sábado, 19 de junho de 2010

                                                               GAIA CIENCIA
O DIÁRIO DE BICALHO
Diário confessor,

Ontem fui ao cardiologista, que garantiu-me que está tudo bem. Sorri para ele, mas não acreditei. Manifestei uma alegria mitigada e saí. De repente, taquicardia. Eu não disse? Agora meu coração se volta contra mim. Meu coração quer me morrer.

Penso às vezes em deixar este corpo tão traiçoeiro. Em vão. Tentei milhões de vezes, estudei com zen budistas, meditei com um baba indiano que me apareceu, fiz terapia de vidas passadas tentando encontrar algum corpo meu de antigamente para nele me abrigar. Inútil.

É impossível sair-se de si. Você pode livrar-se de alguém, mas nunca poderá escapar de si mesmo. Que pena. Logo agora, que estou com grandes planos para o futuro, o passado que em mim me habita, o passado que é meu corpo, diz que não. E tenho que continuar morando nesse sarcófago que a vida me deu.

E agora veio-me uma terrível dor de cabeça.
Desisto. Vou continuar preso ao que restou de mim.

Um abraço,
Bicalho
O jornal envelhecido
Emanoel Barreto

A leitura da manchete da Folha dá-me a sensação real do perigo que corre o jornalismo impresso de perder espaço e presença histórica. Motivo? Muito simples: no espaço mínimo de 24 horas a notícia da morte de Saramago já está jornalisticamente envelhecida. A internet, a TV e o rádio já a haviam esgotado enquanto acontecimento noticiável. Especialmente a internet, esse inimigo não-intencionado do jornalismo impresso dá-me reforço à sensação 

E isso apesar da belíssima capa da Folnha, com Saramago em foto de tom blasée, um flâneur em pleno exercício de sua flanerie; um homem vivenciando sua senectude rejuvenscida e desafiadora, impávida ao vento e às tempestades da vida. Tormenta ele próprio, viajor, português, homem do mar.

O que faltou ao jornal? Faltou dar a informação adiantada, o dia seguinte, o hoje, a contextualização, o processo de vida em torno da figura carismo-turbulenta do autor, a representatividade da obra. Claro que teria que haver uma manchete. Mas não, não seria o anúncio episódico de uma morte já anunciada 24 horas antes.

Creio que deveria ter havido, mesmo de forma simplista, ou o anúncio de onde será ele cremado ou os lamentos carpideiros do povo português, a comoção, o luto. Dizer ao mundo apenas que Saramago morreu é no mínimo um equívoco.

Mas a falha não é da Folha, com trocadilho e tudo. É do jornalismo impresso de um modo geral. Que precisa se tornar analítico e antecipar fatos novos a partir de um grande acontecimento matricial, aprofundando-o.




sexta-feira, 18 de junho de 2010

gaia ciencia
Emilio Naranjo/EFE
A nave vai
Emanoel Barreto

E partiu então a nau de Saramago
a navegar mares tão distantes.
Ao léu do seu próprio infinto.

Para onde foi, por que foi?
Não voltará?

Ao vento vai  A nau insone e feita de marfim.
E parte, digo e respondo: parte para não mais voltar.

quinta-feira, 17 de junho de 2010


O DIÁRIO DE BICALHO
Amigo Diário,

Estou no meu escritório, após ter escapado do atentado perpetrado contra mim pela minha mulher. Meu escritório é um bunker. Aqui, nem micróbios gigantes ou qualquer outro agente mortífero conseguirá me capturar. O problema é que está chegando o fim do expediente e vou ter que voltar para casa e enfrentar minha mulher e a mãe dela. Acho que estão conluiadas. Conluiadas, entende? Percebe o terrível peso desta palavra?

Um conluio, amigo diário, é uma coisa cretina. Li certa vez que um conluio acabou com os celtas. Não sei bem o que isso significa, mas, pelo sim pelo não, vou me precatar. Agora, preciso ir embora: todos os empregados já foram embora. Até o chefe sumiu. Mas, espere, o chefe sou eu! Na verdade EU sou o dono do escritório! Estou tão atemorizado que tinha me esquecido...

Vou fazer o seguinte: entro no carro sorrateiramente para evitar de ser visto. Pronto. Entrei. Agora, dirigir para casa. Sei que aquela viatura da polícia parece me seguir. Estou no sinal. Noto que o flanelinha se aproxima e finge pedir dinheiro, mas, na verdade quer me atacar para tomar o carro. Vou arrancar daqui.

Agora, em frente. Pergunto a você, velho diário: por que será que todos me querem mal? Será que eu sou mau e todos são os bons? Mas, se todos são bons, porque querem me afligir? Então, agora, já sei: assumo que sou maléfico, tétrico e rancoroso; desumano, cruel e lancinante. Fico igual a todos e me livro da perseguição infame. Essa é a realidade.

Deve ser por isso que, de repente, muitas vezes penso que o mundo é real demais. Que realidade é essa, que mete medo?

Direto para casa. Cheguei.
 Estranho, minha mulher me recebeu com um lindo, terno e doce abraço. Minha sogra brinca alegremente com meus adoráveis filhos e me dá boa noite. Peraí, será que não percebo que as pessoas me querem bem?
As tornozeleiras eletrônicas e a conta do mentiroso
Emanoel Barreto

Leio no Estadão: BRASÍLIA - Foi publicada nesta quarta-feira, 16, no Diário Oficial da União, a Lei nº 12.258, que autoriza o monitoramento eletrônico de condenados nos casos de saída temporária no regime semiaberto e de prisão domiciliar. Esse tipo de monitoramento poderá ser feito, por exemplo, por meio de pulseiras ou tornozeleiras.



A lei determina que se o preso remover ou danificar o instrumento de monitoramento eletrônico poderá ter a autorização de saída temporária ou prisão domiciliar revogada, além de regressão do regime e advertência por escrito.

Quem estiver sob monitoramento eletrônico será informado das regras a serem seguidas. Também receberá as visitas do servidor responsável pelo monitoramento, terá de responder aos seus contatos e cumprir suas orientações.

A lei sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva altera o Código Penal e a Lei de Execução Penal para prever a possibilidade desse tipo monitoramento.
...........

Faz de conta que sou um numerólogo cínico que fez um cálculo e descobriu que essa lei não vai pegar. Quem vai pegar as algemas eletrônicas serão os bandidos. Vão pegar a jogar fora.

Veja os meus cálculos: a lei tem o número 12.258. Somando-se 1 + 2 temos 3. Este, por sua vez, somado com 2 dá 5. Esse 5 você adiciona ao outro 5 e temos 10. O mesmo 10 junte ao 8 e temos 18. Faça a subtração do 1 ao 8 e temos 7.

Sete é a conta do mentiroso. Entendeu por que a lei não vai dar certo?

Agora, deixando de lado a ironia - mas não tanto -, veja o seguinte: com a cultura que temos no país - somos a terra do jeintinho, lembra? - você acha mesmo que um sujeito que está na cadeia, um criminoso, vai respeitar uma geringonça, uma prótese policial apensa a seu corpo? Ora, se ele está preso porque exatamente é um bandido, porque iria dispensar essa fuga patrocinada?

E as punições?, você prestou atenção às punições? Algum preso vai se intimidar de receber uma simples advertência por escrito? Devem estar brincando...

Esse negócio de tornozeleira só funciona em filme de seriado americano. Lá os presos são bem-educados, são presos de Primeiro Mundo, sabia? É, é isso mesmo. Eles têm até "agentes de condicional". Os bandidos são deferentes, respeitosos. Em suma, são presos gentis, cheios de ademanes e salamaleques, entende?

Aqui, não. Aqui, a cambada vai dar im jeito de transformar as tornozeleiras em celular e criar um novo mercado negro para o setor. Pode esperar.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O DIÁRIO DE BICALHO

Caríssimo Diário,

Tenho a ligeira impressão de que estou sendo seguido por perigosos micróbios. Tenho a impressão não, tenho certeza de que eles estão me seguindo, aonde quer que eu vá. Hoje de manhã, ao tomar café, percebi uma nuvem de malíssimas micro-criaturas se acercando da minha xícara de café. Solertes, fugiram para dentro do frizer e lá os ataquei com um  extintor de incêndio, conforme vi no filme A Bolha Assassina.

Consegui matá-los a todos. Mas, quando já me preparava para um alegre desjejum, eis que ouço um horrível barulho do lado de fora da minha casa. Notei que um grupo de agentes microbianos tentava tomar minha casa de assalto. Deus meu!, gritei, quando vi que um deles, uma enorme ameba, de mais de quatro metros de envergadura, havia subido ao muro. E olhe que o muro da minha casa tem dez metros, eu disse dez metros, dez metros de altura.

Corri para a porta da frente, para ver se estava trancada. Estava. Sei que amebas são elementos perigosíssimos, especialmente amebas gigantes. Os piores micróbios são os micróbios gigantes, sabia? Jamais se meta com um micróbio gigante.

Pois bem: como disse, a porta estava tancada, mas a ameba estava tentando passar por baixo da porta. Amebas são peritas nesses atos ofensivos. Quando ela finalmente entrou, corri em direção à escada do primeiro andar. Foi pior: fiquei acuado: minha sogra descia de lá, munida de formidável clava e estava disposta a me golpear o crânio. Ela estava mancomunada com a ameba gigante, imagine então como é terrível aquela mente criminosa.

Minha sorte foi que, no exato momento em que a ameba ia me fagocitar eu acordei. Era um pesadelo. Mas, logo ao acordar, percebi que minha mulher afinal havia se resolvido a me matar. Escapei por pouco e fugi para o escritório, onde montei um bunker. Agora, meu problema é voltar para casa.
PS: Acredita que agora mesmo vi aquela ameba rondando o escritório?
(Leia amanhã a continuação deste diário)





Estão baixando o pau em Galvão. É bueno, muy bueno
Emanoel Barreto

Deu na Folha: Exibida com destaque logo que a bola começou a rolar para a estreia brasileira na Copa do Mundo, contra a Coreia do Norte, em Johannesburgo, uma faixa com a frase "Cala a boca, Galvão!" foi recolhida rapidamente nas arquibancadas do estádio Ellis Park, nesta terça-feira.

O adereço estava colocado exatamente no centro do campo, pouco acima das placas de publicidade, e endossava campanha iniciada no Twitter, desde a última sexta.

Bastou começar o jogo inaugural do Mundial na África do Sul, entre a equipe da casa e o México, que os temas ligados ao torneio já estavam entre os dez mais comentados no famoso microblog. E o assunto que liderava o ranking era justamente "Cala boca Galvão", referindo-se ao locutor esportivo da "Rede Globo".


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O REPÚDIO a Galvão Bueno "é a maior manifestação, desde as Diretas-Já", é o que andam dizendo no Twitter. A comparação, plena de ironia, de sarcasmo nascido de uma certa repulsa à figura imperial-ridícula do locutor da Globo, tem um quê de político em sua matriz profunda.

Figura icônica da hegemonia global, Bueno terminou por representar, com seus comentários cínicos, falaciosos, toda a essência perversa da rede dos Marinho. Não é ele quem, mesmo a Seleção fazendo jogos lamentáveis, insiste em que tudo está bem? Não é ele quem endeusava Ronaldinho, apesar de apresentações abaixo da crítica? Afinal, não é a Globo a emissora que inverte realidades, apresenta um país de faz-de-conta, alegre e fagueiro?

Na ditadura, o general Médici - isso está registrado historicamente - dizia que, ao assistir o Jornal Nacional via um mundo cheio de problemas, guerras, insurgências, fome e desolação, enquanto no Brasil "tudo ia bem", e isso o "tranquilizava".

Agora, com a campanha anti-Bueno, pode-se perceber o quanto aquele locutor é mal-visto. E o é exatamente porque as pessoas de alguma forma percebem difusamente que sua presença representa os interesses e a desfaçatez da Globo.
A mesma Globo que na campanha das Diretas-Já, após ocultar aquele movimento de massa, foi alvo do repúdio popular, quando as pessoas gritavam "o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo", e atacavam viaturas da emissora. A Globo, enfim, divulgou o movimento, mas dentro do seu padrão manipulatório: um repórter, em São Paulo, mostrava grande manifestação de apoio às Diretas como parte das comemorações do aniversário da cidade.

Parece que a figura icônica de Bueno está mesmo sob fogo pesado. Mas, não creio que a emissora o vá dispensar, até mesmo porque deve ter um contrato milionário e com alguma custosa cláusula penal, que desanimaria tal iniciativa.

Mas é bom que isso aconteça. Bueno, muy bueno.

terça-feira, 15 de junho de 2010

http://www.fcmessina.us/images/naked_women_soccer_team.JPG
So tem véia, só tem véia, no forró da Coreia
Emanoel Barreto

Só tem véia, só tem véia, no forró da Coreia.
A burocrática Seleção fez um baile tipo dois-pra-la-dois-pra-cá.
Nada parecido com um forró autêntico: quente, vibrante, remelexo, bate-coxa.

O previsível bolero resultou numa festa que, afinal, teve lá uma alegriazinha.
Assim: a moça aceitou dançar, mas botou macaco - aquela mão no ombro que impedia o rapaz de, digamos, chegar perto demais como se dizia no tempo em que se dançava bolero.

Esperemos que, na próxima, seja, no mínimo o Bolero de Ravel.
E com uma moça bonita. Dançando samba. Com Deus no coração e o Diabo no quadril.
http://rmtonline.globo.com/banco_imagens_novo/noticias/%7B38A2661F-A0F9-4B15-BC8B-4D7AA7599683%7D_futebol_gol.jpg
A sagrada oração do gol
Emanoel Barreto

 A Pátria de Chuteiras vai entrar em campo.
Oremos para que a alegria do gol, se houver,
abençoe e proteja os que gritam as exultantes lágrimas de cerveja.

Oremos todos no templo dessa emoção - sagrada e meio vadia.
Oremos por uma vitória envolvida no manto da Bandeira.
E saibamos que a nossa molecagem é também ritual de fé.

Adoremos a bola, essa matreira, e peçamos que ela,
como Deusa, nos ajude a comer, dia seguinte,
o pão amargo que a todos nós nos cabe.

Oremos, oremos muito,
pois nem só de gol vive o homem,
mas de tudo aquilo que lhe dá a Vida.

E, nessa vida, que a Vida nos dê em dobro
tudo aquilo que o futebol promete.

GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOL!


O DIÁRIO DE BICALHO

Querido Diário,

Estranho, muito estranho. Mas, hoje, amanheci incapacitado de pensar. Os pensamentos existem, sabia? Têm vida própria. Assim: os pensamentos, penso eu, são uns bichos que moram na nossa cabeça . Ééééééééééé... Ficam escondidos naquelas dobras do cérebro, na verdade cavernas onde se metem os pensamentos e, quando a gente menos espera, pá!, eles chegam e se apoderam de sua mente.

E, como hoje amanheci sem capacidade de pensar, temo que tenha acontecido o seguinte: os pensamentos são guardados pelo cérebro nas cavernas. Uma espécie de estoque, se  que me entende. E, se você pensa demais, se não economiza os pensamentos, plim!, os pensamentos... se acabam. Assim, acho que esgotei a minha capacidade de pensar. Gastei todos os meus pensamentos com planos e táticas inúteis para enfrentar as surtidas de meus inimigos. E, quando isso acontece, quem surta sou eu.

De qualquer maneira, penso que não pensar é uma forma de pensar. É isso! Matei charada. laAchei a pedra-de-toque: quando você pensa que não pensa você está pensando! Pronto! Voltei a pensar, entende? Voltei a pensar, Querido Diário!

E agora, dotado de minhas faculdades mentais plenas e argutas digo na sua cara: descobri uma coisa a respeito de você. Mais claramente, temo que não seja de confiança e esteja passando a algum louco as coisas que escrevo e que esse louco esteja publicando minhas dúvidas e incertezas.

E então, dotados dessas informações sigilosas, insidiosos indivíduos tratam de me atacar subrepticiamente. Se não fosse assim, como teria sido possível aquele atentado de ontem, quando um cadeirante investiu contra mim, brandindo infame punhal? Foi você, foi você, Diário, quem tramou o plano com o cadeirante!

Mas você não contava com a minha astúcia: ontem, sonhei com Dom Sebastião. E sabe o que ele me disse? Garantiu que não morreu naquela batalha de Alcácer Quibir. Aha-haaa!
Peguei você. Agora, quando notar que está traficando pérfidas informações a meu respeito, chamarei por Dom Sebastião. Sou um sebástico, sabia? E, se você e minha sogra me armarem emboscadas  e patranhas, gritarei a plenos pulmões: "A mim, d'El Rey! A mim, d'El Rey!"

Pensando bem, é melhor prevenir que remediar: "Socorro, Dom Sebastião! Socorro! Socorro, Dom Sebastião! Meu Diário quer me pegar!"




segunda-feira, 14 de junho de 2010


O DIÁRIO DE BICALHO

Querido Diário,

Cheguei ao escritório. Graças a Deus. Todos no trânsito queriam me assassinar. Primeiro um motoqueiro como cara de serial killer - devidamente encoberta pelo capacete, como é típico dos mal intencionados; depois, uma freira que atravessou a faixa de pedestres fingindo estar cabisbaixa. Na verdade, me olhava com o rabo-do-olho. Afinal uma babá me perseguiu, correndo como uma louca pela calçada, em paralelo. Certamente no carrinho de bebê não havia bebê, mas arma de grosso calibre, munição especial e alto poder mortífero. Escapei por pouco.

Neste exato momento meu chefe me olha fixamente. Deve estar premeditando a minha morte. Mas, pensando melhor, eu, EU! estou vendo a mim mesmo, refletido num enorme espelho decorativo que tem no escritório. Meu Deus! Eu, EU mesmo!, estou me olhando fixamente. Será que estou pensando em me suicidar?

O aniversário de Minha Filha Mirna

Hoje é o aniversário de Minha Filha Mirna. Jovem mulher feita de azul e paz, ela e Edgar, genro com atos de filho, deram-me como netos Eduarda e Murilo, dois pinguinhos de luz que encantam a meu olhar. Bela, altiva, digna e corajosa, tem alumbrado meu caminho.
Um beijo, Mirna.
Papai

domingo, 13 de junho de 2010

O disse-me-disse no jornalismo pró-Serra
Emanoel Barreto

Uma das coisas que mais debato com meus alunos em sala de aula é quanto à diferença entre fato de ação e fato de declaração. O primeiro é substantivo, é aquele acontecimento com começo meio e fim, é relativamnte imprevisível e dotado de carga dramática que intervém no quadro geral de valores de uma sociedade, em função de que proporciona quebra da cotidianidade: um acidente, um crime, um jogo de futebol.

Quanto ao fato declaratório é eivado de substância ideológica e, não estando preso a alguma forma de comprovação, exaure-se na sua simples assertiva. É caracterizado pelo verbo "dizer", como ocorreu com a manchete da Folha de hoje: "Governo banca esquadrão de militantes, diz Serra". Pronto. Está aí um fato declaratório clássico: alguém afirma, mas não prova, alguma coisa.

E o jornal, por aliança implícita com o candidato, o eleva à condição de manchete da primeira página. O acontecimento de assertiva, sem aquele vínculo com algum tipo de prova é uma ocorrência oca, vazia de maior sentido social, mas de qualquer maneira guinchado à manchete.

Isso não quer dizer que uma afirmativa não tenha em si valor jornalístico intrínseco. Mas isso somente se dá quando o ato frasal está enriquecido por circunstâncias graves, como a leitura de um veredicto, o discurso de ator social em momento histórico grandioso, como a conclamação pública contra um sistema ditatorial ou contestando alguma outra forma perversa de realidade sociopolítica.

No caso da Folha o pronunciamento de Serra foi apenas uma bravata, engravatando sua candidatura à presidência da República. Se o PT fizesse alguma acusação contra ele teria o mesmo destaque? Se você é aluno de jornalismo, pense a respeito.

O DIÁRIO DE BICALHO

Querido Diário,

Desde alguns dias venho notando estranhas transformações em minha sogra. Velhota arisca, espantadiça. Eu já vinha desconfiando de seus comportamentos há muitos anos, mas, ontem, tive a confirmação: a louca quer me matar, imagine só. Tarde da noite, quando saí do quarto para tomar água, flagrei a virago segurando enorme faca, igualzinha àquela usada no filme Psicose. Tremi.

Quando ela me viu, escondeu rapidamente a terrível arma em seu horroroso xale e deu-me um sorrizinho falso, sabe? Um sorrizinho de serpente. Não sei se você sabia, mas as serpentes sorriem antes de atacar suas vítimas. E eu, que sou uma vítima incorrigível, tomei cá minhas precauções.

Primeiro: não bebo mais café servido por ela. Pode ter veneno. Segundo: quando saio à noite pelos corredores de minha casa, uso sempre um colete à prova de balas velho que me foi dado por um amigo da polícia. Pode ser que ela tenha comprado um revólver. Terceiro: como não tenho em quem confiar para pedir conselhos sobre tais fatos ameaçadores, vou agora mesmo falar com a minha sogra.

Sabe por quê? Simples: somente um criminoso pode nos ajudar quando se trata de pedir socorro contra os criminosos. Vou perguntar: "Querida sogrinha, se a senhora fosse me matar como faria?". Espero que ela tenha a bondade de me informar. Afinal, isso demonstra o quando confio em sua inteligência e, claro, capacidade de me matar.

Respeitosamente,
Bicalho