Eu, Clóvis Santos, o Galego da Galeria e as formigas
Tive hoje a inesperada e grande
alegria de reencontrar com o repórter-fotográfico Clóvis Santos. Mais
especificamente, como nós jornalistas gostamos de dizer, com o fotógrafo Clóvis
Santos. A barba branca bem talhada, os cabelos curtíssimos nevados, o aperto de
mão sincero e digno; o reencontro com o amigo foi literalmente encantador.
Alto, magro, elegante no porte
e na afabilidade, Clóvis funcionou como uma máquina do tempo. Sua presença de
amigo levou-me de volta a 1974, quando eu era repórter policial do Diário de
Natal. Falamos do tempo em que já nos conhecíamos: pelo menos uns 45 anos. Isso
porque conheci Clóvis muitos anos antes de ser jornalistas. Poucos têm essa
possibilidade: tanta vida vivida em tempo que ,em minutos de conversa, aflora
como borbulhas de champagne.
Aí lembramos de algo: num
domingo qualquer daquele ano de 1974 fomos fazer a ronda das delegacias da
Ribeira. Eu tinha uns três, no máximo cinco meses de jornal. Ele já tinha, na
vida de jornal, algum tempo a mais que eu. E então aconteceu o seguinte: à
porta da delegacia estava um tipo que é conhecido como alcaguete; na gíria dos
marginais, “cabrueta”, ou seja: o dedo-duro, aquele sujeito fronteiriço,
oscilando entre o crime e a ordem estabelecida.
Pois bem: o cabrueta contava
uma batalha havida entre a polícia e o Galego da Galeria, um marginal famoso à
época. A tal batalha havia sido de madrugada, a madrugada daquele domingo. Dizia
o cabrueta: “O Galego pegou os canas de frente. Mandou bala e a turma da Rádio
Patrulha respondeu com rajadas de
metralhadora – as Rádio Patrulhas eram guarnições compostas por quatro policias
que faziam a vigilância da cidade em automóveis Rural Willys.
Segundo o cabrueta o Galego, a
cada rajada de balas dava saltos de pelo menos meio metro de altura,
livrando-se de ser atingido. Afinal, esgotada a munição, o bandido entregou-se.
Antes de prosseguir, explico: o
Galego da Galeria havia ganho esse nome porque havia matado, na Galeria
Olímpio, uma loja famosa à época, o vigilante de plantão: um senhor de idade. Perverso,
dominou velho, amarrou-o com arames e em seguida o matou.
Voltando à cena na delegacia: eu
perguntei ao cabrueta: – E o Galego, está aí, dentro da delegacia? Foi preso? – o cabrueta confirmou: – Está aí. Entra lá
que você vai ver.
E eu fiz isso: meti o pé e entrei.
Na delegacia não estavam nem o delegado nem o comissário, que, à época, era o
substituto do delegado. Fui direto às celas e lá estava o Galego. Sentei-me
frente a ele dei-lhe um cigarro e o marginal contou como tinha sido o confronto.
Nisso, afinal, chega um
policial. Não sei porquê, Clóvis não entrou. De repente vi-me frente a frente
com um policial truculento. Um homem endurecido encarando um menino de vinte e
poucos anos. Aí o brutamotes me perguntou: – O que o senhor está fazendo aqui?
Respondi: – Estou entrevistando
o Galego. Sou do Diário.
Nesse época o Diário de Natal
tinha o mesmo prestígio que a Rede Globo tem hoje. Mas isso não foi suficiente
para deter o policial, que ameaçou: – O
senhor entrou sem permissão.
Eu respondi: – Mas não tinha ninguém
aqui. Nem o delegado nem o comissário. Sendo assim, entrei.
Ele rebateu: – Mas, pode não.
Pode não porque isso aqui é uma delegacia. E o senhor não pode sair daqui. Nem
o senhor nem o papel em que o senhor anotou as coisas que o Galego disse.
Eu estava diante de um tarugo
de mais de um metro e noventa de altura, uns noventa quilos de músculo e
brutalidade. Eu tinha um metro de oitenta de altura, mas era fino como um
caniço. A desproporção era claríssima. Fechei a cara coloquei o papel com as
anotações para trás, as mãos cruzadas, e comecei a recuar.
E ele dizendo: – Pode não. Pode
não. Pode não.
Nesse instante vi que, ou eu
agia depressa ou terminava em cana. Reuni o que tinha de coragem– e de medo – e
continuei a caminhar de costas. Fiz isso até chegar à porta da delegacia. Afinal
cheguei à porta e corri para o Kombi do jornal. Gritei: – Vamo! Vamo! Vamo!
E a Kombi foi. Driblei o
policial e na segunda-feira lasquei a matéria com o Galego da Galeria.
Mas eu estava falando do grande
Clóvis Santos. Fica aqui o abraço ao amigo, ao irmão de jornal, ao louco que
uma vez me disse que gostava de ficar olhando as formigas, para ver aonde elas
iam.
E até hoje, Clóvis, fico
olhando aonde as formigas vão. Espero que um dia eu consiga ir até lá. Creio
que, ali, qualquer que seja esse lugar, esteja escondido o Paraíso. E nesse Paraíso
a gente possa falar dos velhos tempos.