sábado, 28 de setembro de 2024

 Às vezes posso conversar com mortos

Por Emanoel Barreto

 Às vezes posso conversar com mortos. São amigos meus, fantasmas cordiais que me chegam, noite alta, ao escritório que tenho em minha casa; assentam-se e ficam a me olhar, cobrando-me recordações - querem saber se não os esqueci. Há pouco chegou-me o Majó Theodorico Bezerra, rajado gato do mato, sertanejo, homem do velho PSD. Perguntou-me do que dele me lembrava.

Contei então que que um dia, sem que percebesse, eu o segui enquanto caminhava a esmo pelo velho Palácio Potengi. Ele, já então sem mandato, a política dobrada para sempre em seu embornal catingueiro, deambulava pelo salão nobre do belo edifício, apoiado em rústico cajado. A seu lado um jovem carrancudo e de aspecto agreste lhe servia de amparo e guia. O Majó balbuciava uma algaravia de sons sem sentido. Perguntei se se lembrava daquilo: fez que sim com a cabeça, um sorriso irônico pintado em sua boca, como que dizendo: fantasmas, ao contrário dos vivos, nunca ficam caducos.

Mas, voltemos ao assunto: eu era repórter político da Tribuna do Norte e o segui naquela caminhada. O ano em que isso aconteceu foi 1994. Ele já estava muito velho. O Imperador do Sertão andava cambaleante. O título de Imperador lhe fora concedido em 1978 pela Rede Globo, entitulando documentário de Eduardo Coutinho. Mas o Imperador não tinha mais aquele pisar rijo, de velho feito de aroeira-do-sertão. 

Ele vagava pelo salão, olhava os lustres, observava o assoalho de madeira nobre. Chegou-se a uma janela e de lá esteve olhando a Ribeira onde vivera encastelado no Grande Hotel, que dirigira há muit'anos, pagando ao Estado uma ninharia de arrendamento. 

 Depois foi a um salão menor, onde um enigmático piano repousava, mudo. Nunca entendi aquele piano no Palácio Potengi. Talvez tocasse, à noite, sonatas para a escuridão do Poder que dormia. O Majó aproximou-se do grande instrumento e percutiu uma de suas teclas. Foi o único som que ouvi daquele instrumento  em todos os anos que cobri política no Estado; a nota soou como um langor monótono, estranhamente longo, tristíssimo. Sonata e despedida do ancião que o tocara. Aquela seria a última visita do velho político  ao Potengi.

Logo depois, apoiando-se em seu acompanhante, caminhou passos tardos até a larga, imponente escada de madeira, forte passarela que dava acesso primeiro andar do Potengi, ninho do Poder no RN. Desceu a escada e perdeu-se para sempre da minha visão. Morreu dia 4 de setembro de 1994. Dois ou três dias depois da crônica que escrevi e publiquei na Tribuna a respeito daquele acontecimento. Título: “O Majó veio ver se o passado estava em dia.”

E hoje, quando a mim chegou, como outros fantasmas, que são mais relembranças que espectros, pude afinal com ele fazer a última entrevista:

- Majó, o que o senhor fazia naquele dia, lá no Palácio?

E ele, com um riso de meia-lua, olhou-me bem nos olhos e respondeu, placidamente:

- Barreto, fui homem que teve de tudo: fui a Paris e lá estive em Pigalle e no Moulin Rouge, andei pela Índia e por outros cantos do mundo. Aqui, fui de tudo: fui Majó e Imperador, mandei e desmandei nas minhas festas na fazenda Irapuru, o povo dançando com a minha banda de música. Irapuru é o pássaro que canta e Tangará, cidade também minha, é o pássaro que dança. Também mandei em Natal e mandei ali, ali mesmo, no Palácio Potengi. Sabe o que eu estava fazendo lá, Barreto? Lá, naquele dia em que você, notando que eu estava caduco, me acompanhou calado?

- Não, Majó - respondi.

- Eu estava procurando o meu passado, Barreto. Um homem tem que ser dono do seu passado. Eu estava olhando ali se o passado tinha parado no tempo. Se não tinham bulido naquelas coisas, naquele salão, naqueles cortinados, nos lustres, naquele piano, na porta que dava para o gabinete do governador. No chiado do chão de madeira. Eu estava vendo, Barreto, se o passado estava em dia, como você disse na crônica.

- E estava, Majó?

Estava, Barreto, estava. O passado estava em dia. Estava tudo no seu lugar. E outra coisa: em política não há gratidão nem reconhecimento. Em política é o acerto, é o acordo, é o dinheiro e o pé ligeiro. Em política, aprenda, o passado sempre está em dia... O passado do político adivinha o seu futuro. O que ele fez é alicerce. É coisa ficada. O que vem depois é só desejo, vontade. Pode ocorrer ou não.”

Deu boa noite e esfumaçou-se no silêncio do meu jardim. Um vento frio invadiu o escritório e me gelou a alma. Fui obrigado a beber uma dose de uísque caubói.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

 Zé da Bussu, o rei da bagaça

Por Emanoel Barreto

O jornalista Alexis Gurgel, que me ensinou as primeiras letras do jornalismo, era editor de polícia no saudoso Diário de Natal em 1974. Eu tinha poucas semanas como repórter quando dele ouvi a seguinte ordem: “Barreto, vá até o Canto do Mangue e entrevista Zé da Bussu.” Eu indaguei a respeito de quem diabo era Zé da Bussu e ele me disse que o tipo era um desordeiro conhecido nas Rocas. A minha missão seria encontrar o sujeito e fazer uma espécie de levantamento de suas, digamos, atividades.

 A kombi do jornal deixou-me no Canto do Mangue às duas da tarde e lá fui eu, de banca em banca. Cada peixeiro tentando literalmente vender o seu peixe. Parei na banca de dona Mãezinha, uma vendedora de petiscos marinhos capazes de encantar até mesmo Netuno, e perguntei: “A senhora sabe onde encontro Zé da Bussu?”

A resposta foi: “Sei, é aquele ali” e apontou um sujeito que mais parecia um muro, desses feitos de pedra. Eu já me aproximava dele quando lembrei: Alexis não mandara um fotógrafo comigo. O jeito era fazer a matéria e depois o fotógrafo que se virasse, para encontrar o cara.

“Seu Zé?”

“Sim.”

“Posso falar como senhor?”

Ele disse que tudo bem e eu me sentei com ele à mesa onde bebia uma cachaça de péssima qualidade: “Toma uma?” Respondi que não e lhe expliquei que era do Diário e queria saber de sua vida, seus feitos na desordem, suas atividades de risca-faca e tudo o mais. Eu anotava tudo, até que senti que ele não tinha mais o que dizer: prisões, desordens, enfrentamentos com a polícia, um sujeito que ele quase matou, fugas de delegacias e, agora, a aposentadoria a ser vivida nas Rocas, rondando as mulheres e a cachaça do Canto do Mangue.

Estranhei quando ele afirmou que iria parar: “Parar por quê?” Muito simples, explicou: esperava que aparecesse um escritor para fazer um livro sobre sua vida. Ele acreditava que ganharia um bom dinheiro contando a sua história e garantiu sinceramente acreditar que o tal escritor seria eu. Primeiro levantando a peteca com a matéria no Diário, depois com o livro que eu, acreditava, iria escrever.

Expliquei que aquela matéria era apenas um registro, a publicação de minhas anotações e ponto final. Deveria sair no próximo domingo – estávamos numa segunda-feira. De nada adiantou: na verdade aumentou o delírio de Bussu, que já se via em cartaz em todos os cinemas do Brasil, ou seja: além do livro um filme... Sonhava: “Já pensou o título? Acho que deve ser Zé da Bussu, o rei da bagaça! Não é mesmo? Não é mesmo?”

Disse isso, levantou-se e garantiu: “Vou fazer a maior desordem dessa zona, que é para a coisa ficar completa.” Pensei em ver dali a minutos um escarcéu de quebrar o cano, mas nada aconteceu. Ele olhou firme para mim e disse estar pensando como e quando iria botar pra quebrar.

A kombi do jornal chegou, eu voltei à redação e contei a Alexis a respeito daquele sujeito estranho. Para mim, salientei, ele não tinha nada de desordeiro; havia emendado umas histórias esquisitas e, pela forma como divagava, estava mais para doido que para bandido ou algo assim. Alexis concordou e disse para deixar a matéria para lá. Com ela, disse, pretendia iniciar uma série de histórias de marginais, gente perdida, seu sofrimento, suas desgraças, dores e desesperos. E lamentou: “Vai dar não, Barreto. Vamo saber sobre os bebos e a turma de sempre, que quase é morador das delegacias.”

Anos depois encontrei Zé da Bussu. Estava pedindo esmolas pelo centro da cidade, envelhecido e cabisbaixo. Eu o observei detidamente e lamentei seus pobres sonhos de ser o maior bandalho do mundo... Seu livro havia virado um papel velho que descartei num cesto da redação em 1974 e, pior, ele jamais ficou conhecido como Zé da Bussu, o rei da bagaça.