de paz.

 Vi o silêncio que tudo rondava
 Naquela noite do mês de dezembro,
 Com aquelas expressões de dúvida,
 Peregrinos levados pela fé
 Contemplando com firmeza o bebê
 Naquele ambiente de beleza,
 Apesar da pobreza que se vê,
 Rodeado de uma santa nobreza
 Superior a qualquer realeza
 Que os homens inda iam conhecer.

 Vi a glória da confraternização,
 Músicas saudando o Filho de Deus,
 O ar tomado por divina canção
 E um pequeno pássaro no telhado,
 Auréolas e mais auréolas belas
 Fazendo do estábulo um santuário,
 E daquela cobertura um altar,
 Conectado com a luz do Céu
 Para anunciar a chegada da vida
 Daquele que seria a maior paixão.

 Vi as essências daquele Mistério
 Que preenchia tudo de beleza,
 Realçando cada grão da natureza
 Nas mãos postas e olhar bondoso,
 Fazendo da pedra o berço do Divino,
 Parecendo frágil e pequenino,
 Como que num aplauso geral
 Pelas mãos sempre tão postas
 De tanto júbilo então sentido,
 Como que um encanto esclarecido.

 Vi as flores e folhas perfumadas,
 Borboletas rondando o lugar,
 O destino se formando devagar,
 O menino se mexendo e sentindo,
 O Espírito Santo com seu brilho,
 E o fogo aceso em cada canto,
 Uns presentes de longe lhe chegando,
 Por Belchior, Gaspar e Baltazar,
 A estrela no alto a orientar
 O caminho para o novo anunciado.

 Vi o rio banhando aquela terra,
 Jesus no colo da amada Mãe,
 O Pai pensativo pela relva,
 Mas uma coisa faltou fazerem,
 Não vi em nenhum quadro do mundo
 O sorriso de Nossa Senhora,
 Pois por mais tensa fosse a hora
 A Mãe regeu uma alegria
 Surgida justo naquele dia
 Em que o seu Filho ali nasceu.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces

Mulher afegã
http://aliastu.blogspot.com/2008_03_01_archive.html

Primeira de uma série de histórias de Alberany, o abominável, a ser narradas neste folhetim

De como Alberany fingiu-se de eremita e acabou em ignóbil masmorra

Ó vós, que vos abalançais a ler este coranto, digo-vos que sou Alberany, o abominável, e que encontro-me em lamentável situação, atirado a cárcere de masmorra hedionda e vil. A princípio contar-vos-ei como vim aqui parar, hoje dormindo sobre a palha e comendo códeas de pão dormido, ao lado de infeliz farsante que cometeu o erro de me acompanhar em meus intentos e embustes. Estamos no ano da graça de 1712 e nesta quadra se passa minha existência malsã.
 Eis o que digo e o que aconteceu: encontrava-me eu percorrendo aldeias e vilarejos onde exercia meu nefando ofício de enganar e surrupiar de pessoas crédulas até mesmo a roupa do corpo, mediante anúncios de tragédias e outros males, e me apresentava como curandeiro dotado de grandes poderes. Se me dessem o que pedia nada de mal lhes aconteceria. 

http://cinerama.blogs.sapo.pt/322811.html
Neste périplo encontrei, caído de bêbado, o indivíduo já citado. Dormia ele num estábulo onde eu também vim a me abrigar. Quando acordou conversamos e percebi que ali estava um ordinário igual a mim. Combinamos que ele chegaria antecipadamente a um povoado, fazendo-se passar por coxo. Pediria esmolas para ir a Roma em busca do Papa, que certamente o curaria. Nesse momento eu chegaria e, fazendo rezas fortes, o faria curado, atraindo sobre nós os favores do populacho. 

Destarte fizemos muito dinheiro e partimos então para grande e ilustre cidade, onde iríamos explorar o povo nos arrabaldes. Assim pensamos e assim fizemos. Bom dinheiro entrou e o gastamos todo em casas de tavolagem. Então rumamos para iniciativas mais ousadas. Disse eu ao detestável comparsa: 


- Vamos fazer pregações em púlpitos. Seremos dois eremitas que recolhem recursos para uma nova e definitiva Cruzada que libertará a Terra Santa do jugo dos infiéis. Conheço o latim e...

- Sabeis latim? - quis ele saber.


- Sim - respondi.

- E o que sabeis de latim?


Respondi que conhecia duas palavras: "orater frater" e que isso, no que se resumia meu grande saber, seria o suficiente para dosar as multidões aos nossos intentos. 

- O que significa tal coisa? - questionou.


- Não sei. Mas sei que quando os padres dizem isso nas missas todos se curvam. E um rapazinho, munido de uma vara que tem em uma das pontas uma sacola recolhe dinheiro e muito. Até mesmo moedas de ouro.


Ele então sugeriu que às palavras em latim ajuntássemos esta outra: "catecúmeno". Nem eu nem ele sabíamos o que significava, mas o perverso aduziu: - Certa feita quando eu, praticando diatribes no adro de uma igreja promovia grande confusão, fui de tal palavra acusado pelo padre. Portanto,se sou um catecúmeno, e sei bem o que sou, catecúmeno deve ser algo mui lamentável e péssimo. 


Pusemos em andamento o plano. Vestimo-nos de andrajos, munimo-nos de cajados e fomos para o centro da cidade. Ali havia duas grandes praças e nas praças, que distavam uma da outra muitas braças, havia dois púlpitos em pedra, de onde os cidadãos podiam se manifestar, gritar e reivindicar, muitas vezes recebendo em troco ovos podres e repolhos na cara. 


Caminhamos cada um para uma praça e começamos nossa solerte prédica. Deu-se então o meu exórdio. Subindo ao púlpito ergui o cajado e elevei a voz. Berrei: - Orater frater, catecúmenos! - ninguém me deu atenção. Repeti: - Orater frater, catecúmenos! - e mais uma vez: - Orater frater, catecúmenos!

A multidão continuava a passar, ignorando-me. De nada adiantava minha sórdida surtida. Até que vi um homem que parecia se encaminhar para mim. Pelo menos olhava para mim e disso não havia dúvida. Era um tipo alto e fornido, envergando roupas de certo luxo e um portentoso tricorne. Entendi que estaria ali a minha vítima primeira.

Encarei o tipo e insisti: - Orater frater, catecúmeno! - Orater frater, catecúmeno! - o homem aproximou-se e eu lhe disse:   -Orater frater, catecúmeno! Orater frater! Ajoelhai-vos e ouvi a palavra de um austero eremita que o deseja ao lado da luta contra os mouros!


Tomado de surpresa o homem reagiu quando gritei: - Orater frater, maldito! Orater frater, farsante!  já fora de mim, pois percebia que meu plano não estava dando certo. Possuído de grande furor passei a acusar o homem de torpe, de vil e de avaro; de mesquinho, de ímprobo e de corrupto;de sonegador e retentor do dízimo na luta contra os infiéis. 


Grande erro cometi. O homem era padre que gostava de livrar-se da sotaina e envergar trajes civis. Para completar havia bebido um pouco e atacou-me a golpes de sólida bengala de cedro. Reagiu assim quando eu dizia ser "enviado do Papa em nobre missão de postular esmolas santas para a guerra contra os mouros".


Munido de tal arma ele saltou sobre o púlpito e vibrou-me formidável golpe no crânio, pondo-me abaixo. E gritava: - Ataquem o perjuro! Ataquem o herege! - foi o suficiente. Um grupo de desocupados investiu contra mim e me pôs em fuga sob uma chuva de golpes e pedradas.

Enquanto corria ouvia as invectivas: - Atacai o monstro! Atacai o malvado! Matai ao assassino! Atacai-o e matai-o! É um lúbrico e um vilão e matou seu próprio pai! Parricida! Parricida! - as coisas estavam fora de controle. Em poucos minutos boato daninho havia se espalhado e agora eu era um parricida. Já me via pendurado à forca. Corri em busca do meu amigo. 

Este não tivera melhor sorte. Insistindo com um mendigo que deveria dar-lhe todo o seu dinheiro para as Cruzadas, enfureceu-se quando este o agrediu com gesto chulo.  Ato contínuo atirou-se à goela do patife e tentava meter as mãos em seus bolsos para se apoderar de tudo o que pudesse.



O miserável mendigo, vendo-se a ponto de perder suas parcas moedas valeu-se do povo: - Atacai-o, ó meus! Atacai-o! Eis que tenta roubar os vinténs de um pobre e todo pobre é um santo, como dizem as Escrituras! - as pessoas então atentaram àquela mesquinha contenda e moeram de pau o meu amigo.


Corremos então de uma praça à outra. Ele de lá e eu de cá, e nos encontramos no meio do caminho. A gendarmeria fazia a sua ronda e fomos capturados. E agora estamos aqui, nesta infecta prisão. Creio que em breve seremos levados ao juiz.
(Continua)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Wanda Jackson - Let's Have a Party

Wanda Jackson - Thunder On The Mountain

Capa do Correio: síntese perfeita da guerra no trânsito. O jornalismo impresso, com seu potencial de enunciação, que é processo, ação que envolve competência declaratória e habilidade de empatia, garante ao impresso seu estatuto de artefato comunicacional pleno de possibilidades interpretativas e representativas.

As mãos do mestre


Conheci, isso há muitos anos, um titereteiro chamado Zé Relampo - não sei se ainda é vivo. Titereteiro é o artista popular que trata com títeres, ou, mais claramente,
é o brincador de joão-redondo. Pois bem,
Zé Relampo, que me foi apresentado pelo
professor e folclorista Deífilo Gurgel,
era um grande mestre na arte do teatro de bonecos.

Acompanhado por um fotógrafo, isso no já distante
ano de 1974, cheguei à casinha de Zé Relampo, num
bairro periférico de Natal, sequer me lembro aonde.
Era manhã. A matéria abordaria exatamente a
criatividade da arte dos bonecos, sua função social,
sua crítica ferina aos poderosos, a representação
emblemática de cada um dos bonecos. A matéria foi publicada no O Poti.

Por trás da empenada Zé Relampo ia levantando seus
tipos para a ação do fotógrafo, enquanto eu anotava
os aspectos mais representativos da encenação.
Fiz a matéria, redigi o texto. O tempo passou e perdi Relampo de vista.

Anos, muitos anos depois, reencontrei Zé Relampo.
Mais velho, quem sabe mais pobre, quem sabe mais artista, uma vez que o sofrimento atiça,
aguça e aumenta a sensibilidade. Estava em sérias
dificuldades financeiras, há tempos sem fazer
uma brincadeira para ganhar dinheiro.

Explica-se: ele trabalhava muito para entidades
oficiais, ligadas à cultura ou ao ensino. E há tempos
não havia um só convite. Dei um jeito de mobilizar
alguns amigos e conseguimos o dinheirinho que
ele precisava. Cerca de 15 dias depois, eis que me
aparece o mestre titereteiro. E vinha com um presente:
esculpida em madeira própria para a criação de
personagens de joão-redondo a cabeça de um negro,
bem ao estilo popular, ao mesmo tempo grosseiro e expressivo.

Foram as mãos humildes do mestre, agradecendo
pela pequena ajuda. Ainda hoje esse negro está comigo,
em meu escritório, pertinho do computador.
Mas Zé Relampo nunca mais. Sumiu, como os
relâmpagos, que desaparecem depois que a chuva passa.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Bens a penhora

Quando o oficial de justiça chegou àquela casa para executar mandado de bens a penhora encontrou tristezas. O devedor havia morrido na noite anterior e seu corpo jazia no caixão, centro da sala. Cumpridor, o zeloso funcionário não recuou: apresentou-se à viúva e exigiu a entrega de um bem pela dívida de dois mil reais. Em desespero a mulher disse que não tinha o que dar, lembrando que se o marido devia ao Estado era exatamente por não ter dinheiro.

Mas o oficial de justiça não se deu por vencido. Queria levar qualquer coisa, mas tudo que pedia a mulher dizia que era coisa essencial à família: geladeira, rádio, toca-discos, TV, camas, roupas. Nisso, o homem, para não sair sem levar nada, pediu o caixão onde estava o morto. Afinal, ninguém ali precisaria daquele utensílio. Pelo menos era o que se supunha.

Aí, um sobrinho atalhou: pega o caixão mas tem de levar o morto junto. Negócio sério: leva o caixão ganha o defunto como bônus. O oficial de justiça recusou, dizendo que aquilo era transferência de ônus ao Estado, de acordo com a lei nº 899. 88678777.88789,78787999.9990.998.776353444.6968688.9898900?99, uma das mais severas e respeitáveis leis do mundo. Mas o sobrinho insistia: pega o bem, paga bem. Pagar bem, no caso, representava levar o corpo, claro. Formou-se grande alarido e a família gritava: - Le-va! Le-va! Le-va!

Nisso, um vizinho se aproximou da confusão e cochichou alguma coisa no ouvido do oficial de justiça. Em menos de um minuto ele pôs o caixão nas costas e já ia fazer carreira com defunto e tudo, quando o vizinho disse a um dos familiares do morto: - Ele vai ficar rico - e começou a rir. Perguntaram por que ria e respondeu que havia indicado ao funcionário da justiça o endereço de um sujeito que praticava vudu e pagava bem por um corpo em bom estado.

Foi o suficiente para que a família, aos gritos, partisse atrás do oficial de justiça que foi agarrado, já na esquina, chamando um táxi. Ele soltou o caixão e atracou-se com a viúva que gritava: - Roubando morto dos outros, rapaz?!! Está louco?!! Onde já se viu isso?!!

O oficial reagia: - O morto é meu! Veio de bônus! Além disso, ele vai ser um bom zumbi e pode até fazer carreira em filmes de terror. Dizem que zumbi ganha muito bem, viu? Não quer um bom futuro para o seu marido que lutou tanto na vida? Deixe ele comigo. Depois, pode assistir aos filmes dele. E de graça, que família, nesses casos, tem a preferência!

Enquanto isso os filhos e o sobrinho do falecido corriam a recolocá-lo no caixão. Acontece que o homem do vudu estava por perto. Ele sabia de todas as mortes da cidade e sempre acorria aos enterros querendo negociar com a família. Por bons preços, óbvio. Mas como havia chegado atrasado e aquele escândalo já estava parando o trânsito, não seria bom para os negócios falar em dinheiro, dado o alto nível de exaltação da mulher e dos filhos, além da presença de testemunhas - muitas, por sinal.

Resolveu então agir como se fosse um bondoso homem de religião. Aos gritos de "acalmai-vos, ó meus filhos!", aproximou-se e disse que levaria o corpo para "um bom lugar". Todos caíram na emboscada e acataram brandamente aquele tratante. Quando ele saiu, entretanto, recomeçou a luta da mulher contra o oficial de justiça. Ela e o funcionário, refeitos do logro e percebendo que haviam sido enganados passaram a berrar: - Quero meu morto! Você me fez perder o meu morto!

Distanciando-se da briga, o homem do vudu afinal chegou à sua casa e, num quarto escuro, largou o corpo e o caixão. O problema é que o homem morto na verdade estava em transe cataléptico, voltando a si quando o voduísta entrava no quarto. Foi um susto enorme para os dois: o homem por saber-se tido como morto, o voduísta por encontrar seu zumbi pronto antes mesmo do cerimonial. 

Cada um correu para um lado. O sujeito do vudu perdeu-se na noite, o homem foi para casa. A família, ali, lamentava o prejuízo: - Já pensou, perdemos um bom lucro. E ainda tinha os filmes de terror, já pensou?

O homem não entendia nada. Estava escondido ao lado da casa e esperava um bom momento para entrar. Sem entender as coisas ficou ouvindo tudo. Quando percebeu que havia sido vítima de uma negociata resolveu se vingar: deixou os olhos entreabertos, estirou os braços e entrou em casa como um sonâmbulo de filme classe B. Nesse momento faltou luz. Alguém chegou com uma vela e viu a cena: o sujeito andando aos tropeções, olhar envidrado.

Alguém foi chamar a viúva: - Mulher, seu marido enviveceu! Corre!

A mulher veio correndo. Quando viu o marido teve um ataque a morreu ali mesmo. Aí volta o homem do vudu e diz: - Agora nós: vamos fazer negócio?
Pequeno até fisicamente

A morte do minúsculo Kim Jong-il funcionou para mim como a metáfora viva do poderoso abominável. Pequeno até fisicamente, aquele ser humano encarnava o ridículo trágico do poder; aquele poder que em seu exercício, pela mistificação, permite a transformação do poderoso em mito.
http://www.google.com.br/imgres?q=kim+jong+il+coreia+generais+fotos

Achava esquisito quando aquela figurinha aparecia. Como se fosse um duende amendoado, cercado de generais bem mais velhos que ele, Kim dava adeusinhos a multidões previamente adestradas à sua adoração. Curvados ao peso de uma miríade de medalhas apensas em suas roupas os generais rebrilhavam. O povo aplaudia.

Pelo adestramento, as pessoas pareciam sinceramente ligadas àquele que regia suas vidas, pois o sistema político da Coreia do Norte é de um orwellianismo impressionante, demencial. E o povo era ensinado a amar aquele Grande Irmão.

Nos últimos dias têm passado matérias na TV, como decorrência da morte do ditador. Já observou como marcham as tropas? Ficam entre o ridículo e o grotesto. A marcialidade robotizada lembra-me bonequinhos mecânicos. Para mim isso é a representação de como aquelas mentes funcionam: as coisas são o que o Partido diz que são.

Na verdade quero deplorar o Poder como instância de auto-preservação, posse do poderoso. No Ocidente temos uma manifestação de potestade diversa, mas habilidosa: pelo veio da ideologia vivida sem imposição aparente as pessoas seguem um mesmo caudal e cumprem normas que vão do consumismo à idolatria a um jogador de futebol. E isso é muito político. Quer dizer, de alguma forma, temos os nossos kins...