sábado, 18 de fevereiro de 2023

Bolsonaro como mistificador e pai do infortúnio

Por Emanoel Barreto

Começa a ser superado o instante histórico cujo caldo de cultura político-comunicacional permitiu o surgimento do ovo da serpente do qual foi parida a figura pública Bolsonaro. O mistificador, cujas ações rústicas, brutalidade e ignorância desencadearam um processo de comunicação patológica manifesta em violência e estupidez, tinha por intuito levar-nos aos arrabaldes da civilização.

O entulho bolsonarista começa a ser varrido, mas sabemos que deverá ser grande o esforço para sua superação uma vez que os segmentos sociais que foram por ele sensibilizados já tinham e mantêm, em alguma medida, propensão a aceitar uma figura como a sua.

Bastou a fagulha da loucura ser proclamada e o descalabro mental se espalhou facilmente no senso comum dos que veem no horrível e no medonho, na repressão e no militarismo a solução para a complexidade de problemas sociais, econômicos e políticos.

O adversário é transformado em inimigo, o comunismo é um perigo, uma espécie de bicho que ronda nas esquinas, a palavra de Deus não é mais respeitada, a família corre grande perigo, a pátria está sob grave ameaça.

Tais formulações, toscas, deploravelmente simplistas, bem como a ignorância conceitual generalizada do que sejam os objetos de valoração mencionados no parágrafo acima, facilitou em muito a presença e força do bolsonarismo, uma proto-doutrina que aos olhos do senso comum responderia a todos os seus valores e convicções – básicos, rasteiros, confusos.

Agora, é trabalhar pela revalorização dos valores civilizatórios para a busca da solução de problemas que sabemos enraizados no cotidiano do brasileiro – a péssima divisão de renda, o ensino público deficitário, a questão da saúde pública, o respeito à natureza e aos povos indígenas, a marginalização decorrente da questão salarial, são exemplos.  

Importante também é tornar perceptível o quanto foi terrível o período de escuridão e barbárie ao qual estivemos submetidos, mesmo sabendo que a fenômeno Bolsonaro foi e ainda é uma força que despertou os mais densos e nevoentos intentos na extrema direita. E tal segmento insistirá em garantir seu espaço e suas ideias e ódio como prática política e tática de busca pelo poder.

Mas, como em Pavão misteriozo, talvez a mais bela composição de Ednardo vamos dizer: Não temas, minha donzela / Nossa sorte nessa guerra / Eles são muitos /Mas não podem voar.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

 A vingança de Maria Saberé

Por Emanoel Barreto

Já falei aqui sobre Maria Saberé. Foi uma das maiores arruaceiras do território formado pelos bairros Ribeira/Rocas. Era a senhora do tapa, do chute, do berro e da pancada; da lapada de cana e de topar parada com radiopatrulha.

Eu a conheci em 1974, quando no Diário de Natal me iniciei no jornalismo como repórter de polícia, na época chamado de repórter policial. Uma espécie de paralelismo com a expressão repórter político. Pois bem, certa vez fui a uma delegacia nas Rocas e ela estava presa, sozinha; se ficasse com outra mulher na cela era briga na certa.

Assim  que que me viu disse: “Barreto, você por aqui de novo? Vai ser preso ou veio me visitar?”, e soltou sua cortante gargalhada. Respondi: “Pois é. Não fui preso, mas vim lhe visitar. E o que você me conta? O que fez para estar aqui? Festa boa?”

Resumindo, ela tinha feito o seguinte: havia bebido muita cana com um sujeito, na certeza de que ele pagaria a conta. Mas o camarada, depois de muito beber, quis sair de fininho. Saberé percebeu a maranha e partiu para cima dele empunhando a garrafa de cachaça.

Espatifou a garrafa na cabeça do homem e aí formou-se a confusão. Foi pernada pra todo lado, murros, chutes e quedas. Afinal foi dominada e uma guarnição chegou para levá-la a seus, digamos, aposentos.

E foi naquela delegacia, como hóspede da malandragem, que nos reencontramos. Ela sentou-se no chão e eu fiz o mesmo. Aí, ela disse o seguinte: “Vou lhe contar uma história. A história da minha vingança. Posso?”

Claro que podia, eu disse. Ela narrou o que se segue. Quando criança tinha um problema com a filha da vizinha. Coisa de criança que se transformou em ressentimento mútuo. Uma briguinha à toa por causa de uma boneca e pronto: uma ficou com ódio da outra.

Ao longo da vida tiveram muitas discussões, trocaram tabefes em bares mequetrefes, aprontaram muito. Depois, a outra desapareceu. Anos depois Saberé descobriu: “A sujeita tinha se casado, sabia? Ela se casou e eu não era nada. Só uma bagaceira. Não gostei, e aí fui me vingar.”

A vingança consistiu basicamente no seguinte, mas não foi “basicamente no seguinte” em sentido de coisa pouca. Foi basicamente no seguinte que ela simplesmente invadiu a casa da inimiga munida de uma barra de ferro e começou e quebrar tudo.

Não havia ninguém em casa e ela fez a festa: destruiu todos os pratos, rasgou colchão, quebrou cadeiras e um sofazinho, transformou em tiras todo o guarda-roupa do casal, virou a mesa de pernas para o ar. Deixou todo o interior da casa um arraso. Levou a tarde inteira fazendo isso. A casa era em Mãe Luiza e os vizinhos nada perceberam.

Depois de feito o desastre saiu calmamente. Puxou a porta da frente e escondeu-se nas imediações. O casal chegou à noitinha e entrou em casa. E aí Maria Saberé me disse que ouviu um grito da mulher – “A danada ficou desesperada, visse?”

Ela saboreou em silêncio sua vitória. Contou que depois desceu à Ribeira, entrou num bar, pediu uma dose de cana e pouco abriu um azar: baixou o pau num bêbado de quem não gostou. Conseguiu fugir, levou a garrafa de cachaça debaixo do braço  e comemorou em seu casebre a miserável proeza.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Como a ditadura vigiava a Cooperativa dos Jornalistas de Natal

Por Emanoel Barreto

A Fundação da Coojornat, Cooperativa dos Jornalistas de Natal-Coojornat, aconteceu dia 1º de outubro de 1977. Para os jovens que a haviam criado - com o incentivo do cartunista Henfil, então morando em Natal -, era uma conquista. Uma fresta na luta contra a ditadura. Dermi Azevedo era o presidente, Arlindo de Melo Freire vice, e eu secretário – Dermi e Arlindo hoje são saudade.

Dias depois da fundação, uma desagradável surpresa: uma desagradável surpresa pelo menos para mim. Veja só: nós havíamos alugado uma casa na Rua São Tomé, Cidade Alta, em frente ao Senac. Ali seria a sede da Coojornat. Num sábado, poucas semanas após a autorização para funcionamento, fazíamos uma espécie de inauguração festiva, um congraçamento. Cheguei por lá mais ou menos às três da tarde; da rua ouvi música. Som muito alto. Estranhei, porque não tínhamos contratado qualquer serviço de som, muito menos com aquela potência toda.

Parei o carro a uns 20 metros da Cooperativa, pensando: "Quem diabo contratou esse som?", e continuei andando. Quando cheguei em frente ao Senac, descobri: a música vinha de lá mesmo, do Senac, que promovia alguma festividade. Superada a pequena dúvida entrei na sede da Coojornat e fiquei por lá, conversando com um e com outro. Nisso, entram dois sujeitos que se dirigiram a mim e se "identificaram": um era "jornalista", o outro "bancário".

Estranhei a visita por um motivo simples: o que um bancário teria de interesse numa cooperativa de jornalistas?  E o "bancário" era o que mais perguntava. Expliquei que eu era o secretário da Cooperativa e falei do projeto como um todo. Então, o que se dizia jornalista quis saber se eu tinha o estatuto da Coojornat. Respondi que sim, mas o documento estava em minha casa. Rápido, ele perguntou: "Posso passar lá, para ver os estatutos?", eu respondi que sim, dei o endereço e marquei para que ele fosse à noite me procurar.

Os tipos agradeceram e foram embora. Minutos depois chega Dermi Azevedo e eu lhe  conto o caso, já sentindo que boa coisa aquela visita não fora . Dermi disse: "Barreto, você ficou doido? Isso é o SNI, Barreto."
Respondi: "Dermi, eu sei, rapaz. Mas, quem não deve não teme. Os caras vão lá em casa lá pelas sete da noite.Vamos ver no que vai dar."

E Dermi: "Então, tome cuidado". E cuidado foi o que não deixei de tomar. Avisei a um cunhado que morava vizinho e mim.  À minha mulher, grávida de nossa segunda filha alertei que iríamos receber um mau elemento. Feito isso, começou a espera. Meu cunhado ficou na sala da casa dele aguardando para intervir se fosse preciso, enquanto minha mulher estava trancada num quarto.

Devo dizer: não sei se a pouca idade - eu tinha 26 anos - ou a convicção de que nada fazíamos de errado, mas o fato é que a palavra medo sequer me passou pela cabeça. Havia, claro, a certeza de que alguém muito mal-intencionado viria, mas o enfrentamento não me causou qualquer abalo. Estava precavido, intimidado não. 

Pouco depois das sete o sujeito chegou. Subiu os degraus da entrada da minha casa e eu o recebi. "Boa noite, boa noite. Vamos sentar", foi o diálogo inicial. O elemento sentou-se a meu lado e aí começou um ridículo interrogatório travestido de conversa. O treinamento do agente, um reles espião de baixíssima categoria, era básico. Limitava-se fazer perguntas que tentavam induzir-me a dar respostas de contestação à ditadura, como se fosse ele um jornalista insatisfeito com o regime, em confidência com um colega.

Exemplo: "A Cooperativa trabalha para quem?
Resposta: "Somos uma entidade, uma cooperativa de mão-de-obra intelectual. Prestaremos serviços de assessoria de imprensa e teremos um jornal próprio."
"Vão trabalhar também para o governo?"

Ao que eu disse: "Se formos contratados, por exemplo, por uma Secretaria de Estado para fazer assessoria de imprensa, consultoria ou um jornal, sim."
E ele: "Mas, aí, vocês vão perder a independência."

Eu disse: "A finalidade da cooperativa não se resume ao jornal próprio. Queremos ampliar o espaço de trabalho da categoria, entende? E saiba que isso não vai interferir em nossa independência."

E a conversa seguiu nesse tom. Eu sabia que tinha de dar respostas exatamente opostas ao que ele esperava de mim. Ou seja: se concordasse com tudo o que ele dissesse contra o governo daria ao agente munição para fazer relatório dizendo que a Coojornat era mesmo uma célula comunista perigosíssima. E nesse conto de vigário eu não iria cair. Então, dava respostas as mais cândidas possíveis. 

Percebendo que a tática investigativa tosca não estava dando certo - a abordagem pura e simples da atuação da Cooperativa -, ele partiu para o ataque direto: começou a falar mal do ditador Ernesto Geisel. Para o investigador, era a última cartada. O agora ou nunca. Fechei-me em retranca e em nenhum momento concordei com o que ele dizia. Afinal o homem desfechou um golpe fendente: "Esse presidente é um safado."

Não sei de onde tirei um argumento inesperado, mas sei que que desarmou o sujeito: "Acho que não. Pelo que soube, ele já foi secretário da Segurança no Rio Grande do Norte - e disse lá um ano qualquer - e, nessa época, um rapaz foi preso sob acusação de ser comunista. Depois, descobriram que o cara não era comunista coisa nenhuma e ele, Geisel, foi pessoalmente libertar o prisioneiro." 

Mesmo assim o investigador não se deu por vencido: Disse: "É, mas tem uns assessores escrotos..." O "assessor escroto", para o agente, era o ministro de Minas e Energia, Shigeaki Ueki que já admitira a possibiolidade, mesmo que longínque de privatizar a Petrobras. O investigador disse isso com todas da letras: "Ele quer entregar a Petrobras." Aí eu comecei a ficar irritado com o nível sórdido da investigação e fui claro com o tipo: "Colega, você tem aí algum documento que prove que você é jornalista? Como você sabe em nossa profissão tem muito picareta, e dessa gente não gosto."

Ele respondeu: "Claro". E escandiu a palavra: "Claaaaaaaaaaaaaaaaaaaro!" E então, na sequência da resposta, cometeu o erro que o desmascarou por completo. Disse: "É bom você me pedir o documento, amigo. Em nossa profissão tem muita infiltração. Nunca se sabe, né?"

Explicando: picareta, em jornalismo, é aquele cara que vive de expedientes, ganha propinas,  faz louvações, essas coisas. Infiltração, algo bem diferente. Infiltrado dizia-se de pessoa de esquerda que atuava em qualquer ambiente visando difundir a ideologia socialista, os famosos agitadores

Em seguida ele, pelo excesso de documentos que me apresentou, provou o que não era. Puxou do bolso uns dez documentos que o diziam jornalista: desde uma fajuta carteira de sindicato até uma autorização para cobrir visita presidencial à Paraíba, estado de onde se dizia originário. Mostrou também carteira de radialista, noticiarista de não-sei-de-onde, repórter de jornal-fulano-de-tal; isso, aquilo, aquilo outro. 

Pronto: para mim, estava desmontada a farsa. Mas ele insistia: "Você me disse que tem os estatutos da cooperativa, não foi?

Eu disse: "Foi." E completei: "Por sinal, é idêntico ao da Coojornal, do Rio Grande do Sul, com pequeníssimas modificações, relativas à realidade local."
Qual não foi minha surpresa quando ele disse: "Ah, mas se é assim, não quero." Respondi: "O quê? Não quer?", perguntei, já começando a me exaltar. "Não quer, por quê?"

Ele respondeu: "Porque os estatutos da Coojornal nós - veja bem - nós já temos..."
Eu disse: "Mas eu insisto."

Saí um instante da sala, e voltei com um calhamaço na mão. Mantive-me de pé, deixando claro que ele tinha de sair de minha casa. "Pronto", eu disse. E continuei: "Está tudo aqui. O amigo veio buscar, o amigo vai levar."

E quase atirei a papelada em cima dele. Acho que, naquele instante, o agente viu que tinha perdido o seu tempo: não iria levar nenhum relatório espetacular a seus maiores, nem  jactar-se de haver descoberto um terrível complô comunista em Natal. 

Entreguei os papéis e mantive-me de pé; grosseiramente de pé. O sujeito, sentado e perplexo. Afinal levantou-se, pôs o documento debaixo do braço e pediu desculpas pelo tempo que me havia 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

 'O delegado sou eu!'

Por Emanoel Barreto

 Eu o vi certa vez: bêbado, mirrado, bracinho fino erguido e indicador apontado para o alto, caminhava bradando uma inútil advertência: "O delegado sou eu! O delegado sou eu!" Ninguém contestava, até porque nele ninguém prestava atenção a não ser eu, em minha ingênua curiosidade de menino de seis ou sete anos; não sei se perplexo ou estranhamente fascinado por aquela cena que oscilava entre o ridículo e o comovente eu acompanhava com o olhar aquele homem trôpego e malvestido. Isso aconteceu em algum instante dos anos 1960.

 

Da minha casa eu o via seguir ladeira abaixo, Rua Princesa Isabel, centro de Natal. Ele passava na calçada do outro lado da rua e seus gestos hoje me lembram um Carlitos torto e anônimo, um brasileiro pobre que se dizia autoridade.

 

Bem que eu poderia tê-lo presenteado (meninos, se você não sabe, podem tudo) com uma linda viatura policial que naqueles tempos eram chamadas de "tintureiras", para ele fazer valer sua disposição de Quixote e prender todo mundo. A tintureira seria toda pintada em preto e branco e Delegado poderia cumprir mandados, fazer flagrantes, capturar os maus. 

 

E mais: eu poderia pedir ajuda aos meus amigos Zorro e Tonto, Billy the Kid, Kit Carson, Roy Rogers, o Fantasma, Búfalo Bill, Águia Negra, Falcão Negro, Daniel Boone, Dom Chicote, Cavaleiro Negro, Kid Colt e, claro, Jerônimo, Aninha e Moleque Saci. Se a coisa ficasse muito feia poderia chamar o Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda e mais: El Cid, o imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França. Os mosqueteiros Athos, Porthos, Aramis e d'Artagnan também poderiam vir.

 

Eles eram invencíveis, eram meus amigos e jamais se negariam a ajudar a mim e ao Delegado. Eu daria a ele um dos meus revólveres de plástico, quem sabe até mesmo um de metal, o mais bonito, o que disparava espoletas. 

 

Com essas armas eu mesmo prendi muitos bandidos que habitavam esconderijos imaginários somente conhecidos por mim. Eu tinha até uma estrela de xerife ganha numa promoção da Toddy, premiação chamada Patrulheiros Toddy. Eu era um Patrulheiro Toddy e bem poderia ter ajudado ao Delegado. Mas não fiz nada. Não chamei os caubóis, nem os grandes espadachins, não lhe dei a tintureira, não lhe dei meu revólver, não saí galopando a seu lado rua abaixo.  

Nada, nada, nada; somente o vi passar; tão desamparado, maltrapilho e tão bêbado, um pobre brasileiro e se perder na pesada ladeira da Princesa Isabel.

 

E ele se dizia delegado. Ele só queria respeito. Porque tinha a autoridade de ser povo, pobre e cambaleante.

Após aquele dia nunca mais reencontrei o Delegado. E, acho, somente hoje descobri que ele também era meu amigo, e tão corajoso e firme como Jerônimo ou Zorro. Afinal, eu e o Delegado vivíamos em mundos próximos, universos imaginários, e queríamos ajudar, prendendo bandidos. Naquele tempo, além de querer prender bandidos, eu tinha outra paixão: queria ser arqueólogo, pensava em ir ao Egito e fazer grandes descobertas. Não fui.

 

Hoje penso no meu amigo Delegado, reduzido a uma réstia de lembranças. E agora me vem, não sem um certo temor e uma fisgada de angústia: acho que quando ergo minha voz nestes textos de internet também estou descendo alguma ladeira e grito como o louco sublime: "O delegado sou eu! O delegado sou eu! O delegado sou eu!"

 

 

 

domingo, 12 de fevereiro de 2023

 Nós, pobres animais de Deus

Por Emanoel Barreto

O poeta potiguar Luís Carlos Guimarães definia os seres humanos como “ nós, pobres animais de Deus”. Não era apenas uma assertiva certeira e perfeita, frase de efeito ou tirada genial em meio a um bate-papo regado a cerveja, mas um belo verso de poema cujo título não recordo.

É isso mesmo o que somos: animais que pastejam pelas ruas, ruminam sonhos, mendigam empregos, buscam horizontes artificiais para correr em busca de suas crenças, inventam santos e demônios, festejam alegrias, guardam rancor ou expressam gratidão e amor – ou o inverso, o que é mais comum.

Isso para citar apenas algumas das nossas facetas, que são muitas, extensas e misturadas em um emaranhado complexo e infinito de fatos e ações, todos largos e sem fim como sem fim são as múltiplas consequências de nossos gestos e atos para o bem ou para o mal – às vezes, para as duas coisas ao mesmo tempo.

As grandes vitórias, os impérios financeiros, as gigantescas corporações, o barraco do miserável, o magnata e o desvalido; tudo isso terá fim com a morte de um e de outro, do potentado e do indigente: são a essência, o trabalho e a consequência de sermos pobres animais de Deus.

E depois virão novamente as grandes vitórias, os impérios financeiros, as gigantescas corporações, o barraco do miserável, o magnata e o desvalido; tudo isso terá fim com a morte de um e de outro, do potentado e do indigente: são a essência, o trabalho e a consequência de sermos pobres animais de Deus.

Somos, ao passar do tempo, como o bicho que busca arrancar da terra a grama que o alimentará. A vaca faz isso todos os dias sem consciência do ato em si. Ela o faz e pronto. Vive a calma, a indolência modorrenta de sua eterna e transitória existência. Nós fazemos a mesma coisa, só que em outro nível de inconsciência e n aturalização.

Lutamos todos os dias, seja num emprego mal remunerado ou atrás do birô do milionário, obedecemos ao chefete atrevido ou somos o próprio, e tememos o ataque do bandido de rua: diante disso a condição humana nos obriga a ter algo de nosso, queremos garantias, defesas.

Como nossa fragilidade não nos permite arrancar grama do chão com a boca precisamos de um prato, de um teto, remédios e amparo na velhice.

Ao final, como a vaca, buscamos de forma inconsciente o que seja necessário e nos proteja. Ela precisa de grama, nós tentamos enganar nossa miserável condição humana com almoços e confraternizações. 

Tudo vale a pena. Nada vale a pena.

Paciência, somos pobres animais de Deus.