sábado, 4 de fevereiro de 2006

Deadline, a linha da morte no jornalismo

"Era isso mesmo o que eu esperava:
comprar um cemitério."
(Assis Chateaubriand, ao comprar e recuperar o jornal Estado de Minas)

Muito antes que as prensas comecem a rodar, o jornal começa a ser feito. É um trabalho de equipe, intenso e coordenado. Como num jogo de passes, é preciso que cada jogador entregue ao companheiro o bastão da notícia. Notícia, esse objeto abstrato, que só aparentemente está expresso nas palavras. Na verdade, da notícia, enquanto mensagem, vale a compreensão, a representatividade do relato, o valor que previamente se dá a um determinado tipo de acontedimento, que deve ser importante ou interessante. Sem isso, nada de notícia. Importância ou interesse são essenciais.
Letras, palavras, fotos, ilustrações, tudo isso somente vale pelo que representa. E pelas consequências junto ao leitor. Vale pelo rumor social que pode causar. Em si, não têm essência nem consistência. O código é a expressão tosca do entendimento humano. E o jornal é a desesperada tentativa de captar o mundo, transformando em tinta impressa a pressa das pressões que o homem sofre todos os dias.
A notícia sobrepaira à página impressa, se espalha da mancha gráfica e se espraia no mundo. O jornal trabalha com um repertório de fatos que nada mais são que os padrões do mundo, as coisas que escolhemos como cotidianas. Mesmo que essa estranha cotidianidade jornalística sejam o inusitado, o grotesco, o excessivamente bom ou a maldade em sua mais requintada forma. De alguma forma, ao longo da História, a história da maldade se sobrepôs. O homem tem o dom do ruim.
A cotidianidade, rotineira e plana, é plena de um vazio e presivível viver. Assim, o jornalismo dedicou-se dar relevo àquilo que foge do comum. E, lamentavelmente, os atos de maldade superam em muito os comportamentos de caridade, solidariedade, humanidade e bem.
E, ao trabalhar com tantos fatos, todos recheados de tensão, o jornalismo o faz sob pressão. É o que chamamos nas redações de deadline, literalmente "linha da morte", em português prazo fatal, hora-limite. Agora, se você tem uma profissão, digamos, convencional, cumpre expediente litúrgico, atende a uma pontualidade budista, sequer imagina o que é trabalhar numa redação, o que é ser jornalista. E se você gosta de ser assim, jamais seria jornalista. O jornalismo é a tranqüilidade em disparada. Ou, como já se disse, jornalismo é a História escrita à queima-roupa.
A matéria-prima do jornal é o mundo e seu almanaque de acontecimentos, o tal repertório a que me referi há pouco. Cria-se assim, entre o jornal e o leitor, uma relação analógica: o leitor sabe que, numa determinada página, encontrará, sempre, um determinado tema - política, esporte, polícia, economia, por exemplo - mas jamais pode, ou pelo menos não deveria, prever qual assunto será tratado.
Explicando: sabe-se que em política a corrupção é quase norma executiva. Político é quase sinônimo de ladrão, pelo menos no Brasil. Assim, a novidade jornalística é: qual será a nova corrupção a ser exposta? Ou, separando cada coisa: o tema é política&corrupção, esses dois irmãos siameses. Já o assunto é a novidade sobre o mais recente corrupto flagrado.
Mas o que quero falar mesmo é a respeito da questão tempo, em função do deadline e seu equivalente literal em português, "linha da morte". Em jornal, adquirimos uma vivência muito especial a respeito da questão tempo. Tempo não apenas enquanto aquele imperceptível passar de horas para o trabalhador de expediente litúrgico, mas para o jornalista, o trabalhador do tempo fragmentado, angustiado.
Para nós, a convivência com o tempo é como conviver com o silêncio, ou com um lago calmo e profundo. Aparentemente, nada está acontecendo, mas, por trás do biombo da calma, o mundo está em ebulição. O grande problema é que os grandes acontecimentos têm algo de secreto, algo de sagrado. Os criminosos da política, por exemplo, disfarçam seu fervor pelo dinheiro e pelo poder em conciliábulos - perdão pela palavra - e confrarias que ocorrem às ocultas. Há um certo recato no roubar político.
Compete ao jornalista descobrir esses segredos, tão bem guardados como os grandes venenos, aqueles que se ocultam nos menores frascos. E, o mais triste, é que um grande veneno é uma grande arte. Administrá-lo é uma forma de ciência; há um certo saber, no trabalho dos corruptos. Tanto, que neles demoram a ser descobertos. Suas doses são homeopáticas.
O ladrão dos dinheiros públicos tem a perícia de um cirurgião ou a técnica de um pintor do renascimento, ao retocar com suavidade uma nesga de tinta. E, o que é pior, dessa cicuta, o veneno de buscar sempre o novo, algo que também nos contamina, os jornalistas bebem todos os dias. De algum modo nós, os jornalistas, morremos todos os dias com o grande veneno do deadline. Mas renascemos, dia seguinte, com uma nova manchete.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

O crime do Vectra prateado

 Não se vende uma menina



A elegante mulher desceu do carro prateado, deixou o motor ligado, foi até a favela do Maruim e parou aquele mundo de dor e lama: ali ninguém entendia o que uma senhora tão distinta, tão bonita, tão fina, fazia em meio a tanta pobreza, sujeira, lodo. Simples: ela procurava Dona Maria Oduvalda, até que ouviu: “Está falando com ela.” Sem esperar mais um segundo a mulher sacou uma pequena pistola da bolsa, mirou a mulher e acertou-a no meio da testa. 

A assassina correu, enquanto todos ficavam paralisados. Entrou no carro e fugiu. O crime do Vectra prateado, como o caso ficou conhecido, abalou Natal não apenas pelo fato em si, mas pelo envolvimento dos personagens, o confronto social, a elegância criminosa e a miséria ofendida, indefesa e morta.


Alguém anotou a placa? Não, ninguém anotara a placa, tal o pandemônio estabelecido na favela do Maruim. Mas na cidadde somente se falava na bela e seu Vectra fulminante. Passaram-se 15 dias, os jornais quase não tinham mais títulos para continuar segurando o assunto, até que ela pegou o telefone e ligou para o Delegado Eudóxio: “Doutor, amanhã vou me apresentar ao senhor. Matei aquele mulher. Não, não, não pergunte o meu nome. Apenas me espere às três da tarde que irei, sem escolta e sem medo, a seu gabinete.”


Dia seguinte, no horário aprazado, a elegante mulher chegou à Delegacia e foi direto à sala do delegado Eudóxio. Ele: “E então, por que a senhora matou aquela pobre mulher?” Ela disparou resposta aguda como lâmina de florete: “Matei porque ela era minha mãe.”


“Como?”, disse o delegado, que quase saltou da cadeira. Como seria possível que aquela mulher, finíssima, fosse filha de uma velha miserável, moradora da favela do Maruim? Ela explicou: a velha Oduvalda, viciada em álcool e faminta, a havia vendido ainda bebê a uma respeitável família natalense, família rica, porém impossibilitada de ter filhos. 


Oduvalda, bonita à época, disputada por todos os cafajestes da área, havia conseguido um bom dinheiro com a venda da criança e gastou todo ele em cachaça.

“Mas ela não lhe fez um bem? Não é hoje a senhora uma mulher rica, educada, bem de vida, tranqüila até o último dos seus dias?”, quis saber o delegado.


“Sim”, ela respondeu e arremessou uma rajada de palavras: "Mas não se vende uma filha; não se vende uma menina." E apontando sua pequena pistola para o Delegado, já que ninguém tivera a idéia de revistá-la quando entrava, disse: “Quanto ao senhor, pode querer me prender, mas não tem o direito de prender a menina que ainda existe em mim.” E atirou.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Dai ao povo pão e circo

“Criança não tem título de eleitor;
tem certidão de nascimento e fome.”
(De uma mãe pobre)

Certa vez, como repórter, eu cobria a inauguração da sede de uma entidade assistencialista. Era um sábado de sol forte. Um sol que, dependendo da situação, poderia ser tido por uns como caliente e estimulante, charmoso, um sol com gosto de Jamaica. Outros, quem sabe, o chamariam de tórrido, ou como já se usou dizer, capaz de provocar um calor senegalês.

E o povo chegando, chegando, chegando, se aglomerando numa grande mancha morena e suarenta. E vieram as tais autoridades civis, militares e eclesiásticas. Os políticos falaram, os grandes empresários jactaram-se do grande serviço prestado à comunidade. Enfim, todos, cada um dos falantes cumpriu o seu papel, enaltecendo o feito, ali mostrado em cal, pedra, cimento armado e sol, mas muito sol.

Onze e meia da manhã e começou a circular cerveja servida em copo de plástico, tira-gostos grosseiros vasculhavam até o céu-da-boca das bocas famintas. Alegria, a malta suava e vibrava. Nisso, uma banda, que naquele tempo era chamada de conjunto musical, ataca seu som vibrante e seco, jogando no ar acordes vulgares.

Um sorriso enorme, um sorriso daqueles do gato risonho de Alice-no-País-das-Maravilhas achegou-se a todas as bocas: as alegres, as desdentadas, as bocas das moças bonitas e pobres. Um sorriso de ocasião, plenamente compatível com tão vulgar acontecimento.

Eu e um colega jornalista estávamos numa espécie de mezanino, dali observando a cena, quando ele comentou: “Veja, Barreto, como é fácil ter o povo na mão. Como é fácil espremer alegria dessas pessoas.”

Era já então meio dia. O sol fez rebrilhar seus melhores e mais fortes raios, inundando aqueles corpos de suor e expandindo, em cada músculo, em cada parte daqueles corpos que dançavam aquela festa na verdade tão rude, um sentimento de satisfação braçal, embora maquiada de bons pensamentos de promoção social.

E aquele povo dançou, ah!, como dançou. Dançou até enxugar de si todo aquele convescote feito sob medida para os necessitados de pão e circo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

Mil léguas de dor

Há pessoas com grande talento para não fazer nada.
E o fazem com grande assiduidade.”
(No programa Pequenas Empresas, Grande Negócios)

O drama da seca tem sido retratado historicamente com pleno vigor nos jornalísticos televisivos, bem como em jornais impressos. A cada repetição das longas estiagens são apresentadas matérias dramáticas sob todos os aspectos, mostrando por dentro o sofrimento do sertanejo, bebendo uma água de qualidade indigna até mesmo para animais. Agora, comovente é a coragem do povo, confiando em Deus, certo de que um dia os poderes celestiais resgatarão os pobres da seca. E o noticiário já fala que 2006 não terá boas chuvas. Temo que as velhas imagens se repetirão.

Famílias humildes, famintas, cansadas, caminhando léguas, para obter um pouco de água barrenta, a fim de cozinhar o pouco que lhes resta de comida, beber e tomar banho. São as léguas de dor do nordestino, cansado, sofrido, mas resistindo a tudo, com a coragem do mandacaru e a decisão de ferro dos pés de jurema: jamais cair.

Admirável fé, férrea confiança, só que, nesse caso, objetivamente, os poderes divinos, que ante o olhar do povo são capazes de tantos milagres, em nada podem interferir, uma vez que a seca é fenômeno meramente natural e, para seu enfrentamento, exige-se a participação de alguém que nada tem de divino ou essencialmente bondoso: a presença da chamada classe política e a decisão de fazer cessar a seca pela ação do homem.


Aqui no Rio Grande do Norte, o Governo Garibaldi Filho desenvolveu uma ação louvável, com essa questão da água, através de um programa de adutoras. Mas isso não solucionou os desdobramentos sociais da seca. Geopoliticamente, a situação é dramática e insustentável; tanto quando há centenas de anos, é idêntica certamente à sede sofrida pelas populações que se embrenhavam na caatinga, povoando o Nordeste.


Há bem pouco tempo falou-se muito na transposição de águas do rio São Francisco, mas é solução questionável, uma vez que o Velho Chico está sofrendo um sério processo de assoreamento e pode haver consequências desastrosas, caso o trabalho não seja feito com extrema cautela. Havendo falhas, acaba-se com o rio e não se tem água para as áreas que precisam dessa transposição.

O que falta é visão histórica, o que falta é compromisso, é decisão de fazer pelo Nordeste como um todo. Por que o Governo federal não traz à região propostas amplas de enfrentamento da seca, acionando políticas eficazes para a convivência do homem com a longa estiagem? Reforma agrária, uma política de águas e assistência agrícolas a assentamentos poderiam fazer parte desse leque de ações.Por que, por que não há uma ação programada para se desenvolver segundo o compasso histórico?

Serão essas perguntas de alta indagação filosófica? Questionamentos tão terrivelmente intricados que não se possa pelo menos balbuciar uma resposta qualquer? Não sei. Mas creio que não.

O problema é que não há realmente um grande interesse em dar ao sertanejo a oportunidade de enfrentar a falta da água que cai do céu.
Ou então, se quer dar aos homens e mulheres do campo unicamente a chance de mostrar que têm fé.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

A árvore que morreu

"Ave César, os que vão morrer te saúdam."
(Os gladiadores, quando adentravam à arena)

Havia ali, em frente à AABB, no canteiro central da avenida Hermes da Fonseca, uma árvore. Não muito alta, tronco fino, meio caída de lado, ela tivera cortados todos os galhos e retirada do seu corpo vegetal toda a beleza das folhas. Mas aquela árvore, velha e reduzida à condição de feia, insistia em viver. E, aos poucos, dia a dia, fazia renascer os brotos dos galhos, como quem avisava aos humanos que não queria morrer.


De alguma maneira isso chamou minha atenção e passei , todo dia, a observar aquela árvore. Via que os galhinhos recomeçavam o trabalho da natureza, de nascer e crescer. Mas, logo vinha alguém, algum assassino impune, e desbastava novamente a árvore. Que insistia em sua luta pela vida e reverdecia outra vez. E assim seguia aquele combate. Silencioso, estranho, semanal.

Minha expectativa aumentava, toda vez que notava uma nova agressão. Certa vez, até que ela conseguiu: exibia, vistosa, galhos já mais ou menos crescidos, de um verde brilhante e vivo, forte e sincero. Era quase uma emoção, um grito contido de vitória: ela pensava, certamente, em suas entranhas vegetais, que iria renascer.

Animei-me: pronto; agora ela ia mesmo crescer, espalhar seu verde, fazer sombra, alegrar a vista, que é esse o destino das árvores. Até que, um dia, tudo foi cortado, podado, decepado, riscado do mapa sentimental do canteiro da avenida: o assassino havia voltado, certamente à noite, disfarçado de passante, e simplesmente havia derrubado a árvore. Nem mesmo seu tronco indefeso era mais visto. Um vazio ocupava, na minha vista, no meu território da emoção, o seu lugar.

Não sei, mas creio que essa árvore não morreu. Eu acho que essa árvore foi para o céu...

domingo, 29 de janeiro de 2006

"Helenita...Helenita..."

Existem falhas que
precisam ser aperfeiçoadas.”
(Pelé)

Havia, na rodoviária velha, Ribeira, velha Ribeira, uma pobre louca que falava sozinha. Falava com seres invisíveis, pessoas que habitavam seu mundo, seu único, inacessível e paralelo mundo. Nunca consegui saber seu nome, enquanto, à noite, às vezes altas horas da noite, depois do expediente no jornal, esperava o ônibus para ir para casa.

Sozinha, sentada a um banco, cercada de pacotes mal arrumados, falava, falava muito, gesticulava, discutia, irritava-se, reclamava, pedia, e, creio, era até atendida pelos seus amigos invisíveis. Sim, pois, de vez em quando, se abria em sorrisos da mais esmerada simplicidade.


E eu ali, lendo algum jornal, mas com um olho naquela cena. A estranha, inesperada personagem, em pleno devaneio de vida, esquecida ao mundo, entretida em si mesma, pobre imagem de uma vida aparentemente em vão. Eu disse aparentemente em vão.
E vinha o frio da noite, aquela brisa da Ribeira, brisa fugitiva do Potengi, trazendo em seu corpo de nada o cheiro do mar, mar e vida, maresia, mar-Ribeira. Passavam vultos escusos, caminheiros da noite, uma ou outra radiopatrulha, vagabundos sonolentos, bêbados equilibristas. E eu, um pouco de tudo isso.

E ela falando, sozinha. Falando, falando, coitada: feliz. Calada para o mundo, alerta para si. E uma de suas amigas mais amigas, íntima, conciliatória e cúmplice era...Helenita. Sim, Helenita. Helenita, a invisível, impalpável, mas, viva. Viva para a louca, presente em sua presença.

E ela dizia: “Se acalma, Helenita. Deixa de coisa, mulher. Deixa de dizer besteira... Helenitaaaaaa....” E, gesto brusco de mão morena, dava um tapão no ombro intangível da mulher. E ria, ria, gargalhava quando a outra parecia revidar, ali, na penumbra encardida da rodoviária velha. Ali, naquele ponto de encontro das gentes noturnas.

Ah, que mundo maluco e bom, o daquela louca. E lá vinha o ônibus: pesadão, cansado, velho, luzes fracas, salão de luz mortiça, passageiros tombando de sono, cabeças balouçantes, corpos vivos pendentes de cansaço. Eu entrava no sacolejo do veículo lerdo e lá me ia, deixando para trás Helenita e a louca.

Às vezes meu instinto de repórter me chama a voltar à Ribeira para ver se ainda as encontro. Helenita eu já conheço. Sei que é estabanada, brincalhona, faceira, gosta de falar besteira, não é mesmo? Helenita eu já conheço: mas se fosse possível voltar, gostaria de saber o que a louca tem a dizer sobre o mundo de hoje. Acho que ela ia preferir ficar no mundo de Helenita.