sábado, 24 de dezembro de 2011

Alberany, o abominável, recebe a ajuda de uma mosca e consegue escapar de juiz insensível. (O leitor precisará ler o capítulo anterior para compreender este capítulo))

Alberany transforma sua prisão em formidável procissão de infames perdulários

Ora, metido eu naquela infecta masmorra pensava em como dela me livrar. Enquanto isso, meu amigo, homem de esperteza salafrária, buscava amenizar ali os nossos dias. Utilizando-se de toda a sua astúcia dirigiu-se ao carcereiro, sujeito de modesta inteligência. Como nos haviam permitido ficar com nossos andrajos de falsos eremitas ele vestiu aquela lamentável roupagem, pegou do cajado e assim falou ao pobre idiota:
- Ó bondoso servidor do Altíssimo. Eis que chegou a hora de honrar o divino.

O carcereiro estranhou o manhoso procedimento. Mas veio ver do que se falava e o tratante assim o enganou: - Ó amável ser que povoa este antro com sabedoria e luz. Preciso falar-vos em nome de Deus.

- O que quereis de mim, prisioneiro? - o pobre homem se acautelava. Mas o malandrim que o assediava era calejado na arte de engabelar. Afirmou-se um eremita a serviço do Papa e preso ali por equívoco. E, respondendo à pergunta do carcereiro, disse:
- Nada desejo, a não ser a salvação de vossa alma. E que presteis serviços aos anjos e aos santos - o pobre homem era um temente. E ao ouvir tais palavras arregalou os olhos e perguntou o que seriam esses tais serviços e como poderia prestá-los. O magano não se fez de rogado e disse:
-  Saibais que nos últimos tempos os santos e os ajnos deram-se a beber vinhos e outras bebidas espirituosas, quero dizer destiladas, para ampliar seus altíssimos pensamentos. E assim, sendo eu e meu companheiro homens rezadores e dados a transes místicos, recebemos dos anjos e dos santos incumbência de adquirir tais artifícios e com tais nos aprofundarmos no contato com as entidades superiores. E trazei-me também pão e leite, que nem só de espírito vivem os santos.

Meu amigo tinha um jeito imponente de falar e isso conveio a seus malsinados intentos. O miserável carcereiro atirou-se de joelhos aos pés daquele sequaz da patifaria orando as pobres coisas que sabia orar. Logo saiu e retornou, vergado ao peso de grande carga de vinhos, bebidas destiladas e os alimentos pedidos. Não é preciso dizer que com isso empenhou sau paupérrimo salário. 

A masmora, assim, transformou-se numa festa. Meu amigo e eu, dizendo palavras sem sentido e inventadas, simulávamos transe sob o olhar apatetado do carcereiro. Depois íamos descansar. Porém, passavam-se os dias e coisas aconteciam. Como a vinda novos presos, homens deploráveis, tipos iguais a nós, perniciosos. Logo tínhamos ali um magote de malfazejos da pior espécie. Espertamente começamos a cantar hinos e louvores e logo tínhamos uma seita de safados a explorar o mísero carcereiro.

Mas, ai, o tempo passava e eu sabia que a mão da justiça cairia sobre mim. Eis então que aconteceu algo inesperado. Uma mosca apareceu na nossa cela e, por artes não sei do quê, seu zumbido a mim se assemelhou a uma voz e ela me dizia que poderia ajudar-me. Estupefato por estar falando com um animal, e animal tão horrendo,contei-lhe a minha desdita e ela assegurou que poderia efetivamente livrar-me da prisão. 

Explicou-me com um bater de asas que os prisioneiros dali eram sempre julgados por dois juízes: um, probo e justo e esse seria bom para mim, pois, quando lhe explicasse que era apenas um patife espertalhão, não um parricida, saberia dar-me pena mais modesta; quanto ao outro, era homem da mão pesada, dado a fraudar processos, tomar para si as coisas dos pobres e das viúvas e aplicar penas duríssimas ao mais pequeno furto, caso o apenado nada lhe desse em troca. E contou-me tudo a respeito do funesto elemento, dizendo que, na audiência, eu deveria insinuar ter conhecimento da vida privada do magistrado que, em público, aparecia como homem honrado. De posse de tais conhecimentos preparei-me para enfrentá-lo.

Veio afinal o dia do interrogatório. Eu e meu detestável amigo fomos levados à presença do juiz. Era justamente o molesto magistrado, que assim tratou-me: - Ah, temos aqui dois mouros, heim? Sois mouros, pois não? Tendes todos os jeitos de mouros...

Senti que estava às voltas com um pergosíssimo embusteiro, talvez pior do que eu ou pelo menos igual a mim, só que do lado oposto. Defendi-me. Ele contra-atacou: - Então, se não sois mouros sois certamente marranos, solertes e febris em vossos intentos - garanti que não, mas ele insistiu: - Sois sim, sois feiticeiros e, vós, um parricida. 

Nisso, vi a mosca voejando ao retor de minha cabeça, orientando-me a reagir. Foi o que fiz. Pedi a palavra, o juiz deu-ma e contra ele investi, blandicioso: - Ó judicioso magistrado, homem de benquerenças com a Justiça! Sei que sois altaneiro e sábio em vossas decisões! Sei, por exemplo, que respeitais vossas criadas, sem delas abusar, e sustentais os pobres e as viúvas sem de suas bocas retirar o pão. E que em vossas terras todos ganham o almoço e janta cantando no cultivo das videiras, e que tendes apenas uma mulher e digníssima esposa. E somente com ela tendes filhos, sem jamais, no exercício da magistratura, haver claudicado em favor dos fortes e dos opressores. E acima de tudo, sois leal a El Rey, sem se apoderar dos impostos a ele devidos.

Eu sabia pela mosca que o juiz era exatamente o contrário de tudo aquilo. E ele, sentindo-se atacado perante a corte que presidia, à frente do capitão da guarda, dos guardas e do povo em geral que a tudo assistia, percebeu a minha insinuação e a minha manha. Notei pelo seu olhar que o havia encurralado. 

Ele pediu o processo, leu-o e permitiu que me defendesse. Especialmente da acusação de parricídio. Minha defesa foi altaneira e forte e afinal, tendo o juiz subjugado, fiz meu ataque final. Reafirmei que éramos, eu e meu amigo, homens santos a serviço do Papa em pregação pela Cruzada, a última, a que libertaria a Terra Santa das mãos dos mouros, e mais: queria ser libertado juntamente com a súcia que ficara na masmorra, pois eram todos homens de rezas e de expiações e com eles iria continuar aquela santa luta. 

O juiz, apavorado, declarou: - Ó homens de lei e de justiça forte. Fostes, vós e vossos seguidores lídimos, perseguidos por equívoco judicial e por infame e turbulenta multidão, avara de justiça. Estais livres para o exercício do vosso mister. Ide e pregai a palavra da salvação e da bondade. E para que tenhais de mim a certeza de magistratura altíssima, dou-vos estas moedas de ouro a fim de contribuir com a vossa e augusta causa! Eia!


Isto feito, entregou-me o dinheiro, libertou-me das cadeias, a mim e ao salafrário que me acompanhava, e determinou imediata soltura dos infames lá na masmora. Saímos todos pela cidade, uma malta de maus praticantes. Notícia espalhou-se pela cidade: um grupo de santos homens havia sido libertado por bondoso juiz e agora pedia esmolas para libertar a Terra Santa; seria a última Cruzada, depois de centenas de anos da última surtida daquela virtuosa guerra.


Pessoas boas e tolas nos paravam nas ruas para nos encher os bolsos e os sacos. Assim, ao final do dia já tinhamos uma bela fortuna. Dirigimo-nos a uma casa de tavolagem e ali, sob o argumento de saudação aos santos e aos anjos, que nos últimos tempos haviam se dedicado à beberagem, como meu amigo sempre anunciava, promovemos grande esbórnia. E chegando entre nós um velho em andrajos, ele sim, um verdadeiro eremita, acusou-nos de falsários e mandriões. E já intentava levantar o povo em protesto, quando o silenciamos com vigoroso golpe na cabeça.
(Continua)

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Maravilhoso, quero a sequencia o que aconteu no final?