sábado, 24 de junho de 2023

 “Trouxe a muriçoca?”

 A triste sina de um brasileiro infeliz

Por Emanoel Barreto

 

Era uma vez Brasileiro. Quando foi um dia, Brasileiro, sem saber como, estava numa fila enorme. Perguntava a um e a outro por que estava ali. E a resposta era sempre a mesma: "Não sei. Também estou nessa fila e não sei o motivo." 

 Nisso, chegou um funcionário. No peito, um crachá que informava qual o órgão público onde trabalhava: Instituto das Instituições Instituídas para Instituir novas Instituições e Cobrança de Taxas e Emolumentos, Tributos, Contribuições de Melhoria, Propinas e Etc...".

 Brasileiro dirigiu-se a ele: "Senhor, posso saber o que faço nesta fila?"

O funcionário respondeu: "Não sei. Trabalho aqui mas nem mesmo eu sei o que faço aqui. O senhor vai ter que pegar uma ficha para se informar. Vá até aquele guichê, para receber a sua ficha."

Brasileiro: "Obrigado."

 Foi ao guichê e afinal foi atendido.

"Ficha?", disse o funcionário.

"Ficha", respondeu Brasileiro. 

 Então, o funcionário perguntou: "Trouxe a muriçoca?"

Brasileiro quase cai para trás e quis saber: "Muriçoca? Pra que muriçoca?"

 A resposta: "Aqui só tira ficha quem traz uma muriçoca. Se não trouxe vá para aquela fila. Lá, eles dão fichas que dão direito a uma muriçoca. Você vai ao Criatório Nacional de Muriçocas, apresenta a ficha, eles lhe dão a muriçoca, você volta aqui, pega nova ficha para eu atendê-lo novamente, eu lhe dou uma ficha e depois você vai para outra fila. Será atendido por outro funcionário e ele vai informar porque você está na fila."

 Brasileiro dirigiu-se à fila para pegar a ficha de atendimento no Criatório Nacional de Muriçocas. Depois de muito esperar recebeu a ficha de número 900.000.000.000.890.000.789.982.000.000.000.777.663.000.444. 000.767.980.765.000.000.123.456.789.3334-687.987.987.095.876.456

.4329.899.999.678.543.765.900.888.076.776.98763535353535353, 79885873551414..6776737.563724131666

 Quando Brasileiro viu a numeração sentiu que estava numa enrascada. Não tinha a menor ideia do motivo pelo qual estava ali, ninguém sabia informar nada e ele ainda tinha que pegar fichas e mais fichas para ter direito a novas fichas.

 Diante de tal a lamentável situação resolveu sair e ir para casa. Quando um guarda notou que ele estava saindo, disse: "Vai sair?" 

 Brasileiro respondeu: "Vou, não aguento mais ficar aqui e vou embora."

 O guarda foi curto e grosso: "Pode não. Bateu aqui dentro só sai depois de ser atendido. Isso aqui é o Brasil, rapaz! Tá pensando o quê? Volte já para a fila, para pegar a ficha da muriçoca."

 Brasileiro argumentou: "Mas, quando eu vou ser atendido? Já viu o número da minha ficha?" E mostrou o papel com o absurdo número ao guarda.

 O sujeito fez uma cara de espanto: "Óóóóóóóóó." Então, chamou Brasileiro a um canto e disse: "Negócio seguinte. Eu posso dar um jeitinho..."

 "Pode?", perguntou Brasileiro quase feliz.

"Posso", garantiu o outro. "Mas precisa rolar uma merreca. Sacomé, né?"

"Seicomé", disse Brasileiro. "E quanté?" 

 Era pouco, garantiu o guarda. Por um salário-mínimo ele daria a Brasileiro uma muriçoca e ele poderia afinal saber porque estava ali – depois de cumpridas outras formalidades por acaso existentes, claro. 

 O guarda facilitou: aceitava cheque. Brasileiro nem pensou duas vezes: passou um cheque sem fundos ao guarda. Poucos minutos depois estava com uma linda muriçoca num belo e transparente frasco. O guarda era contrabandista de muriçocas.

 Em seguida Brasileiro encaminhou-se ao funcionário encarregado de receber as muriçocas. Chegando lá o homem disse: "Adianta não. Tá faltando um carimbo que eles põem na asa direita da muriçoca atestando a procedência. Além disso, tá faltando duas meias, um pedaço de pneu de caminhão e três palitos de fósforo, para fazer juntada ao processo."

 Brasileiro deu um grito de desespero e quis fugir para outro país. Vizinho àquela repartição havia outro país. Parece que eram os Estados Unidos. "Opa! Vou para os Estados Unidos e lá eu me faço!"

 Mas, quando Brasileiro já ia pulando a cerca o mesmo guarda da muriçoca pulou em cima dele e disse. "Epa! Teje preso. Pra fugir também tem que pegar ficha! Somente foge daqui depois que os home derem ficha..."

 Brasileiro então, implorou: "Não aguento mais fichas. Posso ao menos me suicidar?"

 O guarda: "Tá difícil. O país é pobre e só tem um revólver público para suicídios. E mesmo assim tá faltando bala. Pegue aquela fila ali e..."

 Brasileiro nem esperou: caiu seco ali mesmo, mas não foi enterrado porque não tinha tirado ficha para a morte... A família entrou com um processo pedindo direito a enterro, mas os juízes estão em greve...

  ---Falando nisso... você tirou ficha para ler este texto?

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ZOORÓSCOPO

Traíra - Quem está sob a regência de traíra tem por vocação natural a traição e o descaminho. Cuidado quem estiver mantendo romance com um trairiano ou trairiana. Especialmente se esse alguém for do signo de Minhoca. Minhoca é isca e sempre acaba devorada...

 

 

 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

 Quem é imputável? 

 Por Emanoel Barreto

 Era uma vez a Câmara dos Deputados num país distante. Quando foi um dia, à falta de ter o que fazer, um deputado fez um pronunciamento de alta indagação e disse: “Precisamos saber se as putas são imputáveis ou inimputáveis.”

 Aí todos os deputados e deputadas disseram: “Ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh....” e ficaram encantados com tal sabedoria. 

 Em seguida um deles disse que seria preciso instalar uma CPI para apurar tal situação e convocaram todas as putas do país para que informassem se seriam imputáveis ou inimputáveis.

 E vieram todas e foram instaladas nos mais caros hotéis. Dentre elas foi escolhida a mais famosa e bela. Ao ser indagada se era imputável ou inimputável não soube responder, pelo simples fato de que jamais tinha ouvido tais palavras. E, disse, quem não sabe o que uma coisa é não pode ser o que essa coisa seja.

 Um dos deputados contestou: “Não é pelo fato de que a senhora não saiba que matar alguém é crime que, matando alguém, deixe de ser punida. Assim, queremos saber se a senhora e suas semelhantes são imputáveis ou inimputáveis. Isso é importantíssimo para os destinos da nação.”

 A puta, mesmo sem saber a resposta, propôs o seguinte: “Vamos promover uma grande festa no plenário da Câmara. Quero bebidas finíssimas, salgadinhos especiais. Quero que todas as minhas colegas venham para cá que todos os membros da Câmara participem enlouquecidamente de tudo.”

 E vieram bebidas e comida à larga. E houve grande festim. A festa durou uma semana. Ao final de tudo, as putas reuniram-se e voltaram com a resposta à CPI, indagadas que tinham sido se eram imputáveis ou inimputáveis.

 Disseram as moças: “Senhores e senhoras, continuamos sem saber o que seja um imputável ou um inimputável. Mas de uma coisa temos certeza: vocês todos são uns grandes filhos da puta. E tenho dito.”

 O plenário foi imediatamente esvaziado. Era melhor não insistir no assunto.

 

 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Ganhou o emprego e depois morreu 

Por Emanoel Barreto

O homem, velho e com ar de desespero, entrou na redação da Tribuna do Norte, onde eu trabalhava, coisa de nove da manhã, com um pedido triste: precisava de um emprego agora que se havia aposentado. Precisava desesperadamente suplementar a renda da família. 

 Na verdade, eu jamais vira aquele homem, mas ele me buscou com grande desenvoltura. Desenvoltura que depois compreendi era apenas expressão e resultado do desespero de alguém angustiado com o pagamento insignificante a que estava acorrentado, agora que estava fora do mercado de trabalho.

 

Ele me disse seu nome, revelou saber que eu era jornalista e informou que era gráfico: estava em fim de carreira e fora aposentado quando trabalhava n'A República, o jornal do governo do estado. Pedia que eu tentasse algo para ele em alguma gráfica ou, quem sabe, num dos jornais de Natal. Eu disse que iria tentar, que faria todo o possível.

O homem, baixinho, agradeceu-me muito. Não percebi no prolongado aperto de mão da despedida um outro pedido: silencioso e angustiado aquele apelo não era um pedido de emprego, mas o grito de um desiludido, alguém perdido, um homem que só tinha passado. 

Conforme o prometido passei a disparar telefonemas e torto e a direito, mas a resposta era inevitavelmente a mesma: não. Ninguém tinha emprego, ninguém precisava de um novo funcionário em gráfica ou jornais. Já estava quase desistindo, quando afinal um sim: naquela gráfica precisavam de alguém experiente. 

Estava garantido o emprego daquele inesperado visitante. Isso se deu uns dez dias depois de sua vinda. Quando bati o telefone no gancho, depois de agradecer pelo emprego conseguido, bati também o olho na página policial da Tribuna, e ali estava: o homem tinha se suicidado dia anterior, tinha se afogado no mar, no grande mar da Via Costeira. 

Descendo de um ônibus, diziam as testemunhas, ele seguiu direto para a água e começou a entrar. Não atendeu a gritos ou pedidos para que voltasse. Afundou, e somente dias depois o corpo foi encontrado. 

Fiquei olhando o jornal como quem estivesse vendo um filme, um videoteipe delirante de tragédia. Era como se ele tivesse saído dali há pouco. Um minuto e pronto: logo depois, morto; encharcado da angústia de estar vivo e sentir-se amortecendo. Ausente de um emprego que complementasse a aposentadoria de celetista.

Fechei o jornal. E na minha imaginação, olhando fixamente a figura inexistente e morta parada em frente a mim, eu disse: "Mas rapaz, eu não lhe disse que ia arranjar o seu emprego?"

 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Fantasmas no Beco da Quarentena

Por Emanoel Barreto


Não lembro bem o ano, mas foi na década de 1980 que resolvi participar de um concurso de reportagens sobre a Ribeira, o velho bairro boêmio de Natal. O concurso era promovido pelo Setrans, o Sindicato dos Transportes Urbanos de Passageiros.

Eu era editor de Cidades do Diário de Natal. Arrastado pela saudade dos tempos de reportagem resolvi que aquela era uma boa oportunidade de reviver meus tempos de repórter. Especialmente os tempos de repórter policial, em 1974. Afinal fora ali, na Ribeira, que fizera as minhas primeiras matérias entrevistando delegados, agentes de polícia e bandidos, sendo estes "homens da pior espécie", como se dizia.

A Ribeira, de alguma forma, remonta à minha memória como uma senda no tempo, levando-me a ambientes fumageiros, mesas de bar barra-pesada, meia-luz, bas-fond; ambientes que a gente, na reportagem policial, tem de enfrentar – ou melhor, viver.

Pois bem: resolvi fazer a reportagem exatamente à noite, quando a Ribeira é mais Ribeira. Acompanhou-me Moraes Neto, fotógrafo pé-quente. Isso basta para defini-lo. Marcamos para iniciar os trabalhos nas imediações do Bar das Bandeiras. Ali, expostas nas paredes altas, bandeiras de muitos países deixadas como lembrança, marcos de aventuras dos navegantes; presentes de marinheiros de todo o mundo elas justificavam o nome do bar.

Eu e Morais saímos do Diário às oito da noite e mergulhamos em direção à Ribeira, que em tempos outros, lá pelos anos 1960, era chamada de Cidade Baixa por oposição ao centro, a Cidade Alta. Cada um foi no seu carro. Estacionamos perto do bar, que fica na zona portuária. Descemos e ficamos observando o ambiente: marinheiros filipinos acocorados fumavam, diziam coisas ininteligíveis e nos olhavam com justificada estranheza: um cara com um bloco de papel nas mãos e outro com uma tremenda Nikon ao peito. Creio que se sentiam, digamos assim, investigados.

Deixamos os filipinos de lado e eu disse a Morais: "Vamos". O vamos queria dizer vamos ao bar. E fomos. Não éramos exatamente desconhecidos por lá. Éramos na verdade muito bem conhecidos. E recebidos. É que turmas de jornalistas, empresários, boêmios, poetas, pintores, escritores, artistas frequentavam o Bandeiras especialmente nas tardes de sábado. Mas, à noite, a coisa era diferente: ao escurecer a fauna era bem outra: putas, marinheiros, estivadores, pescadores... Era, aí sim, a Ribeira; representada pela sua mais autêntica realidade. A alegria bruta de sua essência popular, o vulgo reluzindo, solenemente exposto.  

E foi isso, essa mudança, o que nos recebeu. Percebi que as coisas haviam literalmente mudado do dia para a noite quando alguém, uma voz de mulher, a dona do bar, avisou aos tipos ali presentes: "Lá vem o triste". O "triste" era eu. Sinceramente, não entendi aquelas palavras até que me aproximei. Ainda abri um sorriso, mas, grosseira, ela disse: ‘O que vocês estão fazendo aqui? Não podem fotografar. Aqui estão mulheres, até mesmo mulheres casadas que vêm fazer a vida. Os maridos não sabem. Pode dar problema, entende?’”

Senti o peso da situação. Ela estava agressiva, completamente ao contrário de quando nos recebia nas tardes de sábado. Em tais momentos éramos gente falando de política, arte, cultura, pápápá e lero-lero. Ninguém era de briga, confusão ou barraco.

 Mas, naquele momento, não: um estivador empertigou-se, uma mulher fuzilou-me com olhar de onça, um bêbado levantou-se e encostou-se no balcão, outro mostrou-se ameaçador. O zum-zum-zum se espalhava pelo enorme salão. Todos estavam literalmente putos conosco.

Era como se milhares de olhos, olhos enraivecidos, estivessem a nos fitar. Então, percebi: éramos uma ameaça, uma ameaça à barulhenta tranquilidade daquele ambiente onde reinavam as leis e as ordens de Baco, a feroz felicidade do beber cachaça à larga, pegar uma rapariga pela cintura, gritar rudemente pedindo "mais uma", e se esperava a próxima cerveja gelada.

Expliquei que não havíamos fotografado nada nem ninguém. A gente estava ali somente para sentir a noite da Ribeira e eu escrever minha reportagem sem citar o nome de qualquer pessoa. E nenhuma das damas seria fotografada. A dona do bar acalmou-se e eu, aproveitando a deixa, disse a Moraes: "Vamo simbora daqui! Agora!"

Saímos. E ouvi quando ela disse: "Ainda bem, ele saiu." Vale dizer: eu, o "triste", tinha tirado o time.

Voltemos à Ribeira. Moraes e eu, dois perdidos na noite, saímos andando. Fomos até uma delegacia. Falei com o agente responsável – o delegado não estava – e pedi para entrevistar alguns presos. O policial foi legal e deixou. Um forte cheiro de sujeira ampliava a sensação de coisa marginal, ambiente de rejeitados, decadência, asco.

Suportei o odor que já conhecia de outros tempos, quando me iniciativa no jornalismo e encaminhei-me à carceragem. Se você nunca entrou numa delegacia não tem ideia de como é: gente dormindo no chão frio e sujo, gente assujeitada, fedida, infecta. É barra. Era como nos velhos tempos de repórter policial. Nada havia mudado.

Sentei-me no chão perto da grade de um dos cárceres e puxei conversa com um sujeito. Ele estava só de calção – prisioneiros homens ficam só de calção ou cueca – é para impedir que alguém tente se suicidar com alguma peça de roupa. Pelo menos era o procedimento em 74 nas delegacias. Hoje, não sei.

Voltando: sentado, tentei falar com o cara que estava preso. Disse que estava fazendo uma reportagem sobre a Ribeira e blábláblá.

E então enfrentei outra dificuldade: por causa do meu bigode – e isso sempre acontecia quando eu falava com bandidos ou outros elementos presos –  o sujeito disse, na lata: “Você tem cara de ser cana. Cara de canoa. Não vou falar. Esse bigode mostra que você é da polícia. Quer me afundar ainda mais. É rabo de foguete. Muito maior do que a merda em que já tô metido.”

Parei. Pensei depressa e expliquei que não era nada daquilo, que eu não era um canoa, que não tava numa de lascar ele ainda mais. O indivíduo terminou aceitando meu papo e falou que estava preso depois de dar uma surra na mulher e tinha sido capturado. Uma história bem típica do povão, coisa cotidiana do noticiário policial. 

Naquele instante dei um salto no tempo e voltei a 1974, quando entrei no jornalismo, ombro a ombro com Pepe dos Santos e Alexis Gurgel, dois monstros do noticiário de polícia em Natal. Duas grandes figuras que já se foram: irrepetíveis e insuperáveis. Segurei a onda com o desordeiro preso, falei com outros sujeitos e saí. Nem lembro se Moraes fotografou. Só sei que deu para sentir a barra do quanto sofre o pobre, o sujeito comum, suas necessidades, sua lamentável e sórdida existência.

Saindo da delegacia começamos a andar pelo bairro. As horas se passavam, e eu e Moraes percorrendo as ruas escuras, os bares escusos, as casas de luz vermelha, o silêncio das ruas desertas, a semiobscuridade daquele bairro de cachaça e bebedeira, tão humano e tão verdadeiro, perigoso e bêbado.

Hoje vejo que foi coisa de louco. Moraes com uma câmera caríssima. Eu com minha vontade de repórter, eu com minha curiosidade humana. Nós com nossas vidas expostas a agressões, perigos, assaltos. Nós, com uma espécie de ingenuidade tão jornalística e tão poética, nos colocando à disposição de malandros e marginais, somente para fazer uma boa matéria. Nossas famílias em casa talvez temendo pelo pior... Por que éramos tão loucos? Ainda hoje não sei a resposta, mesmo depois de tantos anos...

Mas, continuemos: caminhando, chegamos às imediações do Beco da Quarentena que já foi um sórdido ambiente de prostituição, da mais baixa raparigagem já praticada em Natal. Ali era o seguinte: cubículos, lado a lado, numa calçada e na notra, eram os apartamentos onde as mulheres recebiam seus, vejamos, clientes. O sujeito entrava e a porta era fechada atrás de si. 

Paramos. Moraes começou a estourar flashes no casario que ladeia o Beco. Então, fiz algo que até hoje me arrepia e me interroga: entrei no beco. Por que fiz isso? Não sei. Ali não havia nada de valor jornalístico. Só escuridão. Densa e temível. Mas só sei que empurrei o pé e meti-me no beco.

Caminhei alguns metros com minhas botas ressoando no silêncio escuro da rua. De repente ouço sons. Zoada de luta. Eram barulhos surdos, como se muitos indivíduos trocassem socos.

Gente se esmurrando no tórax. Bum-bum-bum! Tum-tum-tum! Era como se alguém recebesse um murro e fosse atirado contra uma porta. Uma intensa pancadaria como se fosse dentro dos quartinhos das putas. As batidas nas portas também eram medonhas. Era como se o suposto esmurrado fosse atirado brutalmente contra a madeira. Fui dominado por um terror súbito e inexplicável, algo tão terrível como jamais sentira, como se uma força maligna estivesse se acercando de mim. O terror aumentava à medida que me aprofundada no beco. Os cabelos eriçados e eu andando como que em câmera lenta.  

O que sentia era como se algo, alguma entidade de descomunal e de intenso poder estivesse naquele lugar e me deixasse completamente gelado.

Saí do beco e, ato contínuo, entrei de novo. Ouvi os mesmos barulhos e tive e mesma e medonha sensação. Devo dizer: foi demolidor, aterrorizante. Repeti a experiência umas duas vezes, com o mesmo e brutal efeito. Afinal, desisti. Não dava para continuar vivendo aquilo.

Algo, porém, chamou-me a atenção. Fora do beco desaparecia completamente o terror. Eu ficava absolutamente normal, tranquilo. Chamei Moraes, não lhe contei nada e andamos a esmo mais um tempo. Afinal, coisa de duas da manhã, demos a missão por encerrada. Fomos para nossos carros.

Nos despedimos com um abraço. Semanas depois a comissão julgadora do prêmio atribuiu-me o primeiro lugar. Valera a pena todo o esforço, o terror, a escuridão.

Muitos anos depois passei pelo Beco da Quarentena. Era dia e entrei. Percorri-o de ponta a ponta. As portas haviam sido substituídas por tijolos. Era uma manhã de sol e o beco até parecia sorrir. Jamais compreendi tudo o que ali vivenciei.

E hoje, batucando este texto me pergunto: valeu a pena? E me respondo: valeu. Mas espero nunca mais repetir.

 

domingo, 18 de junho de 2023

 O vendedor de cárceres

Por Emanoel Barreto

O vendedor de cárceres se diz patriota, defende a família e a religião. Sabe marchar, canta hinos e brada "selva!”; é treinado em estupidez, firme no que diz e afiadíssimo em sua malsinada intenção de arrebanhar tolos e incautos, ingênuos e simplórios, broncos e brutamontes que fizeram algum curso superior, além de pobres que querem ser ricos – e ricos que querem que haja pobres que querem ser ricos.

O vendedor de cárceres consegue atrair a si as opiniões e os anseios apressados dos que pensam em soluções de penúltima hora para problemas que já duram séculos.

Ele, esse tipo de comerciante, chega gritando e avisa que se aproxima o fim do mundo e que é muito perigoso estar fora da prisão. E garante que com o povo à mercê de um certo perigo – ele inventará um perigo qualquer, um inimigo a ser destruído – todos devem embrenhar-se no cárcere e ali permanecer a salvo.

“O cárcere é também um abrigo”, eis o seu lema. Seus seguidores ficam de tal forma seduzidos que passam a acreditar em tal chamamento, sinceramente pensam em atirar-se à cadeia e efetivamente procuram as prisões e a suposta proteção dos muros altos.

E quando muitos pensam em conjunto a mesma coisa vemos que a prisão, o muro, a masmorra, a corrente, o elo, a algema e todos os instrumentos de sujeição e curvatura passam a ser a ser algo normal e necessário porque tornou-se coisa comum. E tudo o que é comum é tido como normal, mesmo que se saiba que não é por ser comum que deva ser normal.

O vendedor de cárceres é um monstro que a muitos convence de que a sua monstruosidade é desejável e visa o bem geral da nação. O vendedor de cárceres deseja que todos sejam moradores da cafua, e nos cafundós do sofrimento sintam-se como príncipes e acreditem: “Sofremos, mas estamos livres de todo o mal.”

É que no desespero o povo aceita de bom grado o domínio dos insensatos e dos mal-intencionados e estes, por sua vez, entregam as gentes à reclusão sinistra e ao calabouço sombrio, úmido e frio das desgraças da História. 

A grande fila dos prisioneiros segue entoando hinos e gritos, ameaçando o inimigo que sequer conhecem – e busca então o uso dos grilhões e das correntes.

É muito fácil vender cárceres ao povo. Os algozes convocam à detenção como quem convida a um baile suntuoso. E todos vão; em nome da família, a favor da bondade, em respeito à moral e à religião. E as pessoas passam a habitar as fronteiras trevosas da prisão que pensam haver escolhido porque lhes foi dito que a haviam escolhido.

Os vendedores de cárceres estão aí. Muitos são os que proveem a massa com cadeias e nacos de pão dormido. E os analfabetos políticos, hipnotizados e bobos, ainda dizem “obrigado, muito obrigado.”

Os carcereiros ateiam fogo e dizem que é para iluminar a noite, promovem a desordem e garantem que é para que todos entendam que estando presos terão garantido abrigo e ordem em suas vidas. E isso soa como verdade, coisa boa e necessário, pois a prisão também acolhe. 

Então, quando vir um tipo desses, resista. Para tanto, basta que lhe dê as costas e caminhe para bem distante. A Liberdade mora muito além da compreensão dos vendedores de cárceres. É por isso que eles comemoram a prisão. E deles sempre há um maioral, um boçal, um manco glorioso.

Mas também é verdade que quando não são ouvidos e louvados eles se esfumaçam e se perdem no desdém da História, não valem sequer uma vírgula.