sábado, 2 de janeiro de 2021

O Brasil é uma sala escura

e sua História 

um pano sujo exposto no varal


Por Emanoel Barreto

Ingresso em 2021 como quem chega a uma sala escura e grande.  E sem saber exatamente como combater/enfrentar/conviver/superar/aceitar o que já existe lá dentro.

Sei somente que há restos a pagar de 2020, dívidas humanas contraídas por equívocos tão nossos, dúvidas quanto ao que virá, a certeza da incerteza, o possível passo em falso na escuridão que nos cerca, a vida rasurada e encardida, gente morrendo, pano sujo exposto no varal da História.

Ao que tenho visto não vão se abrandar os ânimos nem se acalmar os intentos ou se aclarar no Homem o sentido de humanidade, aqui proposta como alguma forma respeitosa de convivência de contrários. Entendo que até inimigos podem ser leais.

E por entender essa forma de lealdade – e defendê-la –, lembro John Lennon e cito verso de Imagine, sua composição mais emblemática da fase pós-Beatles: “You may say I’m a dreamer/ But I’m not the only one”.

Sei, todavia, que estamos num tempo de cólera e ódios sinceros. Espero que a sala escura vá aos poucos se aclarando e os passos venham a se encaminhar a um rumo certo e a navegação a um bom porto. Espero, não tenho certeza. Na verdade, desejo; e em vez de esperar prefiro esperançar mesmo sabendo o quão difícil será chegarmos a algo de bom e de justo.

Mas volto ao meu acorde em tom maior e insisto, com a pequena ajuda de Lennon: “You may say I’m a  dreamer/ But I’m not the only one.”

 

 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A quarta-feira de cinzas do réveillon

Por Emanoel Barreto

Hoje é a quarta-feira de cinzas do réveillon. Muitos dos que festejaram o Ano-Novo estão espichados nas areias das praias ou espojados em suas camas, enevoados pela  ressaca da insensatez. Depois vão acordar para a realidade.

E a realidade é a seguinte: em mais alguns dias muitas dessas pessoas estarão nas redes sociais alarmadas com os sintomas da covid, pedindo orações e clamores para escapar das previsíveis consequências de ajuntamentos em tempos de peste.

As multidões que acorreram ao chamamento pelos festejos são explicáveis, enquanto fenômeno, por múltiplos conhecimentos acadêmicos que vão da sociologia à psicologia social, da antropologia social às teorias de comunicação e, claro, dos estudos sobre ideologia.

Não é o caso deste artigo tratar do fenômeno da alegria descontrolada e aluada enquanto objeto de interesse acadêmico. Estou aqui para expressar não só  indignação com  tal comportamento – e lamentar a omissão das autoridades de todo o país na repressão aos ajuntamentos – mas especialmente para manifestar minha perplexidade.

E faço uma pergunta: por que uma pessoa adulta e informada a respeito do perigo busca esse perigo? Vale a pena morrer por uma taça de champanhe, uma caneca de chopp, uma boa dose de cachaça, um uísque, um brinde?

Creio que os valores de uma sociedade voltada para o ter acredita de forma difusa que esse ter significa possuir até mesmo o tempo – o tempo da festa, no caso – como se fosse possível, nesse tempo, haver felicidade e segurança na busca do estar alegre e sentir-se indomável e vencedor: senhor da vida, parelha da mesquinha  eternidade daquela glória boba e seus momentos de euforia que tanto iludiram o inebriado herói de Baco.

O pior é que o preço a pagar será cobrado também aos que não foram às festanças, a conta irá aos que vão lotar hospitais e UTIs, às famílias que perderão filhos, pais, mães e avós.

As multidões de pessoas vazias se desfizeram. A festa acabou. O estado socialmente líquido de tais encontros escorreu pelo esgoto do cansaço e da exaustão dos bacantes e agora eles dormem.

O tempo não para e amanhã vai ser outro dia. E esteja certo: por causa do réveillon cuidado, há perigo na esquina.

 

 

 

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

 Vamos viver ao sol da Vida

Por Emanoel Barreto

Observando nossa vida em perspectiva reversa, ou seja, olhando o nosso passado e o que fizemos ao longo do percurso podemos perceber o quanto tudo se modificou depressa. Em nós e à nossa volta tudo mudou muito rápido – talvez depressa demais, para desespero de alguns.

A incapacidade de aceitar a impermanência das coisas, a mutação silenciosa e implacável dos nossos corpos no envelhecimento diário, o desfazimento de laços de afeto, a perda de bens materiais, o fracasso de sonhos – só para citar alguns casos – tudo isso pode trazer sofrimento e dor a quem não se preparou para perdas e mudanças que a imaturidade de muitos entende como inaceitáveis.

A mutabilidade de tudo em direção ao fim é o grande problema. Somos impotentes, não conseguimos impedir de mudar aquilo que foi feito para se desfazer e finar.

O inverso desses apegos a coisas e pessoas a quem desejamos ter a nosso lado diz respeito ao apego a coisas e pessoas que nos fazem mal.

Refiro ao quanto é difícil nos livrarmos do ódio a alguém, do ciúme de alguém, do medo do outro, da submissão ao opressor – aqui não no plano ideológico, mas pessoal – da falta de atitude frente àqueles que nos ferem ou ameaçam. 

O apego à saudade, o acorrentar-se a velhas ofensas, a insistência em não perdoar são formas terríveis e ilusórias de experienciar nosso processo existencial na cotidianidade do pó que escorre na ampulheta da vida. Pura perda de tempo.

Suspeito, todavia, que talvez seja mais fácil superar a perda de alguém a quem amamos que nos desvencilharmos do ódio pelo outro. O abraço ao ódio é terrível e faz mal, muito mais mal a quem o sente do que àquele a quem é dirigido. Porque o ódio é vivido somente por quem o interiorizou. É impossível fazê-lo chegar em essência ou  toque corporal àquele que é alvo de tal sentimento. O ódio é um sofrimento em vão. Mas, quanto apego existe por ele.

Essa valorização do negativo é mero fruto de construções mentais. A pessoa passa a acreditar na importância do ódio como objetivo de vida e no despeito como forma de compensação. O mesmo se diz da inveja, da frustração, do sentimento de culpa por não ter atingido um certo propósito, seja sucesso pessoal ou vingança a quem o magoou.

Tudo isso porém, analisado friamente, revela-se como algo tolo e desnecessário, pueril e gerador de mais sofrimento aos que têm no negativo seu referente e o carrega como coisa própria e essencial. Mas esse sofrimento é passível e possível de superação. Basta refletir. Com método e decisão é possível livrarmo-nos de tais situações e viver cada dia com consciência de cada momento.

Viver passo a passo creio que seja o melhor caminho para ficar em paz. A idade, para quem já envelheceu, deve ser tida como resultado de todo um processo de vivências e aprendizados.

Se a idade nos sinaliza a proximidade do ocaso não é preciso apegar-se à saudade. Mas sorrir às lembranças de tudo o que nos fez chegar até onde chegamos e ao tudo que somos. Sem medo, sem lamentar tempo perdido. Não há perda de tempo quando se soube viver ao sol da Vida.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

      Os monstros não têm medo

Por Emanoel Barreto

É verdade, os monstros não têm medo. Os monstros são arrogantes, atrevidos, insolentes, brutais, descarados; afrontam a tudo e a todos desde que satisfaçam os seus mais baixos instintos: no caso, desacreditar a ciência, estimular a estupidez das festas e aglomerações, brindar enquanto tantos morrem. A pandemia tem mostrado o quanto os monstros são tudo isso: de ruim e de pior.

Há, contudo, um aspecto a salientar: se os monstros não têm medo não significa que tenham coragem. Insolência não é coragem; estupidez não é bravura; desrespeito não é brio; barbaridade distancia-se de  atitude resoluta; ofensa nada tem a haver com a serenidade firme da pessoa digna.

Explica-se: o monstro, a besta humana, não tendo medo de agredir não o faz por ser valoroso, mas por ser apenas monstro.

Mesquinho, brande seus desvarios e zomba do sofrimento de milhares; baixo, apequena-se mais ainda com a sórdida alegria de gritar de alegria. Como Neymar, que realiza um festim lamentável reunindo quinhentas pessoas.

Mais um exemplo: a brutalidade bolsonariana estagnou a vacinação e até hoje vivemos um limbo e uma pergunta: quando, quando as pessoas começarão a ser vacinadas? No Brasil, ninguém sabe.

O pior é que muitos já foram contaminados pela monstruosidade e estão se preparando para o réveillon. É uma espécie de comemoração de Nero, que tocava harpa e bebia enquanto Roma ardia em meio às chamas que ele mesmo havia provocado.

O monstro não tem medo porque em seu lugar tem ferocidade. E tem ferocidade porque se julga invencível, blindado, intocável. Na verdade, é apenas um ignorante, alguém tosco e perverso.

Vêm aí as festas finais do ano e depois delas chegarão as dores e os desesperos de muitos – dos que foram às dionisíacas comemorações despidos de qualquer senso de dignidade e dos que de alguma forma serão por eles contaminados.

Os monstros não têm medo pois já estão na lama até o pescoço. Os demais devem continuar deles distantes, evitando a sua baba. Vade retro.