quinta-feira, 20 de agosto de 2020


Ontem falei brevemente a respeito do Majó Theodorico Bezerra. Daí veio-me a ideia de resgatar crônica em que já o tivera como personagem. Leia abaixo.
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Às vezes penso conversar com mortos
Por Emanoel Barreto

Às vezes penso conversar com mortos. Mas não me intimido. São amigos meus, são fantasmas cordiais que me chegam à noite no escritório da minha casa; assentam-se e ficam a me olhar, como que deles cobrando recordações - querem saber se não os esqueci. Há pouco chegou-me o Majó Theodorico Bezerra,
gato rajado do mato sertanejo, homem do velho PSD. Perguntou-me do que dele eu me lembrava.

Contei-lhe que um dia, ele já então sem mandato, a política dobrada para sempre em seu embornal caatingueiro, eu o vira no Palácio Potengi, e ele aparentava ter a memória abalada pelo outono pesado e denso da velhice. 

Foi assim que o encontrei: ele caminhava pelo salão nobre do Palácio apoiado em rústico cajado. A seu lado um jovem carrancudo e de aspecto agreste lhe servia de amparo e guia. O Majó balbuciava uma algaravia de sons sem sentido. Perguntei se se lembrava daquilo: fez que sim com a cabeça, um sorriso irônico pintado em sua boca como que dizendo: fantasmas, ao contrário dos vivos, nunca ficam caducos.

Eu era repórter político da Tribuna do Norte e o segui naquela caminhada. O Imperador do Sertão estava cambaleante. O título grandioso lhe fora concedido em 1978 pela Rede Globo, em documentário de Eduardo Coutinho. Mas naquele instante, no Palácio Potengi, o Imperador já não mais tinha o pisar rijo de velho feito de aroeira-do-sertão. O Majó riu muito quando lembrei do fato. E confirmou: "É verdade, é verdade..."

Ele deambulava pelo salão, olhava os lustres, observava o assoalho de madeira nobre. Chegou-se a uma janela e de lá ficou olhando a Ribeira onde estivera encastelado no Grande Hotel, que dirigira há muit'anos, pagando ao Estado uma ninharia de arrendamento. Sorriu outra vez. Um sorriso de névoas. Coisa que que só
a um espectro é dado ter.

Depois foi a um salão menor, onde um enigmático piano repousava mudo. Nunca entendi aquele piano no Palácio Potengi. Talvez
à noite tocasse  sonatas para a escuridão do Poder que dormia. O Majó aproximou-se do grande instrumento e percutiu uma de suas teclas. Em meus muitos anos de repórter no Palácio foi o único som que ouvi daquele ser solitário; todo feito em madeira preta, criteriosamente preta.

Após ouvir o som do piano, 0 Majó, apoiando-se em seu servo, caminhou passos tardos até a larga escada de madeira, forte passarela que dava acesso ao primeiro andar do grande edifício do Poder. Desceu-a e perdeu-se para sempre da minha visão. Morreu dia 5 de setembro de 1994.

E hoje, quando a mim chegou, como outros fantasmas que são mais relembranças que espectros, pude afinal com ele fazer a última entrevista:
 "Majó, o que o senhor fazia naquele dia, lá no Palácio?"

E ele, com um riso de meia-lua, olhou-me bem nos olhos e respondeu placidamente: "Barreto, fui homem que teve de tudo, fui a Paris e lá estive em Pigalle e no Moulin Rouge, andei pela Índia e por outros cantos do mundo. Aqui, fui de tudo: fui Majó e Imperador, mandei e desmandei nas minhas festas na fazenda Irapuru, o povo dançando com a minha banda de música. Irapuru é o pássaro que canta e Tangará, cidade também minha, é o pássaro que dança. Também mandei em Natal e mandei ali, ali mesmo, no Palácio Potengi. Sabe o que eu estava fazendo lá, Barreto? Lá, naquele dia em que você, notando que eu estava caduco, me acompanhou calado?"

"Não, Majó" - respondi. Ele disse:

"Eu estava procurando o meu passado, Barreto. Um homem tem que ser dono do seu passado. Eu estava olhando ali para ver  se o passado tinha parado no tempo; se não tinham bulido naquelas coisas, naquele salão, naqueles cortinados, nos lustres, naquele piano, na porta que dava para o gabinete do governador. No chiado do chão de madeira. Eu estava vendo, Barreto, se o passado estava em dia."

 "E estava, Majó?" - emendei.

"Estava, Barreto, estava. O passado estava em dia. Estava tudo no seu lugar. E outra coisa: em política não há gratidão nem reconhecimento. Em política é o acerto, é o acordo e é o dinheiro. Depois, é andar ligeiro. E insisto: em política o passado sempre está em dia..."

Deu boa noite e esfumaçou-se no silêncio do meu jardim. Um vento frio invadiu o escritório e me gelou a alma. Fui obrigado a beber uma dose de uísque caubói.
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Nota: À época registrei em crônica a visita do Majó ao Palácio Potengi. Foi como que uma premonição; poucos dias depois ele morreu. A crônica teve como título "O Majó veio ver se o passado estava em dia".



terça-feira, 18 de agosto de 2020


Política é o dinheiro, é conversa muita e o pé ligeiro

Por Emanoel Barreto

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), intenta permanecer no cargo por mais dois anos mesmo havendo proibição para que isso ocorra na mesma legislatura.

Mas o sonho de Alcolumbre tem pés plantados na solidez da realidade: Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, também estaria com idêntica disposição – e ele está, segundo sugere o noticiário. Assim, poderão unir forças em torno da mesma convergência de ideias, caso a situação venha a ser judicializada junto ao Supremo. 

O exemplo é bastante elucidativo de como funciona a política brasileira: como algo de propriedade de quem a saiba manejar, conheça seus meandros e esteja de acordo com a cultura política nacional. Resumindo: há uma compreensão de que política é um negócio como outro qualquer, e ponto.

As atividades partidárias, sejam no parlamento ou no executivo, foram tornadas uma espécie sui generis de carreira profissional: os eleitos têm aposentadoria, plano de saúde e, suprema alegria, podem literalmente dispor do dinheiro público como se aquele fizesse parte do seu patrimônio pessoal – e faz, termina fazendo. 

A intenção de continuar presidente do Senado mostra como o negócio do Poder é, além de tudo, sedutor o suficiente para que seus detentores queiram perpetuar-se. 

As Casas legislativas e o executivo são como haréns do Poder onde os mandatários, a exemplo dos antigos sultões, têm a seu dispor todos os prazeres que julguem necessários a seus apetites e desejos. E são muitos os que querem se satisfazer.

Ninguém se envergonha de usar para si as alturas decisórias, ninguém se cobre com o manto do respeito ao que se costumou chamar de coisa pública; é lamentável, mas a nossa cultura política, rasteira e patrimonialista, conseguiu se transformar em entidade institucional e consolidou em direito – e em dinheiro – o que em outros países seria considerado afronta e crime.

 O ambiente onde se plantam procedimentos como pagamento de moradia e mimos como passagem de avião e cota de combustível tornou-se a sala enevoada em penumbra suspeita, onde se permitem todas as licenças, negociatas, acertos, conchavos. Historicamente o noticiário é prova disso.
Esse é o país que temos. A política tornou-se uma endemia, os mandatos são delícias incuráveis. Não há previsão de melhora de quadro.

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Política é o dinheiro
Certa vez, há muitos, muitos anos, eu conversava informalmente com o então deputado estadual Theodorico Bezerra, raposa velha do tempo de Getúlio Vargas. Lá para as tantas ele revelou-me sua definição de política. Disse: “Barreto velho, política é o dinheiro, conversa muita e o pé ligeiro.” Riu muito e tomou mais uma dose do seu uísque. O Majó, como era conhecido, já partiu. Mas as práticas são as mesmas. 



O perigo da volta às aulas
Por Emanoel Barreto

Enquanto pesquisa Datafolha anuncia que 79% dos brasileiros dizem que a reabertura das escolas agravará a pandemia o Sindicato das Escolas Particulares do RN insiste no retorno às aulas. A entidade está em conversações com a Secretaria de Educação que “já relatou não ter impedimento quanto ao retorno das aulas presenciais das escolas privadas antes da rede pública”, segundo a Tribuna do Norte, edição de hoje.

A mesma Tribuna do Norte informa que especialistas em infectologia “passaram a se preocupar, após uma notificação do Ministério da Saúde no dia 20 de julho, com a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica, que acomete crianças e adolescentes de 0 a 19 anos e que pode estar relacionada à covid-19.”

O jornal detalha que estão sendo programadas medidas sanitárias e de prevenção visando a volta às aulas, que ainda não têm data marcada.
E voltando-se às aulas as medidas serão suficientes? Ou são apenas parte de um discurso para racionalizar e tornar aceitável o perigo a que as crianças estarão expostas?

Há informações de que o Rio Grande do Norte está apresentando queda no número de casos e que leitos estão sendo desocupados, o que nos dá algum alívio. Mas, pergunto: a governadora Fátima Bezerra vai topar o risco de que morra uma criança, uma só criança por efeito de haver retornado à sala de aula e ali ter sido contaminada? Vale a pena o risco?

Fátima não é tola, vem agindo com prudência e segurando o retorno às aulas; sabe que havendo qualquer fato grave com as crianças seus opositores terão todos os motivos para dizer: “Eu já sabia. Ela também sabia e mesmo assim jogou as crianças de volta às aulas.”

Nenhuma medida de proteção à covid-19 é garantia absoluta, especialmente quando se trata de aglomeração maior ou menor. 

A respeito do assunto a Folha traz opinião de Claudia Cotim, ex-diretora de educação do Banco Mundial: “Ainda não estabilizamos o número de casos e não paramos de crescer, por isso é precipitado anunciar a volta das escolas. Mesmo países que haviam controlado a pandemia tiveram uma segunda onda de contágio com a retomada das aulas presenciais, imagine o que pode ocorrer aqui.”

Creio que não há como controlar crianças em um colégio. As brincadeiras, o contato pessoal, tudo isso representa um risco. O vírus é invisível, mas é perfeitamente observável o sofrimento de quem o contraiu e adoeceu.
Trazer de volta as aulas é como alguém querer participar de uma corrida de touros em Pamplona, Espanha, e pedir certificado de que nada de mal lhe acontecerá enquanto corre pelas ruas sob perseguição de poderosos touros Miura. 

Diante do que disse, sugiro: se forem mesmo trazer de volta as aulas creio que antes seria bom combinar com o coronavírus.