Como a ditadura
vigiava a Cooperativa dos Jornalistas de Natal
Por Emanoel
Barreto
A Fundação da
Coojornat, Cooperativa dos Jornalistas de Natal-Coojornat, aconteceu dia 1º de
outubro de 1977. Para os jovens que a haviam criado - com o incentivo do
cartunista Henfil, então morando em Natal -, era uma conquista. Uma fresta na
luta contra a ditadura. Dermi Azevedo era o presidente, Arlindo de Melo Freire
vice, e eu secretário – Dermi e Arlindo hoje são saudade.
Dias depois da fundação,
uma desagradável surpresa: uma desagradável surpresa pelo menos para mim.
Veja só: nós havíamos alugado uma casa na Rua São Tomé, Cidade Alta, em frente
ao Senac. Ali seria a sede da Coojornat. Num sábado, poucas semanas após a autorização
para funcionamento, fazíamos uma espécie de inauguração festiva, um
congraçamento. Cheguei por lá mais ou menos às três da tarde; da rua ouvi
música. Som muito alto. Estranhei, porque não tínhamos contratado qualquer
serviço de som, muito menos com aquela potência toda.
Parei o carro a uns
20 metros da Cooperativa, pensando: "Quem diabo contratou esse som?",
e continuei andando. Quando cheguei em frente ao Senac, descobri: a música
vinha de lá mesmo, do Senac, que promovia alguma festividade. Superada a
pequena dúvida entrei na sede da Coojornat e fiquei por lá, conversando com um
e com outro. Nisso, entram dois sujeitos que se dirigiram a mim e se
"identificaram": um era "jornalista", o outro
"bancário".
Estranhei a visita
por um motivo simples: o que um bancário teria de interesse numa cooperativa de
jornalistas? E o "bancário" era o que mais perguntava.
Expliquei que eu era o secretário da Cooperativa e falei do projeto como um
todo. Então, o que se dizia jornalista quis saber se eu tinha o estatuto da
Coojornat. Respondi que sim, mas o documento estava em minha casa. Rápido, ele
perguntou: "Posso passar lá, para ver os estatutos?", eu respondi que
sim, dei o endereço e marquei para que ele fosse à noite me procurar.
Os tipos agradeceram e
foram embora. Minutos depois chega Dermi Azevedo e eu lhe conto o caso,
já sentindo que boa coisa aquela visita não fora . Dermi disse: "Barreto,
você ficou doido? Isso é o SNI, Barreto."
Respondi:
"Dermi, eu sei, rapaz. Mas, quem não deve não teme. Os caras vão lá em
casa lá pelas sete da noite.Vamos ver no que vai dar."
E Dermi: "Então,
tome cuidado". E cuidado foi o que não deixei de tomar. Avisei a um
cunhado que morava vizinho e mim. À minha mulher, grávida de nossa
segunda filha alertei que iríamos receber um mau elemento. Feito isso, começou
a espera. Meu cunhado ficou na sala da casa dele aguardando para intervir se
fosse preciso, enquanto minha mulher estava trancada num quarto.
Devo dizer: não sei
se a pouca idade - eu tinha 26 anos - ou a convicção de que nada fazíamos de
errado, mas o fato é que a palavra medo sequer me passou pela
cabeça. Havia, claro, a certeza de que alguém muito mal-intencionado viria, mas
o enfrentamento não me causou qualquer abalo. Estava precavido, intimidado não.
Pouco depois das sete
o sujeito chegou. Subiu os degraus da entrada da minha casa e eu o recebi.
"Boa noite, boa noite. Vamos sentar", foi o diálogo inicial. O
elemento sentou-se a meu lado e aí começou um ridículo interrogatório
travestido de conversa. O treinamento do agente, um reles espião de baixíssima
categoria, era básico. Limitava-se fazer perguntas que tentavam induzir-me a
dar respostas de contestação à ditadura, como se fosse ele um jornalista
insatisfeito com o regime, em confidência com um colega.
Exemplo: "A
Cooperativa trabalha para quem?
Resposta: "Somos
uma entidade, uma cooperativa de mão-de-obra intelectual. Prestaremos serviços
de assessoria de imprensa e teremos um jornal próprio."
"Vão trabalhar
também para o governo?"
Ao que eu disse:
"Se formos contratados, por exemplo, por uma Secretaria de Estado para
fazer assessoria de imprensa, consultoria ou um jornal, sim."
E ele: "Mas, aí,
vocês vão perder a independência."
Eu disse: "A
finalidade da cooperativa não se resume ao jornal próprio. Queremos ampliar o
espaço de trabalho da categoria, entende? E saiba que isso não vai interferir
em nossa independência."
E a conversa seguiu
nesse tom. Eu sabia que tinha de dar respostas exatamente opostas ao que ele
esperava de mim. Ou seja: se concordasse com tudo o que ele dissesse contra o
governo daria ao agente munição para fazer relatório dizendo que a Coojornat
era mesmo uma célula comunista perigosíssima. E nesse conto de vigário eu não
iria cair. Então, dava respostas as mais cândidas possíveis.
Percebendo que a
tática investigativa tosca não estava dando certo - a abordagem pura e simples
da atuação da Cooperativa -, ele partiu para o ataque direto: começou a falar
mal do ditador Ernesto Geisel. Para o investigador, era a última cartada. O
agora ou nunca. Fechei-me em retranca e em nenhum momento concordei com o que
ele dizia. Afinal o homem desfechou um golpe fendente: "Esse presidente é
um safado."
Não sei de onde tirei
um argumento inesperado, mas sei que que desarmou o sujeito: "Acho que
não. Pelo que soube, ele já foi secretário da Segurança no Rio Grande do Norte
- e disse lá um ano qualquer - e, nessa época, um rapaz foi preso sob acusação
de ser comunista. Depois, descobriram que o cara não era comunista coisa
nenhuma e ele, Geisel, foi pessoalmente libertar o prisioneiro."
Mesmo assim o
investigador não se deu por vencido: Disse: "É, mas tem uns assessores
escrotos..." O "assessor escroto", para o agente, era o ministro
de Minas e Energia, Shigeaki Ueki que já admitira a possibiolidade, mesmo que
longínque de privatizar a Petrobras. O investigador disse isso com todas da
letras: "Ele quer entregar a Petrobras." Aí eu comecei a ficar
irritado com o nível sórdido da investigação e fui claro com o tipo:
"Colega, você tem aí algum documento que prove que você é jornalista? Como
você sabe em nossa profissão tem muito picareta, e dessa gente não gosto."
Ele respondeu:
"Claro". E escandiu a palavra: "Claaaaaaaaaaaaaaaaaaaro!" E
então, na sequência da resposta, cometeu o erro que o desmascarou por completo.
Disse: "É bom você me pedir o documento, amigo. Em nossa profissão tem
muita infiltração. Nunca se sabe, né?"
Explicando: picareta,
em jornalismo, é aquele cara que vive de expedientes, ganha propinas, faz
louvações, essas coisas. Infiltração, algo bem diferente. Infiltrado
dizia-se de pessoa de esquerda que atuava em qualquer ambiente visando
difundir a ideologia socialista, os famosos agitadores.
Em seguida ele, pelo
excesso de documentos que me apresentou, provou o que não era.
Puxou do bolso uns dez documentos que o diziam jornalista: desde uma fajuta
carteira de sindicato até uma autorização para cobrir visita presidencial à
Paraíba, estado de onde se dizia originário. Mostrou também carteira de
radialista, noticiarista de não-sei-de-onde, repórter de jornal-fulano-de-tal;
isso, aquilo, aquilo outro.
Pronto: para mim,
estava desmontada a farsa. Mas ele insistia: "Você me disse que tem os
estatutos da cooperativa, não foi?
Eu disse:
"Foi." E completei: "Por sinal, é idêntico ao da Coojornal, do
Rio Grande do Sul, com pequeníssimas modificações, relativas à realidade local."
Qual não foi minha
surpresa quando ele disse: "Ah, mas se é assim, não quero." Respondi: "O
quê? Não quer?", perguntei, já começando a me exaltar. "Não quer, por
quê?"
Ele respondeu:
"Porque os estatutos da Coojornal nós - veja bem - nós já
temos..."
Eu disse: "Mas
eu insisto."
Saí um instante da
sala, e voltei com um calhamaço na mão. Mantive-me de pé, deixando claro que
ele tinha de sair de minha casa. "Pronto", eu disse. E
continuei: "Está tudo aqui. O amigo veio buscar, o amigo vai levar."
E quase atirei a
papelada em cima dele. Acho que, naquele instante, o agente viu que tinha
perdido o seu tempo: não iria levar nenhum relatório espetacular a seus
maiores, nem jactar-se de haver descoberto um terrível complô comunista
em Natal.
Entreguei os papéis e
mantive-me de pé; grosseiramente de pé. O sujeito, sentado e perplexo. Afinal
levantou-se, pôs o documento debaixo do braço e pediu desculpas pelo tempo que
me havia