sábado, 12 de dezembro de 2015

Pequena história de uma benzedeira



A flor que espanta a tristeza numa reza




Iwska Isadora*


Na maioria das vezes eu ficava lá durante sessenta minutos. Eu sabia que era bem mais que uma hora, embora não fosse isso que os adultos me diziam. Não importava a quantidade de “Ninha, é a mesma coisa”, eu tinha certeza que teria mais tempo para observá-la daquele banquinho de madeira descascado de azul. Era Dnele que crianças sentavam quando passavam do portão; mas se, por sorte, nenhuma gente grande tivesse tomado conta da cadeira de balanço era pra lá que os pequenos corriam, inclusive eu.

Ela tem nome de flor. Os olhos de dona Amarílis continuam lindos como outrora. São eles os responsáveis por acolher todas aquelas pessoas que batem duas ou três palmas da calçada à procura de ajuda. As mãos dela continuam nos abençoando, fazendo o mesmo afago no rosto e uma cruz na testa, só que um pouco mais devagar, afinal, hoje ela está com 87 anos. Eu precisava saber uma forma de recuperar intimidade, perguntar sobre sua rotina, sobre o nome daquela planta perto do pé-de-pião, sobre sua família, não sei. Eu apenas gostaria que ela sentisse vontade de conversar um pouco, talvez alguns sessenta minutos imaginários enquanto ninguém a chamava do portão. Dona Amarílis sempre foi carinhosa, recebe muitas visitas diariamente em sua casa e sabe doar, como ninguém, o amor do universo, que não por acaso, continua dando vida às suas mãos mágicas.

Mãe de quatro filhos, “três criados e um no céu”, como prefere, essa jovem menina de cabelo branco nasceu na cidade de Currais Novos, em 1928. “Eu tinha uma mãe linda, sempre me lembro do sorriso dela chegando em casa com a enxada na mão, e eu quando a avistava de longe, logo corria feliz da vida”, contou. Depois do relato sobre a mãe, fitou os olhos no relógio bege de parede, e por lá ficaram. Parecia que à medida que os ponteiros avançavam, ela revivia o tempo que passou junto à figura materna. Não demorou e emocionada: “eu queria abraçar minha mãe novamente”.

Dona Amarílis só usa roupa florida. Eu só me atentei para isso porque sua filha mais velha, que mora com a mãe até hoje, passou entre a gente com uma pequena pilha de roupa que provavelmente tinha acabado de tirar do varal e resolveu me contar. Agradeci mentalmente pela preciosa informação que eu acabara de receber. Olhei para os seus braços que carregavam as roupas e comprovei. Eram vestidos de algodão, com flores miúdas, um de cada cor. A filha mais velha de dona Amarílis se chama Gardênia, o que me fez pensar que os vestidos floridos tinha uma importância muito maior do que qualquer suposição minha.

A senhora de vestido azulado e estampado com girassóis pequenininhos, pediu para eu descansar minhas mãos em cima das pernas. Não se pode cruzar pés ou braços durante esses minutos sagrados, porque não pode existir nó. Segundo dona Amarílis, “ofende, minha filha.” Em passinhos curtos e demorados, ela chega até mim juntando em uma mão, três folhas de arruda. Pronta para receber sua benção, respiro fundo ao som de um canário pra lá e pra cá na gaiola, fecho os olhos e é quando onde tudo começa.

Desde os 22 anos, quando perdeu sua mãe por “uma febre alta”, iniciou a vida de curandeira, ainda em Currais Novos. Aprendeu sobre as melhores plantas para curar e as rezas para sarar tudo quanto é doença. Nenhum dia Amarílis deixou de atender alguém, exceto quando ficou internada poucos anos atrás devido à pneumonia, consequência de uma gripe mal curada. “Eu nunca neguei benzer uma pessoa porque eu acho que a gente tá nessa terra pra se ajudar, né? E se alguém bate na minha porta me procurando é porque essa pessoa precisa”. Seja o que for, dor de cabeça, espinhela caída, buxo virado, fraqueza, gripe, diarreia, mal olhado de homem e de mulher, dona Amarílis cura. Mas se você agradece pelos cuidados, “não agradeça a mim não, agradeça a Deus que é quem toma conta de tudo.”

Um enorme reservatório amoroso em um metro e meio. Comecei a sentir isso desde a primeira vez em que fui benzida. Ela sempre conseguia toda a atenção, embora eu tivesse quatro anos e ela não soubesse que eu já era uma criança completamente encantada com tanto cuidado dedicado às pessoas que batiam palmas no portão. A casa dela sempre foi cheia, de gente, de planta, de pé de arruda, de pé-de-pião, de lágrimas, de doentes, de cura. 

Sempre tinha cura. Sempre. Dona Amarílis diz até hoje, “se você se preocupa somente com a ferida da carne é capaz de não ter resultado, mas se você acredita que o tratamento é feito de dentro para fora, de acordo com sua fé e com seu merecimento, sua alma fica boa e você fica curado. Eu sempre disse isso para as pessoas, e elas sempre acreditaram. Acho que por isso deu certo, né?” Sim, dona Amarílis.

A vontade de querer ajudar os outros através da reza surgiu da admiração pela avó materna, que fazia a mesma coisa com as mãos mágicas e calejadas, escancarando a força da mulher do sertão. Ela sempre achou muito bonito sua avó rezar segurando folhas, dizer um bocado de palavras que mal se pode ouvir, acompanhadas por infinitos bocejos até a hora do “amém”. Um dia, resolveu acompanhar sua mãe na roça, onde encontrou uma moça muito bonita que flutuava e sorria com uma flor na mão. Perguntei se não sentiu medo, ela balançou a cabeça dizendo que não, e completou dizendo: “Mia fia, a gente sente quando é uma coisa boa. Nessa vida, a gente só precisa ter atenção”. Depois desse dia não demorou para a febre visitar sua mãe e deixar Amarílis carente do abraço que tanto lhe faz falta até hoje.

Como um estalar de dedos, alguém bateu palmas. Era a visita que eu esperava desde quando cheguei à casa de dona Amarílis, mesmo sem saber se viria, qual era o nome e todo o resto. Sem agenda, as visitas chegam a qualquer hora e aguardam sua vez numa pequena fileira de cadeiras misturadas com tamboretes. As pessoas apenas respeitam a hora do cochilo depois do almoço e quando anoitece. Antes de me levantar para abrir o portão, ela olhou para mim como se o chamado da pessoa do lado de fora não tivesse interrompido nossa conversa. Disse que sentiu vontade de benzer as pessoas depois que viu sua mãe morrer e não pôde fazer nada. “Ela teve febre e eu não pude ajudar. Eu perdi a companhia de minha mãe aqui na Terra, mas pedi a Deus no dia do velório que me desse força pra ajudar nas febres dos outros. A maior tristeza de minha vida passou a ser o melhor caminho que eu podia escolher.”

Sorri com muita água salgada nos olhos e alisei seu cabelo escorrido antes de me levantar para abrir o portão. Eu não conseguia pensar em muita coisa. Além do exemplo de amor que ela sempre foi para mim, só restava mais amor para a pessoa que iria sentar e aguardar esperançosamente a reza de dona Amarílis, como todos fazem. Me despedi com o coração na mão, igual à moça que ela avistou segurando uma flor há muitos anos. Falei que voltaria e prometi ficar sessenta minutos, porque uma hora nunca bastou. Amarílis, que enfeita a vida de flor, me deu um abraço. O abraço do acolhimento desde que resolveu florir a vida de todo mundo. 

Nunca dê um nó em seu coração, dona Amarílis, porque ofende.

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*Iwska Isadora é aluna do curso de Comunicação Social da UFRN, habilitação jornalismo. Texto apresentado à disciplina Oficina de Texto III, sob nossa orientação.
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