sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

Mais de mil palhaços no salão

''Coloquei minha casa sobre o nada
e por isso o mundo me pertence.''
(Johann Wolfgang Goethe)

E então, chegou o Carnaval-Brasil. Há festa e a seca se serve do sofrimento do homem no sertão. Mais de mil palhaços no salão.

Chegou o carnaval e os bandidos, no Rio, alvejam os passantes em vigança à morte de um traficante. Mais de mil palhaços no salão.

É carnaval e as crianças esmolam nos sinais. Há fome e ranger de dentes. Mais de mil palhaços no salão.

É carnaval: os hopitais públicos são locais de sofrimento e dor. Os planos de saúde comerciam a medicina e fazem da saúde uma mercadoria. Mais de mil palhaços no salão.

O carnaval chegou, os tamborins estão tocando as cuícas roncando e os gringos chegam para o seu período de orgia. O turismo sexual dá lucros e quadrilhas se enriquecem. Mais de mil palhaços no salão.

O carnaval está aí. Meninos e meninas são usados como objeto sexual, servem ao dinheiro e a seus adoradores. Famílias se dobram ao peso da miséria. Mais de mil palhaços no salão.

Evoé, Momo! Os produtores de álcool exploram o povo e vão ganhar muito dinheiro. A gasolina, com menor teor de álcool em sua mistura, deverá subir de preço, dizem os noticiários. Mais de mil palhaços no salão.

O carnaval está em todas as alegrias. Mas alguém vai morrer depois de comprar alguma droga a um traficante; uma menor será ofendida e humilhada por um turista rico; o grande capital financeiro quer dominar os destinos do País; as universidades continuarão precisando de dinheiro e um idoso estará sofrendo em alguma fila, implorando alguma miséria assistencial oficial. Mais de mil palhaços no salão.

Depois, quarta-feira-de-cinzas: Mais de mil palhaços, mais de mil palhaços...



O jornalista e poeta Walter Medeiros manda o poema "Zé Pereira", lembrando os velhos carnavais. Abaixo:

Viva Zé Pereira,
Português danado,
Cabra sem enfado,
Pela vida inteira.

Viva o Carnaval,
Que tanto admiro,
Mas já me retiro,
Não me leve a mal.

Viva aquele samba,
Feito por Martinho,
Que canto baixinho,
Querendo ser bamba.

Viva a lembrança,
Do pó, do confetti,
Caetano, Zé Kéti,
Serpentina e lança.

Viva Paulo Maux,
Nosso eterno Rei,
Nunca esquecerei,
Mas sei que passou.

Viva nossos clubes,
De lindo passado,
Que está gravado,
Bailes que iludem.

Viva uma saudade,
Cá neste meu peito,
De amores sem jeito,

E de felicidade.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

A mordaça dos loucos, o silêncio da imprensa

Antigamente as coisas eram piores.
Só que, depois, foram piorando mais um pouco.”
(Paulo Mendes Campos)

Início dos anos 80, eu chefiava a reportagem da Tribuna do Norte e tive a oportunidade de conviver com uma jovem e talentosa repórter, Josimey Costa, e com um instável, mas também genial fotógrafo, Paulo Barossi, um rapaz que um dia fazia fotos espetaculares, mas, dia seguinte, furava a pauta e, na falta de um bom material, me dizia, estendendo a mão cheia de fotografias velhas: “Veja aí, Barreto, lá no arquivo tinha isso.”

Pois bem: certa vez, pautei a dupla para uma matéria no Hospital João Machado, o Hospital Colônia, para constatar suas condições de funcionamento. Eles foram, mas chegando lá, foram barrados na portaria. Eu pensei: “O que o pessoal do hospital tem a esconder? Aí tem coisa...”

E dei a seguinte ordem a Josimey e Barossi: “Vistam-se de branco, como se fossem acadêmicos de medicina e revirem aquele hospital. Vamos ver o que de tão ruim há, para ser oculto.”

Eles foram. Foram e viram tudo o que se passava no hospital. À entrada, sequer foram perturbados e, lá dentro, deram um show de jornalismo investigativo, jornalismo de flagrante. Juventude e decisão de fazer jornal de denúncia, jornal a favor do ser humano, jornal contra a humilhação dos pobres, loucos e desvalidos.


Eles foram e viram seres humanos reduzidos a condições miseráveis, doentes nus jogados em camas imundas, doentes perambulando como almas penadas, pessoas presas em celas gradeadas. Doentes estendendo-se as mãos, como que tentando, através do contato físico, compensar o tratamento humano e necessário a que tinham direito, mas ao qual não tinham acesso.

Se a loucura é uma forma de dor, e se a dor é condição mais presente da condição humana, de alguma forma somos todos loucos. Mas os deserdados da loucura, em sua autenticidade solitária, ali não tinham direito ao gesto afetivo, ao abraço longo, ao carinho amigo.

O Colônia era um inferno. Uma espécie de campo de concentração de pessoas mentalmente insanas levadas à indigência. Era um espetáculo dantesco. Estava aí o motivo pelo qual o Colônia era um tabu, um local secreto, fechado, impossível de dar acesso aos olhos de imprensa. Mas, a decisão dos repórteres em fazer a matéria era tamanha, que eles literalmente se fizeram invisíveis aos olhos dos funcionários e médicos e vasculharam tudo.

Andaram por salas, corredores, perpassando todo o horror do hospital. As fotos, em preto e branco, capturavam toda a dramaticidade daqueles instantes de sofrimento e abandono. Até que... foram descobertos. Estavam avançando sobre a cozinha, quando alguém afinal desconfiou e os flagrou. Ali, finalmente descobertos, após a magnífica matéria, foram identificados como jornalistas e retirados.

Ainda bem que não houve qualquer retaliação violenta dos funcionários do hospital contra os repórteres. A dupla voltou, vibrando, com uma produção digna de qualquer grande publicação: pela indignação do conteúdo do texto que Josimey produziu e pelas fotos de Paulo Barossi trouxe - creio que essas fotos ainda hoje existem no arquivo da Tribuna.

Denúncia pura, brutalidade flagrada, desumanidade exposta aos olhos da cidadania.

Só que (também decepção para mim), a direção do hospital intercedeu junto ao comando supremo da Tribuna e a matéria simplesmente foi parar na cesta seção (o cesto de papel, onde na época, eram jogados os textos imprestáveis).

Na época eu também era jovem e vi esfumaçar-se num acordo de diretores todo o esforço de uma talentosa tarde jornalística.
Nota do redator: creio que, hoje, o hospital esteja em melhores condições.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

O Brasil virou um show. Fiquemos todos felizes

“Eu não creio em Deus, é verdade.
Mas nem por isso sou ateu.”
(Albert Camus)
Vivemos hoje a sociedade do espetáculo e do simulacro. Não vou entrar em discussões acadêmicas sobre esta visão de mundo. Este é um artigo jornalístico, não um ensaio. A comprovação, no Brasil, foi o recentíssimo show dos Stones, e as apresentações, hoje e amanhã, do U2, cujo líder , Bono Vox, visitou o presidente Lula.
Vamos por partes: quanto aos Stones, ocorreu o que qualquer pessoa de bom senso poderia antever: foi um espetáculo pleno de vigor encenado, referências musicais programadas, atitudes de uma rebeldia desengavetada e sempre renovada a cada apresentação. Ou alguém pensa que Jagger está criticanto padrões estéticos, comportamentos convencionais e outras coisas do tipo?
Jagger é um capitalista e está administrando, muito bem, seu capital: financeiro e midiático. E está se dando muito bem. O show vai virar DVD, foi visto ao vivo nos Estados Unidos e outros países e muita gente ficou pensando que participou de um "acontecimento histórico". Mas, histórico como? Onde estavam a essência, a irreverência, a força de uma mensagem de contestação?
Houve sem dúvida um espetáculo bem feito, profissional, impecável, como compete a grandes artistas. A emoção é que foi plastificada, embalada e vendida: a grandes empresas e à prefeitura do Rio.
Por outro lado, outros grandes do rock estão no Brasil. O pessoal do U2 fará suas duas apresentações. Enquanto isso, o líder teve audiência com o presidente Lula. Puro marketing, de parte a parte. O cantor tem fama de participar de espetáculos beneficentes e ergue sua voz contra injustiças sociais. Muito bem.
Mas, daí a ser recebido por um presidente de república, vai uma grande distância. Não creio que nenhum conselho de Bono tenha tido o condão de dar a Lula algum tipo de iluminação, aberto o caminho para o nirvana político, social e, por que não, ético.
O roqueiro aproveitou a oportunidade para cultivar sua imagem de campeão de causas da pobreza universal e o presidente também teve o seu ganho: politicamente correto, recebeu um artista globalizado. Esperemos que este tenha dado conselhos sobre como acabar com a viôlência dos criminosos que infestam o Rio de Janeiro.
Enquanto isso, fomos redescobertos. Agora não mais os portugueses para trocar bugigangas com os índios. Pelo menos como porto para celebridades. Depois, eles vão embora. A fome fica, a corrupção persiste, o morticínio se mantém. Mas, pelo menos, damos ao povo pão e circo.