sábado, 14 de janeiro de 2006

O jornalismo infame e a notícia bela

"Saio deste mundo com a convicçãode que não é
nem a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a
quimera nos levam a resoluções definitivas.”
( Epitáfio do jornalista David Nasser)

Na TV, os programas de conteúdo policial, tentando justificar a exposição explícita da violência urbana, escudam-se sob o manto do que é chamado vulgarmente de “jornalismo-verdade”. A expressão, na verdade (com trocadilhos e tudo), encobre o desejo mórbido e sensacionalista de fazer chegar ao leitor, ouvinte ou telespectador, fatos chocantes em sua forma mais crua, uma vez que esse jornalismo se espalha nos três segmentos de mídia.


É básico, na ética jornalística, que não se deve levar ao leitor (em sentido amplo), fatos chocantes em detalhes, respeitando-se a intimidade de quem toma contato com a informação. É comum que pais e mães expressem revolta quando descobrem que seu veículo de informação preferido está trazendo a seus lares imagens ou textos de conteúdo grotesco.O jornal pode falar a respeito do fato terrível, do acontecimento lutuoso, do drama infinito dos assassinados, mas não precisa, nem deve, mostrar tudo isso em todo o seu terror.

Explicando melhor: passando por uma estrada, você se depara com um acidente. Sabe que morreu alguém de maneira trágica. Se puder ajudar, tudo bem, mas duvido, duvido muito, que tenha interesse de ver como ficou o cadáver desfigurado. Mas, se por mórbida curiosidade, achegar-se ao corpo, certamente recuará, sentindo que não se deveria ter exposto a tão chocante cena.

É a mesma coisa com o jornal: deve ter em seus arquivos os mais terríveis imagens, por enésinos motivos: ajudar a investigações policiais, contribuir em algum processo judicial. Mas tomando todas as precauções quanto a uma suposta e futura publicação.Mas hoje, especialmente na TV, frente à vulgaridade da programação, o sofrimento passou a fazer parte do noticiário espetacularizado.

Não sou contra a notícia televisiva bem editada, ou seja: mostrada de forma criativa, com todos os requintes que a informatização do noticiário permite, incluindo-se aí a música incidental. Explico-me: se você mostra um jogo de futebol, com câmeras em tudo quanto é lado, por que manter a coisa como se fazia há 30 anos, com takes laterais e, no máximo, de fundo de campo? Não: vamos mostrar tudo e da melhor maneira possível. É uma forma de jornalismo dramatúrgico, mas que, bem aplicado, tem um efeito positivo.

Numa matéria sobre natureza, por que não explorar as possibilidades estéticas de enquadramentos bem feitos, com uma música de fundo apropriada e uma locução compatível? Quem não gosta de uma crônica de Sandra Moreyra, no Bom Dia Brasil, mostrando como se prepara um finíssimo prato, aquela iguaria dos deuses? A própria crônica de Sandra já é uma obra de arte, tanto quanto a culinária que ela apresenta. É impressionista, informa e alegra a alma. É a notícia bela.

Mas é triste ver a exposição do homem morto, o peito perfurado a bala, o sangue espalhado no chão sujo da rua. Esse tipo de expressão jornalística somente desmerece a informação, cria no expectador uma espécie de destinatário cruel. Na verdade, tenta-se criar um destinatário cruel, como se as pessoas gostassem de ver o mal. Não, não gostam. As pessoas devem saber que algo aconteceu. Mas se esse algo contém algo de sórdido, de ruim, de cruel e torpe, não precisam de detalhes. É uma informação infame. São coisas do Brasil, mas o Brasil não precisa disso.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

A velha foi para Damasco*

Conta-se que um poderoso príncipe, reinando absoluto sobre Damasco, cavalgava por planícies distantes. Via seus domínios, desvanecia-se com o seu poder, fruía tudo o que era seu: florestas, rios, lagos, até o clima, dizia, mudava quando ele assim o determinava.E dessa forma passava o seu tempo, acumulando ouro, pedrarias, alcatifas festejavam seus pés e as mulheres mais lindas, trazidas das terras mais exóticas, aveludavam os seus dias.

Acostumado à beleza feminina multiplicada por mil, o príncipe chocou-se ao ver diante de si, quando sofreou o cavalo - um árdego corcel dourado - a figura feia de uma velha mulher. Feia como a dor, encurvada como as sombras do tempo, trôpega, manca, olhos maus e fuçando o ar com narinas enormes, a criatura feriu a retina do monarca como um dardo.

- Que fazes no meu reino? - indignou-se ele ante tal e infame presença. - Não sabes que bani para sempre das minhas terras a fome, a dor, a miséria e a feiúra? Tornei são o meu povo, para que dele somente brotem os bons e os belos. E, como és feia, estás imediatamente banida destas plagas. Vai e não voltes mais.

Calada, a criatura limitava-se a ouvir as palavras, melhor seria dizer as acusações vindas do príncipe, até que tomou a palavra: - Meu senhor, não posso ir embora. Não sou do vosso povo nem vim para ficar. O que vim fazer se cumprirá depois de mim, após minha presença e passagem.

O grande corcel do príncipe fremia, como que querendo atirar-se de chofre sobre a mulher, pisoteando-a por inteiro. Nisso, o príncipe falou: - E o que vieste fazer no meu reino? Faze-o logo e sai - desafiou o temerário.

Ela respondeu: Nobre senhor, o que me trouxe aqui não é bom nem rápido. Eu sou...- Quem és? - cortou ele. - Conta-me rápido, antes que te decapite - bradou, enquanto desembainhava a cimitarra.

- Eu, meu senhor, eu sou a Peste Negra. Estou me encaminhando para Damasco. Por isso sou assim, trôpega, pois o que venho fazer não tem pressa: quando for feito, feito estará.

O príncipe não esperou um segundo mais. Atirou-se rápido em direção à cidade, onde espalhou a notícia. Em pânico, as pessoas atiraram-se em multidão às ruas, atropelando-se em desespero, amontoando-se, aos gritos. Milhares começaram a morrer, antes mesmo que a peste chegasse.

E dias depois, quando ela chegou, caminhando com seu passo tardo, encontrou já metade de população morta. - O que fizeste, infame? - gritou ele.

- Príncipe - ela respondeu - tua notícia matou de medo a metade do povo. A outra metade matarei eu. E em seguida começou o seu ofício.
* De uma velha história que, um dia, li .

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Se você não se cuidar, a teletela vai lhe pegar...

"Se você quer uma imagem do futuro,
imagine uma bota prensando
um rosto humano para sempre."
(George Orwell)
A Rede Golbo traz de volta o execrável programa Big Brother Brasil. Um espetáculo vulgar, grosseiro em sua mais íntima essência, deplorável sob todos os aspectos, mobilizará com certeza milhões de telespectadores, alguns dos quais serão chamados, nas ruas, a "opinar" a respeito do que estarão fazendo os personagens integrantes da farsa midiatizada.
Claro, é importantíssimo saber se algum sujeito vai ou não fazer-não-sei-o-quê, ou se alguma das doidivanas do programa fará não-sei-mais-o-quê-lá. Claro. Im-por-tan-tis-si-mo! Claro, o Brasil precisa de idiotas.
É o seguinte: trata-se, na verdade, de um grupo, melhor diria, de um magote de indivíduos que se prestará a qualquer tipo de comportamento. Tudo, a troco de ganhar um milhão de reais. Esse tipo de produção, que é uma espécie de franchising, foi criada por um holandês que fez fortuna programando o Big Brother e outras armações do tipo. Na verdade, é apenas uma atitude de marketing, onde a emissora fatura fábulas e todo um país, qualquer país, fica como que fascinado com o medíocre e com o torpe, o tolo e o boquirroto. Ser estúpido ganha aplauso.
Quando o escritor inglês George Orwell escreveu, em 1939, o livro 1984, queria representar uma sociedade totalitária, regida por um Big Brother, um Grande Irmão, que de tudo tomava conhecimento. E o fazia através de aparelhos televisivos, as "teletelas", que tanto transmitiam interminavelmente mensagens favoráveis ao seu governo, quanto, ao mesmo tempo, veja só, acompanhava o que você fazia em sua casa. Era, em intenção, uma crítica ao comunismo stalinista.
E, no livro, por toda parte estava o peso da mão do Estado. Jogo pesado: poder acompanhar o cidadão até mesmo na aparente segurança do lar; ver, saber o que ele fazia e assim determinar o que esse indivíduo faria. Claro, o medo presidia todo o processo.
Orwell jamais imaginaria que, de alguma forma, os televisores virariam mesmo teletelas. Enquanto nós vemos os farsantes do BBB obrarem seus grotescos gestos, emitirem seus toscos conceitos, de alguma forma perversa a Rede Globo também nos observa. A emissora monitora, minuto a minuto, em tempo real, como estão os índices de audiência de sua programação. Há toda uma aparelhagem tecnológica que permite esse acompanhamento.
E, à medida que tal situação se configura, o Grande Irmão está ou não, de alguma forma, vendo o que você faz? As pessoas não estão sendo manipuladas, idiotizadas pela Rede Globo, da mesma forma que no livro 1984? Só que de forma sutil. Disfarçadíssima. Você não vai preso, não é processado, não é procurado... Mas pode acabar comprando alguma bugiganga que a publicidade global mandar...
Mais que isso, a Globo vende você. É, a Globo vende você aos anunciantes. Exibe números exorbitantes de audiência e cobra milhares de reais por 30 segundos de um comercial. Quem estiver sintonizado, estará vendido. Coitado, o sujeito vendo TV, sem saber que acabou de virar mercadoria. É, é isso: televisão não vende produto. Xampu, carro, roupa, etc..., nada disso. Televisão vende gente. Televisão vende gente aos grandes anunciantes.
É bem verdade que o personagen principal de 1984, Winston Smith, tentou libertar-se do Estado e de seus poderes tentaculares. Acabou preso, sofreu uma lavagem cerebral e tornou-se novamente um servo fiel do totalitarismo.
Claro que a Globo não é o Estado, nem vai prender ninguém, se esse alguém deixar o BBB por outro programa. Sabe por quê? Porque a Globo sabe que depois você volta a sintonizar. A verdade é que dá pena, raiva, revolta, vendo esse povo tão sofrido e traído, mal assalariado e sem escola, sem saúde ou segurança, discutindo com veemência se algum ser obtuso e ganancioso deve ou não ser eliminado do programa. O negócio é o seguinte: parece que o povo não percebe, mas quem foi eliminado - foi o povo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

A arte da palavra, arte de viver

O perfume é o espírito da flor.”
(Armando Nogueira, jornalista)
A palavra, seja escrita ou falada, traz em si a possibilidade da arte, o instante mágico da criação. Um texto interessante, bem dotado de dizeres e de silêncios (sim, textos também têm silêncios, que, como na música, podem ser essenciais), tem a força de mil imagens. É viagem e chegada, destinação e pouso, compasso e marcação. Mas a palavra transcende o texto. Tornou-se imanente ao Homem; o texto é somente mais uma variante da palavra.


A palavra é tudo: é o gesto, o escuro inesperado na cena aberta do teatro, o zoom da câmera fechando no olho cinzento do ator, o primeiro choro do recém-nascido, o olhar de raiva de quem não conseguiu fazer o mal por completo, o olhar de coragem dos que não temem a brutalidade. A palavra é tudo isso e muito mais. A palavra é o instrumento essencial e final da conversa.

Uma conversa boa, onde os atores do ato da amizade se entendam bem, estejam em sintonia fina, chega à condição de obra de arte, construção de vigorosa estátua que não se vê, mas existe e ressurgirá sempre que, em outra conversa, alguém mais esteja se falando e erguendo da pedra da palavra um colosso de sons e de afetos.A palavra é situação, é fato, é ato, é desafio, é concórdia, espada e luta. É desvelar de novos horizontes.

A palavra é o som do sentimento. Mesmo assim, há os que falam sem sentir, apenas se utilizam da palavra como o malabarista das mãos: são os falastrões, troantes, trompas ocas do seu silêncio mais íntimo e mais feio.

Mas, se a palavra pode ser usada pelos espertalhões, é florete exímio para quem tem combates mais nobres. A palavra é até mesmo silêncio, quando chega a hora do nada dizer. Aí, ela se transfere da boca e passa ao olhar, que desdenha dos caminhos dos falantes. Aí, ela se recolhe, para somente aparecer quando alvorece o seu momento exato. Palavra que é verdade...