sábado, 23 de setembro de 2006

João de Deus, as metralhadoras e uma sonata de silêncio e paz

Agora, quando as palavras do papa Bento XVI trazem confusão e pasmo ao mundo, provocando uma forma de confronto entre cristãos e muçulmanos, relembro uma visita que seu antecessor, João Paulo II fez a Natal. Abaixo, um pequeno memorial da cobertura que fiz para o Diário de Natal.

Em outubro de 1991 o papa João Paulo II esteve em Natal, em sua segunda e última viagem ao Rio Grande do Norte. Eu era o editor de Cidades do Diário de Natal e fui incumbido de produzir uma série de textos a respeito daquela grande presença.

O Papa era então chamado de João de Deus e chegava a Natal como uma grande bênção, um largo abraço de paz e bem. Houve, para mim, dois grandes momentos, ao longo da cobertura, que começou dias antes de sua chegada.

O jornal queria preparar Natal para receber o Papa e assim, em edições seqüenciadas, fez uma panorâmica editorial a respeito da figura caminhante que se aproximava. O primeiro momento foi uma noite inteira de vigília nas proximidades da casa paroquial onde ele se hospedou.

Eu tinha como companheiro de cobertura o repórter fotográfico Marcus Ottoni. E tinha, como cenário noturno, a praia de Ponta Negra, o marulhar do Atlântico, a brisa que vinha com as ondas e o ambiente de luz e sombra do alpendre da casa onde estávamos.

Não havia conforto. Sequer uma cadeira. A não ser que se pudesse chamar de cadeira um desconjuntado banco onde Ottoni se sentou. Além de nós, não havia mais ninguém, naquela casa abandonada. A proposta era cobrir o que porventura acontecesse: em nossa memória jornalística ainda explodiam bem alto as manchetes do atentado ao Papa, ocorrido dia 13 de maio de 1981, quando o turco Mehmet Ali Agca disparou contra ele.

Assim, admitíamos, mesmo longinquamente, que algo semelhante pudesse acontecer, em Natal. Nossa cobertura não fora comunicada às autoridades de segurança. Não queríamos que, alegando-se a integridade física do Papa, nosso trabalho fosse impedido. Frente a isso, clandestinamente, conseguimos ultrapassar a guarda do Exército e ficar ali, literalmente vigiando o Papa. A noite transcorreu, cansativa e calma para nós, e o Papa dormiu em paz.

O outro grande momento foi a publicação de um texto de página inteira, intitulado “Beatíssimo Papa”, onde, em linguagem marcadamente impressionista, eu apresentava Natal ao Papa, relatando a religiosidade do povo, a presença da cidade na Segunda Grande Guerra, as belezas e os dramas das gentes humildes.

Essa matéria foi publicada dia 13 de outubro de 1991. Uma página do jornal foi enviada ao Vaticano e, dia 8 de novembro do mesmo ano, eu recebia uma carta de agradecimento, firmada pelo Monsenhor C. Cepe, Assessor do Papa.

A carta é, hoje, um quadro em minha parede de lembranças, ao lado da página dirigida a João de Deus. Na retina da memória ainda vejo a paisagem escura e sinto o frio da noite de Ponta Negra; o Papa como viajante, na solidão do austero quarto. As tropas cercando a casa e garantindo, com o soturno perfil das metralhadoras, o sono de um homem desarmado.

Foi uma cobertura marcante. Pela meticulosidade como foi planejada, pelo critério com que toda a equipe do jornal se empenhou. Impressionou-me, pela manhã, aquela figura de branco, então ainda imponente, que às sete em ponto surgiu na varanda da casa e nos acenou, quando gritamos: “Papa! Papa! Papa!”

E agora, quando a saudade é nuvem que chega, ainda ecoam aos ouvidos das minhas lembranças aquela sonata ao luar, uma sonata feita do barulho de ondas e de um silêncio grande e respeitoso, quando João de Deus dormiu em Natal.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

O latifúndio dos mandatos e as bocas cândidas

Com a descoberta da compra do dossiê contra os tucanos por gente do PT, muito próxima ao presidente Lula, volta à tona a questão da respeitabilidade ou não do Partido dos Trabalhadores, a honradez do presidente que não sabia de nada, as ações da imprensa conservadora para desestabilizar o governo, a indecisão do presidente em participar do debate a ser promovido pela Rede Globo dia 18 próximo. Coisas do tipo.

Todos querendo dizendo que são bons, dignos e justos.

Na verdade não há santos na cena política brasileira, assim como não há santos em nenhum campo de disputa de poder, o que inclui, por exemplo, o Vaticano, onde as escolhas dos papas são sempre precedidas de grandes negociações interna corporis. Na eleição do último papa li em algum jornal que os cardeais não pretendem mais eleger um papa como João Paulo II, cuja idade ao assumir o cargo o fez permanecer muito tempo em seu pontificado.

Ou seja: papa bom é papa que não viva muito, para que sempre alguém esteja subindo ao trono de Pedro, segundo o que manda o figurino pós-moderno: tudo deve passar rápido, como o tempo acelerado e vazio de hoje em dia.

Mas o que quero dizer mesmo é que, com dossiê ou sem dossiê, seja ele falso ou verdadeiro, temos apenas mais um, somente isso, mais um tumulto de seres humanos, tão humanos e tão feios em seus defeitos morais, apetites e simulações.

Lula está alegando que poderá não comparecer ao debate da Globo pois, enquanto presidente, é "uma instituição" a qual, desta forma, não pode ser atirada a uma arena de adversários que, entende, irão martirizá-lo com questões sobre o dossiê.

Quando candidato derrotado à presidência, em disputas eleitorais anteriores, comparecia aos debates e reclamava dos que se esquivavam. Hoje, alega que mudou de posição e assim também teve que mudar de opinião.

O dossiê é apenas a representação da miséria humana em busca do poder. Serra é mesmo parte da máfia dos sanguessugas como diz o tal dossiê? A Polícia Federal deveria apurar.

Mas, no fundo, todos são culpados. A culpa da voracidade política, a volúpia do poder. Bocas candidatas em busca do naco que lhes cabe no latifúndio dos mandatos. E as bocas candidatas não são, nunca foram, bocas cândidas.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

O Sombra e os Mamonas Assassinas

Sempre que artistas de sucesso morrem em pleno apogeu, vive-se uma realidade bifronte: de um lado, multidões os têm como exemplo, e neles e através deles vive e expurga emoções e gritos presos na alma: o êxtase coletivo funciona como uma instância de, transe, felicidade, deslumbre; do outro, as gravadoras faturam milhões e administram a visibilidade desses artistas a fim de manter a fama e o mito. E o lucro. Claro.

Então, havendo uma tragédia, como a morte precoce em meio ao resplendor da glória, surge uma dúvida que se eterniza a cada desenlace: como estaria ele ou ela hoje, como teria sido a sua produção, sua vida, suas obras? Foi assim com James Dean, foi assim com Janis Joplin, foi assim com Jimi Hendrix, foi assim também como Marilyn Monroe, foi assim com Raul Seixas.

É claro que o tempo, senhor das vidas e dos corpos, faria seus efeitos devastadores sobre esses olimpianos, tornando-os velhos e incompatíveis com o ideal heróico do forever young, do jovem rebelde, guia de uma geração, profeta de novos horizontes.

Estivessem vivos, seria preciso lucidez e grandeza, maturidade e dignidade para apresentar a continuidade de sua obra. Ou suspendê-la, como fez Greta Garbo, mantendo-se oculta das luzes e das entrevistas.

Os Stones estão há muito tempo no palco, mantêm-se assim mediante um competentíssimo trabalho de marketing e repetem a si próprios a cada sohw. E os bobos nem percebem. Qual o último grande sucesso da banda? Eu não lembro, afora as músicas dos anos 60 e algo dos anos 70. Mantiveram o mito, mesmo velhos, mas à custa dos esquemas de mercado. São cultuados porque são ricos e estão no topo da cadeia alimentar do mercado. Só isso.

Vejo muita dignidade no velho B. B. King e em Bob Dylan. Souberam envelhecer com grandeza. Mas, o propósito aqui é falar do lançamento de um CD dos Mamonas Assassinas, intitulado "Mamonas Assassinas ao Vivo". São as mesmas músicas do seu único disco, incluindo uma composição com o lamentável título de "Não peide aqui baby", na verdade insidiosa versão para "Twist and Shout", gravada originalmente pelos Beatles.

É uma típica jogada sórdida de gravadora. Além de tripudiar sobre a memória dos bagunceiros Mamonas, ganhando dinheiro às suas custas, traz a público uma versão grosseira, medíocre, que somente era tocada em shows. Tanto, que sequer foi incluída no primeiro e até então único disco do grupo.

Os Mamonas não deixaram uma obra, jamais poderiam fazê-lo, pela primária qualidade do seu material músico-instrumental. Foram, no máximo, uma curiosidade para o deleite de adolescentes tolos e crianças. Foram, entretanto, o máximo para o interesse, a ganância das gravadoras.

Foram, dentro do senso comum, um fenômeno: algo fora do comum, extra-ordinário, que, de repente, pronto, passou, acabou-se, vão embora. Lamentavelmente, foram embora num brutal e estúpido acidente aviatório.

Mas, agora, o apetite macabro da gravadora EMI descobre esse tape, gravado em um show e traz a público a versão. Vai vender muito? Vamos esperar. Suponho que não.

E, aproveitando a oportunidade, vale a pena lembrar a frase que abria os capítulos do seriado "O Sombra", de Moisés Weltmann, autor também de Jerônimo, o Herói do Sertão: "Quem sabe o mal que há no coração dos homens? O Sombra sabe."

E isso mesmo: nesse terra Brasil, somente o Sombra sabe, somente o Sombra sabe...

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Freud explica?

Abaixo, íntegra de matéria publicada no JB on line. Depois, algumas observações.

PT espera que churrasqueiro de Lula assuma culpa por dossiê

BRASÍLIA - Dirigentes do PT e da campanha da reeleição estão na expectativa de que o ex-sindicalista Jorge Lorenzetti assuma nas próximas horas a responsabilidade pela operação de compra do chamado ‘dossiê Serra’, disse uma fonte do partido.


Lorenzetti é o chefe do ‘dispositivo de tratamento de informações’ da campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ex-dirigente da CUT, é o churrasqueiro pessoal de Lula.

Na campanha da reeleição, Lorenzetti é o superior imediato do ex-policial Gedimar Passos Pereira, preso sexta-feira em São Paulo com cerca de R$ 1,7 milhão, para comprar um dossiê que ligaria o ex-ministro José Serra à máfia dos sanguessugas.

Lorenzetti estava desaparecido desde sexta-feira, segundo o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini. Ele foi apontado como chefe de Gedimar pelo próprio Berzoini, em entrevista na segunda-feira.

O nome do ex-sindicalista também foi citado no depoimento à Polícia Federal de Freud Godoy, ex-assessor pessoal do presidente Lula e apontado por Gedimar Pereira como mandante da compra do dossiê.

O fato de ter sido mencionado tanto por Berzoini quanto por Freud é uma indicação de que Jorge Lorenzetti será responsabilizado pelo partido, disse a fonte do PT, que pediu para não ser identificada.

A Polícia Federal pretende ouvir o churrasqueiro, disse uma fonte do governo, também sob condição de anonimato. Segundo essa fonte, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, transmitiu por telefone ao presidente Lula, que se encontra em Nova York, que as investigações apontam para um envolvimento de Lorenzetti, não de Freud.

Quando os sonhos viram pesadelo
O mais novo escândalo do sistema Lula-PT explode na reta final da campanha. Não creio que venha atrapalhar a reeleição. Observo apenas que, com relação a Freud, o austríaco, criador da psicanálise, os sonhos eram uma espécie de matéria-prima para analisar o paciente e ajudá-lo em seu processo de auto-compreensão e possível cura de males e suplícios interiores.

Quanto ao outro Freud, trata-se mesmo de alguém envolvido com os pesadelos da era Lula, pesadelos que nos acodem no dia-a-dia, quanto estamos acordados. Acordados, mas obrigados mesmo a ficar atentos ao aterrorizante cotidiano que a política nacional nos traz.

Deixo à seqüência do noticiário, ao correr dos fatos, a configuração e a exposição de quem venha a ser encontrado em culpa. O que quero mesmo é dizer o quanto é preocupante a situação moral do país; que tipos elegemos para nos representar? Quem são esses homens e mulheres que assumem mandatos e se fazem acompanhar por vassalos ou melhor: velhacos da pior espécie?

A cultura política brasileira sempre foi marcada pelo predomínio de grupos de alta gatunagem. Ao que parece, nada vai mudar.

E o tal dossiê contra Serra, tem alguma validade, ou é apenas uma armação?
Acompanhemos a história. O tempo, muito em breve, dirá. O Brasil, nem Freud explica.

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

A nau dos insensatos

"Palavras loucas,
ouvidos moucos."
Sabedoria popular

O papa Bento XVI perdeu uma boa oportunidade de ficar calado. Sem o carisma do seu antecessor, João Paulo II, sem a empatia e a diplomacia que caracterizaram o reinado do antigo pontífice, o Papa cometeu um grave erro ao fazer referência a uma realidade histórica do islamismo, a conversão pela fé ou pela espada.

Só que essa postura bélico-religiosa se deu ainda na Idade Média, quando o islã extrapolou suas fronteiras e chegou à Europa. Hoje, os seguidores da religião entendem, parece-me, que a jihad, a guerra santa, se dá no plano da conversão pela cooptação, pela explanação e convencimento a aceitar os ensinamentos de Maomé.

Isso, fora aqueles setores radicais, que entendem as coisas em seu sentido literal, de guerra enquanto atitude bélica clássica, com ação e uso de poder de fogo, já que as espadas já não se prestam a cumprir o papel de armas de combate, nos termos em que hoje se entende uma guerra.

E assim, são exatamente esses radicais que estão revoltados com as palavras do Papa. Além de sentir-se agredidos em sua religiosidade, afirmam que o Papa ainda os chamou de ignorantes quando disse que não haviam entendido o verdadeiro sentido de suas palavras.

Um ulemá está convocando os fiéis para uma sexta-feira de ira, sexta-feira próxima. Mas o faz com uma ressalva, segundo li nos jornais: que seja uma ira disciplinada ou algo assim. Que não se devem atacar cristãos ou igrejas. Ou estou muito enganado, mas creio que ira é um substantivo que não tem meios termos.

Veja, a propósito, o que diz o dicionário Houaiss: "Ira: intenso sentimento de ódio, de rancor, gerealmente dirigido a uma ou mais pessoas em razão de alguma ofensa, insulto etc., ou rancor generalizado em função de alguma situação injuriante; fúria, cólera, indignação."

Ora, o que o ulemá fez foi justamente convocar os islamitas ao "rancor generalizado", uma vez que quem está irado perde, até mesmo o controle sobre os limites de seu comportamento.

Afinal, temos o seguinte: um papa que não tem competência para administrar situações conflituais de tamanha gravidade, como é o relacionamento do Ocidente com o mundo islâmico, e da parte deste, o acirramento dos seus setores mais radicais, na busca de, aí sim, uma guerra santa em sentido estrito.

Se é que se pode atribuir santidade a uma guerra...

domingo, 17 de setembro de 2006

As Amélias pós-modernas

"A religião prestou ao amor um
grande serviço, fazendo dele um pecado."
Anatole France

Abaixo, um texto da Minha Mulher,
inédito e belo como um calice de pétalas.

Desde o lançamento da música “Ai, que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, pelos idos de 1942, a figura Amélia passou a representar, para a maioria dos brasileiros, mulher subserviente. O nome passou a ser verbete de dicionário, sendo citado no Houaiss e Aurélio, como sinônimo de "mulher amorosa, passiva e serviçal".

Você faz parte dessa maioria? Grande engano. Amélia existiu sim e foi descoberta pela revista "O Cruzeiro". Era uma lavadeira da família da grande intérprete da música brasileira Aracy de Almeida. Amélia era uma mulher do subúrbio do Rio de Janeiro, que sustentava sozinha nove filhos; talvez por isso não tinha tempo para vaidades.

Bom. Agora já sabemos que Amélia existiu e foi uma mulher de luta. Passemos agora a analisar a letra. De onde foi que tiraram todo esse preconceito contra a pobre Amélia?

A música, na verdade, só faz uma reclamação a uma mulher que não sabe ser companheira, que só faz exigências a um “pobre rapaz”, só pensava em ser vaidosa, ou seja, não somava, só subtraia. A vaidade, na letra, foi um detalhe observado em Amélia, a lavadeira. Afinal, como poderia ter vaidade aquela mulher?

Quando a música surgiu, em 1942, a mulher era uma figura voltada para as atividades do lar, vaidade, naquela época era só para as mulheres de classe mais abastada.
Os tempos passaram, as mulheres mudaram. Uma resolveu arrancar o sutiã e gritar independência. Os homens assustaram, deixaram de proteger porque muitas não queriam e ainda não querem ser protegidas. As mulheres foram à luta e se dividiram em dois times: as feministas e as Amélias pós-modernas. Não vamos entrar na questão do feminismo, acho isso muito machista.


Mas, que negócio é este de Amélia pós-moderna?

É aquela figura, que mesmo com toda a transformação social, que têm emprego, com dupla, tripla jornada ou não, não abriu mão da dedicação ao marido ou companheiro, não perdeu a ternura, o afeto.

Temos ainda aquelas que preferiram não ir para o mercado de trabalho, mas dedicar às coisas do lar, ir ao supermercado, cuidar dos filhos, receber o marido ao anoitecer, partilhar, somar e multiplicar. Dedicar não é subserviência, é afeição.

Não importa se a Amélia é aviadora, professora, frentista, diarista, taxista, se ela é do lar, ou se preferiu secretariar. O que importa é ser Amélia e, ser Amélia não é estar na frente ou atrás, mas ao lado, e não perder a feminilidade, doçura e a ternura.

Estou longe de ser perfeita, mas metade mim é Amélia, a outra também.
Terezinha Barreto