Às vezes posso conversar com mortos
Por Emanoel Barreto
Contei então que que um dia, sem que percebesse, eu o segui
enquanto caminhava a esmo pelo velho Palácio Potengi. Ele, já então sem
mandato, a política dobrada para sempre em seu embornal catingueiro, deambulava
pelo salão nobre do belo edifício, apoiado em rústico cajado. A seu lado um
jovem carrancudo e de aspecto agreste lhe servia de amparo e guia. O Majó
balbuciava uma algaravia de sons sem sentido. Perguntei se se lembrava daquilo:
fez que sim com a cabeça, um sorriso irônico pintado em sua boca, como que
dizendo: fantasmas, ao contrário dos vivos, nunca ficam caducos.
Mas, voltemos ao assunto: eu era repórter político da Tribuna do Norte e o segui naquela caminhada. O ano em que isso aconteceu foi 1994. Ele já estava muito velho. O Imperador do Sertão andava cambaleante. O título de Imperador lhe fora concedido em 1978 pela Rede Globo, entitulando documentário de Eduardo Coutinho. Mas o Imperador não tinha mais aquele pisar rijo, de velho feito de aroeira-do-sertão.
Ele vagava pelo salão, olhava os lustres, observava o assoalho de madeira nobre. Chegou-se a uma janela e de lá esteve olhando a Ribeira onde vivera encastelado no Grande Hotel, que dirigira há muit'anos, pagando ao Estado uma ninharia de arrendamento.
Logo depois, apoiando-se em seu acompanhante, caminhou passos
tardos até a larga, imponente escada de madeira, forte passarela que dava acesso
primeiro andar do Potengi, ninho do Poder no RN. Desceu a escada e perdeu-se
para sempre da minha visão. Morreu dia 4 de setembro de 1994. Dois ou três dias
depois da crônica que escrevi e publiquei na Tribuna a respeito daquele
acontecimento. Título: “O Majó veio ver se o passado estava em dia.”
E hoje, quando a mim chegou, como outros fantasmas, que são
mais relembranças que espectros, pude afinal com ele fazer a última entrevista:
- Majó, o que o senhor fazia naquele dia, lá no Palácio?
E ele, com um riso de meia-lua, olhou-me bem nos olhos e
respondeu, placidamente:
- Barreto, fui homem que teve de tudo: fui a Paris e lá estive
em Pigalle e no Moulin Rouge, andei pela Índia e por outros cantos do mundo.
Aqui, fui de tudo: fui Majó e Imperador, mandei e desmandei nas minhas festas
na fazenda Irapuru, o povo dançando com a minha banda de música. Irapuru é o
pássaro que canta e Tangará, cidade também minha, é o pássaro que dança. Também
mandei em Natal e mandei ali, ali mesmo, no Palácio Potengi. Sabe o que eu
estava fazendo lá, Barreto? Lá, naquele dia em que você, notando que eu estava
caduco, me acompanhou calado?
- Não, Majó - respondi.
- Eu estava procurando o meu passado, Barreto. Um homem tem
que ser dono do seu passado. Eu estava olhando ali se o passado tinha parado no
tempo. Se não tinham bulido naquelas coisas, naquele salão, naqueles
cortinados, nos lustres, naquele piano, na porta que dava para o gabinete do
governador. No chiado do chão de madeira. Eu estava vendo, Barreto, se o
passado estava em dia, como você disse na crônica.
- E estava, Majó?
Estava, Barreto, estava. O passado estava em dia. Estava tudo
no seu lugar. E outra coisa: em política não há gratidão nem reconhecimento. Em
política é o acerto, é o acordo, é o dinheiro e o pé ligeiro. Em política,
aprenda, o passado sempre está em dia... O passado do político adivinha o seu
futuro. O que ele fez é alicerce. É coisa ficada. O que vem depois é só desejo,
vontade. Pode ocorrer ou não.”
Deu boa noite e esfumaçou-se no silêncio do meu jardim. Um
vento frio invadiu o escritório e me gelou a alma. Fui obrigado a beber uma
dose de uísque caubói.