segunda-feira, 20 de março de 2023

Luta sem trégua contra o crime organizado

Por Emanoel Barreto

Pouco a pouco a presença do aparelho policial vem reduzindo a ação dos terroristas em Natal e interior do estado. A par disso, o ministro da Justiça e Segurança, Flávio Dino, anuncia recursos da ordem de R$ 100 milhões para aplicação em segurança pública este ano no Rio Grande do Norte.

As boas notícias, contudo, não nos permitem esquecer que o combate ao crime organizado é ação de longo prazo; mais que isso, é objetivo permanente, uma vez que a forma sofisticada e complexa da atuação do bandido, o modo de pensar coletivizado de seus integrantes constituiu-se, ao longo do tempo, numa espécie de locus ideológico que age em contrafação à sociedade.

Colocando as coisas de outro ponto de vista: o bandido atua segundo ordenação, cumpre determinações cegamente, sente necessidade de assim agir uma vez que em seu cotidiano é doutrinado pelos seus líderes, a quem respeita e admira.

A sociedade brasileira precisa compreender que vai longe o tempo do assaltante solitário, da quadrilha avulsa, do desocupado que levava roupa de varal. As coisas agora são bem diversas: o bandido é inimigo interno, é antissocial, vê na sociedade o inimigo a quem busca defrontar de todas as formas: tráfico, assaltos, sequestros...

De outra parte, é preciso compreender que tais indivíduos surgiram das contradições internas da sociedade brasileira, de suas injustiças sociais históricas, do descalabro da corrução instalado no Estado e nele tornado coisa orgânica. Assim, criaram-se as condições para que o crime organizado, num processo de mimese, passasse a agir como se fora empresa, com escalonamento estatutário, objetivos e metas, organização de pessoal, chefias e exemplos a serem seguidos.

A isso podemos aduzir o aspecto de criação de vínculos de familiaridade, solidariedade, presença de amparo e apoio aos integrantes que estejam em dificuldades, atendendo a problemas que vão desde questões de saúde, até assistência advocatícia, por exemplo.

Essa situação, em toda a sua complexidade, traz o crime a um patamar perigosamente superior: a soma de todas as organizações criminosas passa a ser uma instituição no mundo paralelo do banditismo, uma vez que imbricadas de um sentido de busca de permanência na vida cotidiana e proatividade no espaço histórico. Buscam uma representatividade social perante o mundo paralelo que criaram. Consideram-se à parte da sociedade e são seus inimigos declarados.

Sendo assim, a ação do Estado brasileiro deve levar em conta que combater tais entidades deve ser interesse nacional permanente, o que inclui melhoria nos presídios e na vida dos presos, programas de reinserção e, disso não se tenha dúvida, ação firme e implacável contra o crime organizado, o que se fará com uma polícia bem treinada, bem paga, equipada e isenta de corrupção pelos participantes das entidades criminais.

sábado, 18 de março de 2023

Os bandidos não são vândalos, são terroristas

Por Emanoel Barreto  

Estranhei muito na propaganda do governo estadual o uso da expressão “violência orquestrada” para definir a onda de terrorismo que vem espalhando terror e angústia na população de Natal e interior do estado. Claramente: não há violência orquestrada, mas terrorismo; este é o termo exato, uma vez que trazer instabilidade, incerteza e desespero social é a intenção dos bandidos.

Sei que é grande, visível e sincero o esforço mobilizado pelas autoridades para enfrentar os terroristas, mas não é com o uso de eufemismos que a periculosidade daqueles será amansada e minorados os efeitos dos seus atos bárbaros. E sim, acredito que os interesses sociais prevalecerão.

Quanto à realidade que vivemos, a definição exata do terrorista enquanto tal urge como forma de dar credibilidade ao discurso do governo do estado. A tal orquestração colocaria o celerado na condição de vândalo, o desordeiro reles que por motivos quaisquer destrói patrimônio público ou privado. Não é o que se dá.

Não tratamos com vândalos, ao invés, enfrentamos tipos de alta periculosidade, convictos de que fazem parte até mesmo de uma missão: a defesa dos interesses das irmandades criminosas às quais sentem-se ligados por esse execrável sentido de honra imbricado às facções.

É como se seguissem algum tipo de preceito assemelhado à omertà, o código de honra dos mafiosos do sul da Itália, que é sustentado por um inabalável sentido de família e vínculos inquebrantáveis de lealdade – a seus pares e ao crime, sua atividade finalística e razão de existir. Em alguma medida as facções brasileiras têm esse comportamento. O RN que o diga.

Prova de que não são vândalos:  notícias dão conta de que membros de facção atacaram e incendiaram duas casas em Igapó. Pessoas pobres foram arrancadas de seus lares tarde da noite e em instantes suas moradias foram destruídas pelas chamas ateadas pelos infernais criminosos. Informa-se que um comerciante, dono de pequeno armazém, foi morto, o mesmo ocorrendo com um policial penal.

Não, não há qualquer sentido de orquestra, o que por si só pressupõe, sorrisos, festividade, alegria; o que ocorre é o massacre da paz social, a destruição do esforço de pessoas que lutaram anos para comprar uma casinha ou abrir o próprio negócio.

Foi muito infeliz a escolha da expressão violência orquestrada. Não se disfarça o que pode ser percebido, não se engana o que está a olhos vistos. Linguagem evasiva, a escusa de uso do termo “terrorista” não vai retirar da alma social o terror que ela já vive – as pessoas sabem que estão sendo vítimas de atos de brutais – em suma, terror.

As pessoas sabem que não há violência sob orquestração; já vivem o medo como prova contrária a isso. Há terror e pronto. Mas já que estamos falando de orquestra sou levado a crer que os músicos criminais tocam apenas um instrumento: tocam o terror em acorde perfeito maior, para desespero e incredulidade de suas vítimas.

 E para encerrar: como vivemos um pandemônio, creio que na tal orquestra o pandemônio é o pandeiro do demônio.

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

 O dia em que Natal virou Kiev

Por Emanoel Barreto

Natal deixou de ser a Noiva do Sol, como a chamava o escritor Luís da Câmara Cascudo, e hoje já a podemos chamar de Kiev. A luz do sol, intensa e bela, é substituída à noite pelo clarão dos incêndios, pelo terror, pela destruição, desordem e uma aparente inexistência de ação tático-preventiva da polícia para impedir o descalabro.

A ação dos bandidos, segundo diz o noticiário, é uma resposta das quadrilhas a um recente trabalho de captura de criminosos pelas autoridades visando a desarticulação do poderio de suas facções nos presídios. Além disso, os detentos alegam maus tratos e péssimas condições carcerárias. Juntanto as duas coisas veio o barril de pólvora que agora explodiu.

Mas a questão, neste texto, é que faltou prever-se a reação dos bandidos. E agora vivemos o medo que se alastrou por todo o estado com a rapidez de uma labareda. Caso houvesse ação preventiva seria possível impedir a ocorrência dos incêndios a ônibus e até mesmo o monstruoso incêndio a um depósito de medicamentos em São Gonçalo do Amarante, um prejuízo de dez milhões de reais.

Os bandidos, em sua suposta ânsia de garantir direitos humanos básicos, expõem sua face mais dura e brutal. Voltam-se contra pessoas indefesas e prejudicam, no caso do depósito incendiado, aqueles que precisam de medicamentos e não os podem comprar.

Diante disso, podemos supor que a principal necessidade, o núcleo duro dos atos de agressão, que transfiguraram Natal em uma Kiev, seja acima de tudo manter a força e a presença do crime organizado dentro e fora dos presídios. Tais organizações tenebrosas, em seu arcabouço essencial, operam uma estrutura de disciplina e hierarquia ao mesmo tempo que criam em seus membros um sentimento de pertença.

Os componentes das facções são “irmãos” entre si, têm fictícios laços de afetividade familiar. Isso cria sensação de ordem interna e solidariedade, respeito e desgraçada honorabilidade entre pares.

O resultado dessa forma de agir e de pensar caricaturou Natal numa Kiev tropical, com suas ruas percorridas com desenvoltura por tipos que atacam de forma inesperada e fogem. São como fantasmas que brotam de algum lugar, trazem terror e desespero e escapam, como por artes de algum lamentável encanto.

O noticiário fala num esforço das polícias em ação coordenada.  Esperemos que isso venha a se concretizar em medidas eficazes. Caso contrário, Kiev, quero dizer Natal, estará enfrentando esse exército de algozes sem saber quando isso irá acabar. A Ucrânia, quero dizer, o Rio Grande do Norte, precisa vencer essa batalha.

Não podemos ficar nas mãos de quem quer transformar nossa cidade num inferno. Queremos de volta a Noiva do Sol.

 

 

quinta-feira, 16 de março de 2023

Medo nas ruas: bandidos levam a sério o terror e não estão para brincadeira

Por Emanoel Barreto

As atitudes bárbaras e atrevidas dos criminosos que estão aterrorizando o estado nos passam uma mensagem; com esses atos eles dizem que têm potencial e capacidade para agir a qualquer tempo e hora, em qualquer lugar ou instante – e que suas ações serão sempre imprevisíveis e certeiras. Sintetizando, eles enfatizam que sua assertividade inclemente e hostil não terá limites na busca de intimidar e espalhar terror e chamas.

A partir dos presídios, dizem os noticiários, seus líderes costumeiramente conseguem enviar mensagens de convocação e orientação, como uma espécie de comando tático. Na verdade, o que os bandidos estão dizendo é o seguinte: eles são criminosos, não moleques, ou seja: eles se levam a sério, fazem bem-feito o seu serviço.

Esse o ponto de vista dos agressores: eles se gabam de sua expertise enquanto a autoridade age como se fosse moleque, pois não teria trabalhado direito. E tal situação se dá pelo fato de que, historicamente, a Segurança não consegue impedir que mensagens cheguem ou saiam das celas. Isso facilita às tenebrosas organizações criminais possibilidades de atitudes tão ostensivas.

Os bandidos reivindicam para si um inimaginável, espantoso senso de compromisso profissional; mais que isso: exigem deferência pelo medo que infundem. É como se dissessem que o crime é uma entidade séria, que respeita sua própria hierarquia e disciplina. E, enquanto as autoridades são dribladas, crescem a desordem e o medo.

Aparentemente, o aparelho policial do Rio Grande do Norte falhou em seu setor de inteligência, pois revelou-se incapaz de antecipar a ação coordenada e aterradora que se espalha. Ou seja: o crime organizado cumpriu o seu propósito, a polícia não.   

Incrível: bandidos exigindo deferências à sua expertise criminal, sua ética enviesada, seus valores de confronto. A polícia, isso está claro, vem respondendo e está nas ruas. Mas valeria a pena ter frustrado esses atentados. Isso, se os serviços de inteligência tivessem ficado mais atentos.

segunda-feira, 13 de março de 2023

O direito de ser bandido e

o doce charme das elites

 

Por Emanoel Barreto

 

A violência no Brasil é sistêmica, complexa e, pela forma como se apresenta - organizada e enraizada-, dificilmente será vencida.

Vejamos: é preciso entender que a violência está dentro dos presídios mas mantém firme conexão com os atos criminosos que se dão fora deles, inter-influenciando-se mutuamente.

Além disso, as causas históricas do fenômeno criminal permanecem inalteradas secularmente, num perverso processo de marginalização que leva muitos à prática de delitos como se aquela fosse forma aceitável de viver.

As causas históricas manifestam-se nos baixos salários pagos pela iniciativa privada – e no seu inverso: os segmentos estamentais eternizados em situação privilegiada: régias remunerações contemplam o judiciário, a alta oficialidade das forças armadas, políticos profissionais e setores do funcionalismo público.

Junte-se a tal fato a corrupção perpetrada pelo alto empresariado junto a agentes públicos – agregando-se a isso a sonegação de impostos – e temos a receita social perfeita e o caldo de cultura exato a propiciar o encaminhamento do indivíduo socialmente desvalido ao crime.

Com o Estado aparelhado e tornado meio de vida para os privilegiados, todo o dinheiro que deveria estar ao dispor da sociedade vai parar em poucas contas bancárias. Simplificando: falta dinheiro para as funções sociais da instituição estatal.

E muitos jovens que vivem um cotidiano de privações e fome compreendem-se como membros de alguma forma de sociedade marginal e passam a vivenciá-la. Entendem-se como se tivessem o “direito” de ser criminosos.

Ou seja: nas favelas e arrabaldes esse tipo de pensamento passa a ser compartilhado, torna-se um valor, uma espécie de crença, uma maneira de experienciar a existência e uma forma de ser no mundo.

Então, imbuído de tais princípios, o indivíduo passa a cometer atrocidades com grande desenvoltura e sem qualquer senso de culpa. Torna-se convicto. Mata e agride com a mesma naturalidade que um trabalhador ergue uma parede ou pega um ônibus de volta à casa. É o “direito” de ser criminoso.

Entre os criminosos e os privilegiados há um abismo profundo. As elites não estão dispostas a ceder seus privilégios; os bandidos reagem e buscam espaço. E  o resultado é o que temos: presídios explodindo, o terror batendo à sua porta. Mas as elites, protegidas, sabem o que são: as elites protegidas.

O Estado não tem como garantir ao trabalhador integridade física, bem-estar, sossego, tranquilidade, saúde, educação, cultura, transporte, dignidade.

Também não consegue ser eficaz na busca de levar adiante ações repressivo-preventivas para enfrentar aqueles que estão no caminho do crime, ofendendo os que trabalham.

E chegamos ao atual ponto: uma situação insustentável, especialmente pelo fato de que os criminosos já vivem seu sentimento de pertença a um grupo e entendem a sociedade como sua presa legítima.

Caso não haja uma profunda revisão de valores, caso os dinheiros públicos não venham a ter devida aplicação ;e mantendo-se – como serão mantidos– os privilégios e a corrupção, a tendência do quadro é de constante agravamento.

O “direito de ser criminoso” crescerá, e os bandidos, identitários e armados, continuarão a disseminar a violência e a morte. E as elites continuarão em seus castelos, protegidas e felizes.

sábado, 11 de março de 2023

 Para ter as joias Bolsonaro fez de tudo, só esqueceu de dizer: “Abre-te, Sésamo!”

Bolsonaro cometeu erros gravíssimos durante suas tentativas desastradas de receber o colar e os brincos da mulher, Michelle. Literalmente um presente das Arábias, as joias não foram liberadas pelos processos, digamos, normais, usuais, legais, burocraticamente aceitáveis, eticamente exigíveis.

Usaram-se o prestígio da condição presidencial, a força do cargo, o jeitinho brasileiro, a manobra salafrária, a atitude matreira, enfim, todos os atos e gestos de dribles e ademanes malandros para a obtenção de vantagens indevidas.

O motor de tudo isso tem nome: ganância, necessidade de ter, vontade de dispor de bens, acumulação de riquezas fabulosas, domínio de presentes encantadores, ganho de preciosidades, mimos e maravilhas da pedraria e ourivesaria.

A tudo isso sob as luzes – ou penumbras – de algo que veio... exatamente de onde? Da Arábia, um reino que ainda vive sob o domínio do absolutismo, encoberto pelo manto escuro do domínio arbitrário, o local dos grandes senhores do deserto e seus magníficos corcéis, um país no qual o imaginário ainda pode vaguear como num deslumbrante passeio de tapete  mágico.

E talvez tenha sido esse o erro de Bolsonaro. Não aproveitar as oportunidades e maravilhas lendárias. Ele bem poderia ter pedido o apoio de Ali Babá, um cara tão esperto que conseguiu ludibriar os quarenta ladrões, lembra?

Qualquer criança já leu que bastou o velho e bom Ali Babá descobrir as palavras mágicas, “Abre-te, Sésamo!” para, Oh...!, chegar à felicidade de ter  um inestimável tesouro. As tais palavras, magnífica fórmula mágica, lhe deram acesso à caverna onde quarenta famosos ladrões ocultavam seu butim milionário, que aumentava dia a dia.

Tão fácil!, e Bolsonaro não lembrou disso. Por que não perguntou aos príncipes árabes onde encontrar o bondoso Babá e pedir suas orientações? Por quê? Por quê? Por quê? Jamais saberemos sobre esse deslize mnemônico.

Caso tivesse lembrado poderia também entrar em contato com Aladim. Lembra de Aladim, não lembra? Sim. Aladim, o ardiloso jovem dono de um tapete mágico, e pedir que ele trouxesse o tesouro de forma silenciosa e rápida a Brasília. Nada de Alfândega, a chateação daqueles agentes implicantes, nada disso. Ah! Por que não falou com Aladim?

Haveria ainda outra ajuda preciosa, Simbad, o marinheiro. Sei que Simbad é de Bagdá, mas dava para pedir ajuda, não é mesmo? Ele bem poderia vir por mar, ancorar em alguma praia isolada desse imenso Brasil e entregar as joias sem problema algum. No segredo da noite, no silêncio das lendas, sob a luz da lua e o brilho estelar mais belo.

E afinal, porque Bolsonaro não instruiu seus, podemos dizer prepostos?, a aprender com Ali Babá para que, chegando à Alfândega, agissem de forma rápida e direta. Bastava dizer “Abre-te, Sésamo!”. As portas da aduana seriam descerradas, os caras pegavam o bagulho e iam embora. E pronto: missão cumprida.  

sexta-feira, 10 de março de 2023

Bolsonaro, o magnífico farsante

Por Emanoel Barreto

O bolsonarismo vive uma crise de identidade. Seu ídolo, seu mito, tinha os pés de barro, que se esboroou e já deixa claro que era apenas uma figura tosca balbuciando um discurso trôpego, um enunciado sem mensagem ecoando os valores do senso comum, daí sua penetração e consolidação.

Agora, quando começa a se esfumaçar a imagem do líder,  falsificada pela oportunidade do momento histórico em que se deu a campanha em que foi eleito, o PL, seu partido, chega inexoravelmente a uma pergunta: “E agora?”

A festa acabou, o samba passou, a alegria esgotou-se, a mensagem de brutalidade está seguindo ladeira abaixo, as coisas vão mal, muito mal. O presente de Ali Babá e seus 16 milhões transformou-se num cavalo de troia que desmonta o mito e seus mitômanos.

E o bolsonarismo, então, tenta desesperadamente uma resposta à sua própria pergunta e pretende testar uma resposta: ante a iminente possibilidade de ele tornar-se inelegível estão pensando em colocar em seu lugar a mulher, Michele Bolsonaro.

Trata-se de substituir uma embuste por outro, pôr um simulacro no espaço antes ocupado por um fingidor. Esquecem-se de que a História é irrepetível: um certo momento marcado por intensidades e propostas – por mais aloucadas e estúpidas que sejam – jamais se repete. Ninguém conseguirá fingir o embuste Bolsonaro tão bem como ele.

A farsa pertence ao farsante, somente ele conseguiu produzir o desastre pleno, a derrocada exata e desastrada da tentativa de depor a democracia.

Será inútil a intentona do PL: por mais que Michelle tente, não conseguirá atingir o as alturas da insanidade do marido. Ele foi o magnífico farsante, o mais completo pregoeiro da desgraça – e fez isso muito bem.

 Líderes, mesmo os mais mal-ajambrados, não se fazem nos laboratórios das agências de propaganda. É preciso ter competência até mesmo para ser incompetente, é preciso ter o desejo sincero de ser um arremedo de condutor e presidente.

Ela não conseguirá repetir Bolsonaro. Falhará miseravelmente. Não tem liderança fora do seu acanhado círculo de atuação, não tem o carisma troncho do marido, não vai chamar às ruas a desordem e o golpismo como fez Bolsonaro. Será melhor desistir, antes de preparar a sua própria derrota.

Bolsonaro, ao que tudo indica, começa a passar. Todavia, precisamos ter cuidado com os restolhos que, lamentavelmente, está acumulados, na sarjeta da História. A História não se repete, mas pode criar novos monstros. Certamente outros, profissionais da política, já estão de olho no butim.

 

 

quinta-feira, 9 de março de 2023

 como nos últimos dias tenho escrito muito sobre Luís da Câmara Cascudo aproveitei para fazer o resgate de texto do jornalista Audálio Dantas, que entrevistou o professor. Segue na íntegra. – Emanoel Barreto

Câmara Cascudo e aquela do papagaio

AUDÁLIO DANTAS

Na manhã de 18 de junho de 1970 ainda se viam nas ruas de Natal uns restos dos festejos da véspera pela vitória da seleção brasileira nas semifinais da Copa do Mundo, no México, sobre a seleção do Uruguai, por 3 a 1. Grupos vinham da zona do porto, embandeirados, em direção ao centro da cidade, cantando "Pra Frente, Brasil", uma espécie de hino que teria sido sugerido pela ditadura militar. 

Ao passar pelo casarão em que vivia Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), numa rua da Cidade Alta, um bêbedo enrolado numa bandeira brasileira se destacou do grupo e gritou: "Desça, professor. Venha festejar com a gente. Enfiamos três no Uruguai!". 

O professor, Luís da Câmara Cascudo, era uma espécie de monumento vivo da cidade. Eu acabara de ser recebido em sua casa, um elegante chalé, construído no início do século 20. Ele foi até a uma janela, acenou para o grupo e voltou, aos risos: "Eles nem imaginam, mas eu nunca assisti a uma partida de futebol". 
Futebol, uma paixão brasileira, era um dos temas que eu tinha anotado para a entrevista que deveria fazer com ele para a revista "Realidade". O assunto estava quente, conforme acabavam de demonstrar os grupos que passavam festejando. Um bom começo de conversa, mas Câmara Cascudo, um sábio, tinha muito o que conversar, além do futebol. 

E eu, muito o que perguntar, pois a reportagem que me coubera fazer trataria das paixões do brasileiro. Cascudo era o homem certo para responder sobre o assunto. 

Para começar, ele tratou de me deixar à vontade, acho que por ter percebido em mim uma ponta de ansiedade. Afinal, eu estava diante de um dos intelectuais mais importantes do país, especialista em várias matérias -história, antropologia, folclore, etnografia-, autor de mais de cem livros. 

Mas ele disse, como se fosse um igual: "Eu também fui nego de jornal". Começara no jornalismo muito cedo, aos 19 anos, em "A Imprensa", de propriedade de seu pai. E, sabe como é, "a gente começa e não larga mais; dizem até que é uma cachaça". 

Trabalhou também em outros jornais, "A República" e o "Diário de Natal", publicando artigos diários. Nos anos 1960 já havia publicado quase 2.000 textos. 

Nossa conversa se estendeu por mais de duas horas. Aos 71 anos, Cascudo falava com o entusiasmo de um menino, às vezes inflamado ao mencionar, antes das paixões, as qualidades do brasileiro. Em alguns momentos, quase discursava e, como professor que era, estendia-se em explicações. 

Várias vezes, ao tentar explicar alguma questão mais complicada, quase chegava a se irritar, mas logo amansava a voz. Por exemplo, ao ser perguntado sobre a alimentação dos brasileiros. "Não tenho como resumir o que estudei durante 30 anos e que está contido em dois volumes de um livro", respondeu, referindo-se à sua "História da Alimentação no Brasil" (1967). 

Mas continuou a conversa, exaltando a capacidade de adaptação do brasileiro. O futebol, que naqueles dias mexia com o país inteiro, paixão que levava milhões a torcer pelo tricampeonato, foi inventado pelos ingleses, mas aqui virou mania nacional. 
Enquanto na Inglaterra era mais um esporte, aqui tomou conta da alma do povo. Da alma e dos pés dos moleques que improvisam dribles em terrenos baldios. Mas não é só improviso, não. 

Foi difícil evitar o individualismo no jogo, mas os nossos atletas se adaptaram às técnicas de conjunto. "Para muitos deles, tirar a bola do pé e passar para outro, renunciando a uma jogada individual, era como emprestar a mulher, mas terminaram cedendo, em benefício da alegria do gol, que é do time em campo e da arquibancada e se esparrama pelo país inteiro", analisou. 

A fala, as lições de Cascudo se estendiam sobre paixões e, sobretudo, qualidades que ele exaltava nos brasileiros. Por exemplo, a improvisação que muitas vezes se sobrepõe à tecnologia. 

Citou como exemplo a chegada a Natal, durante a Segunda Guerra, de máquinas escavadeiras, trazidas pelos americanos. Para cuidar delas, um monte de técnicos, especialistas em seus mistérios. 
Não demorou para que mulatos raquíticos passassem a dominar os segredos dos equipamentos, manobrando-os com destreza. Viraram senhores da máquina. "Seria o famoso jeitinho brasileiro?", perguntei. Resposta: "No caso, a inteligência supria a técnica, impedindo que o cabra fosse condenado à especialização". 

A entrevista terminaria com uma história de papagaio. Cascudo pediu a ajuda de sua mulher, Dahlia. "Conte aí a versão brasileira da história de Chapeuzinho Vermelho." A versão, informou ela, é invenção de uma neta de cinco anos, que se impressionara com o triste destino da avó de Chapeuzinho. 


Deu um jeito e passou a contar assim: o lobo bateu na porta, a avó se preparou para abrir, mas o papagaio da casa avisou: "Não abra não; é o Lobo Mau".

Conclusão de Cascudo: "Coisa de brasileiro. Onde é que Perrault ia arrumar um papagaio tão sabido?". 


terça-feira, 7 de março de 2023

 A maldição de Brinquedo do Cão

Por Emanoel Barreto

Edmilson Lucas da Silva era o nome de um bandido mais conhecido como Brinquedo do Cão. Tornou-se famoso em Natal nos anos 1970, quando praticava assaltos, fugia, e depois mandava os amigos comprar os jornais para que ele lesse as manchetes que relatavam suas proezas. 

Como sei disso? Ele mesmo me contou, disse isso, numa das entrevistas que mantivemos e riu, riu muito, lembrando o que considerava, no início, muito mais uma molecagem que um crime. 

anos depois li que Brinquedo fora morto na Paraíba, com um tiro de espingarda no rosto. Aparentemente acerto de contas com traficantes.

Ainda nos anos 70, lembro, certa vez ele foi capturado e levado ao quartel da Polícia Militar.

Os jornalistas foram chamados, e pouco depois lá estava eu, frente a frente com aquele jovem que um padre havia apelidado de Brinquedo do Cão, tantas haviam sido as traquinagens que ele fizera nas imediações da igreja onde o sacerdote oficiava suas missas. Como não aguentava mais aquela presença incontrolável, o padre, numa expressão de raiva, gritou: "Esse menino é um brinquedo do cão!" Pronto, nascia ali um bandido, com apelido que virou marca.

Antes de ser preso e levado à PM sua fuga fora da Colônia Penal João Chaves, hoje demolida; e a prisão se dera poucos dias após. Baixote, expansivo, falava com clareza e tranquilidade, ao contrário de muitos bandidos; são  tipos monossilábicos ou que falam tão depressa que mal dá para o repórter fazer as anotações.

Tipo: “Como é seu nome?”

E cara responde: “ZéFrancisdaSilv!”

“Foi preso por quê?”

Na lata, ele diz: “Fiumrôb.” Isso quer dizer dfiz um roubo. E por aí vai.

Então, na entrevista com Brinquedo ele me contou de suas desavenças com inimigos na Colônia, disse que tinha “preparado um ferro”, uma espécie de lâmina ou ferro pontiagudo para se defender, masgarantiu que não queria "matar ninguém". Era somente aquilo: se defender. Fiz aquela entrevista e mais umas outras e nunca mais o vi.

Conheci muitos bandidos ao longo de minha carreira, Brinquedo do Cão foi apenas mais um. Há algo de trágico no homem criminoso, no ser humano que por qualquer motivo se devota à transgressão. Qualquer repórter que convive com essas pessoas, entra em presídios, vai a delegacias, percorre ambientes barra-pesada sente isso.

Há algo de triste e deplorável na condição humana, na queda, na imersão, no afundamento, no baque. Quando um repórter sai de uma penitenciária, após uma entrevista ou terminada a cobertura de um motim, leva na alma um pouco do perverso, do malévolo, do ódio e da dor que ali habita. Aquilo gruda em você. É ruim. Muito ruim.

E depois de sair da frente do crime e voltar para casa o repórter, muitas vezes, quando a noite é mais escura, chora.  Não um choro literal. Mas a sensação terrível de perguntar-se e não ter resposta: por quê? Um choro seco, sem lágrimas, mas cheio de um soluçar que lhe pergunta: por quê?

 

segunda-feira, 6 de março de 2023

 Cascudo delirava e dizia: “Você é um dos engenheiros mais jovens?”

Por Emanoel Barreto

Quando a Tribuna do Norte passou a offset, a 13 de outubro de 1979, a direção do Segundo Caderno ficou comigo, chefiando uma equipe que tinha entre seus talentos o colunista Franklin Jorge e uma jovem aluna de jornalismo, Christiana Coeli, filha da poeta e jornalista Miriam Coeli e do jornalista Celso da Silveira. Quer dizer, a menina tinha a quem puxar. Porém, se faltava experiência, sobravam empenho e vontade de fazer jornal.

O caderno era dedicado a cultura e serviço, e funcionava como uma redação à parte: tinha repórteres, fotógrafo e um bamba na ilustração, o cartunista Aucides, que também diagramava. Contava ainda com a presença de um articulista especializado em música popular brasileira, de nome pomposo e grandiloquente: Odosvaldo Portugal Neiva. Tinha vindo não sei de onde e fora contratado pelo jornal. Produzia enxurradas de textos que chegavam a ocupar quase uma página.

Pois bem, certo dia Christiana foi pautada para fazer uma entrevista com o mestre Luís da Câmara Cascudo sobre algum tema de cultura popular. Pois bem: ela saiu e voltou. Como uma flecha.

Fiquei surpreso com a rapidez, mas ela me explicou por que a matéria não havia dado certo: “Barreto, não deu para entrevistar o professor porque ele estava com uma dor de cabeça fortíssima, estava tonto e mal se aguentava em pé.”

Foi o suficiente para disparar em mim o alerta vermelho. Eu respondi: “Christiana, uma dor de cabeça desse tipo, em mim, preocupa a minha família e talvez algumas pessoas amigas. Só isso. Mas uma dor de cabeça dessas em Cascudo, com ele não podendo nem ao menos ficar de pé, preocupa o Estado inteiro ou quase isso."
 
Ato contínuo, segui com um fotógrafo para o estacionamento do jornal em busca de um carro. Não havia carro. Chamei uns táxis, ninguém parou. Então, saí correndo da Tribuna até a casa do professor; o fotógrafo, esbaforido, correndo atrás. Quem conhece Natal sabe que a casa onde morava Cascudo fica razoavelmente próxima à Tribuna do Norte, na Ribeira. Mas, ir até lá, correndo, já são outros quinhentos.

Bom, mas cheguei à casa do mestre. Fui atendido por Dona Dahlia, sua mulher, que me disse: “Barreto, venha cá, depressa. Me ajude a cuidar de Cascudo, que ele não está bem."

Mandei que o fotógrafo esperasse fora da casa e fui com ela ao quarto onde o professor estava. Fiz isso a fim de respeitar sua privacidade. Eu não queria um drama sensacional. Somente chamaria o fotógrafo caso o bom senso assim o indicasse, e sob permissão de Dona Dahlia.

Quando entrei no quarto onde ele estava vi a seguinte cena: Cascudo estava de pijama, deitado numa cama imensa, os olhos semicerrados; delirava. Dona Dahlia estava quase em pânico. Parecia não haver mais ninguém em casa. Ela lamentava o calor. Temia que isso fosse deixá-lo ainda pior. Disse-me: “Segure a cabeça dele enquanto dou os comprimidos.” Levantei a cabeça do professor e esperei que ela trouxesse os medicamentos.

Ele não me reconheceu e disse: “Quem é você? Você é um dos mais jovens, não é? É um dos engenheiros?”

A pergunta deu-me a dimensão exata da situação. Senti que tinha de agir com muita prudência pois ali, mesmo sendo um jornalista era também uma pessoa que estava ajudando a prestar socorro a ninguém menos que Luís da Câmara Cascudo. Sintetizando: era preciso um respeito sagrado.

Mas, respondendo à pergunta dele, eu disse: “Sim professor, eu sou um dos mais jovens. Sou um dos engenheiros. Vim aqui para ajudar.”

Ele continuou a dizer, agora baixinho, coisas que eu não compreendia. Observei os esforços dedicados de Dona Dahlia nos cuidados com o marido. Ela trouxe enormes, redondos e vermelhos comprimidos que ele engolia um a um, deitado. Creio que o total foi de quatro comprimidos. A água era servida por ela num copo grande.

Ele tomou a medicação, fez mais alguns comentários sem sentido e reclinou a cabeça, dormindo em seguida. Ao mesmo tempo em que ajudava no atendimento eu anotava mentalmente os nomes dos comprimidos, observando os rótulos das caixas onde estavam os frascos. Como fiz uma espécie de jornalismo participante, ou seja, integrei a cena do começo ao fim, tinha plenas condições de relatar o fato.

Dona Dahlia me agradeceu, eu dei uma última olhada no mestre e saí do quarto. Perguntei a ela pelo menos três vezes se poderia publicar a matéria e ela disse que sim. Voltei ao jornal sem uma foto e sem qualquer anotação, mas com a notícia toda na cabeça. 

O assunto era sério e devia ser tratado com grande contenção no texto. Fiz uma matéria seca, direta, de forma a não passar ao leitor a impressão de que Cascudo estava à beira da morte e entreguei o texto à editoria de Geral, pois, como era uma notícia do cotidiano, não era tema do Segundo Caderno. 

 
Horas depois, todavia, a família de Cascudo recuava e chegava à direção do jornal um pedido para nada fosse publicado; disso fui informado. O texto foi sobrestado e perdeu-se o registro a quente daquele momento intenso. Detalhe: o texto tinha apenas meia lauda. Não alardeava nenhuma doença terrível, não apregoava nenhum infortúnio, nem mencionava os detalhes que conto agora...

domingo, 5 de março de 2023

Minhas conversas com Cascudo, quando ele ensinava: “Todo homem é digno do seu tempo”

 Por Emanoel Barreto

 Conversar com Cascudo era descobrir um tempo velho passando à minha frente. Era mergulhar na história arcaica escrita pelo povo em suas vivências, eternamente sertão. Era virar páginas e páginas inteiras de cores, fandangos, jangadas, bichos e gentes; vozes de acá, nascidas ibéricas ou africanas. Conversar com Cascudo era perscrutar a vida no seu mais íntimo significado de coisa humana e bela, humana e triste – humana, humana, humana...

Conversar com Cascudo eram tardes alongadas, quando ele me ensinava, envolto na densa nuvem azulada do charuto: “Barreto, todo homem é digno do seu tempo.” Ou seja: nós construímos nosso tempo – vamos arcar com as consequências. E completava: “Plantar é colher...”

Conversar com Cascudo era descobrir um homem feito de sabedoria. Conversar com Cascudo era viajar o chão do sertão, a brenha secreta da caatinga; cruviana esfriando o passo do cavalo do vaqueiro em noite de plenilúnio: arrepio com medo de lobisomem.

Conversar com Cascudo era alumbrar-se com as visagens, os cantos do povo, os aboios, a comida da terra; caçuás, canga e cantiga de botar menino para dormir. Conversar com Cascudo era ouvir o tempo severo do Nordeste em sua eterna e serena espera pela chuva criadeira.

Conversar com Cascudo era ouvir o sábio que se confessava “um provinciano incurável”, morador desta Natal tão dele e tão pequena. Conversar com Cascudo agora é uma saudade, quando a vida já não anda em cavalo baixeiro e estamos todos à mercê e ao léu do não-sei-mais.

Cascudo não está mais aqui, já não tenho quem me mande “baixar noutro terreiro” após cada entrevista. Mas nunca esqueci quando ele uma vez me disse: “Vá baixar noutro terreiro, Barreto; mas, quando quiser, pode voltar...”

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

 Cascudo e o lobisomem

Por Emanoel Barreto

Uma das coisas que mais gostava de fazer quando repórter da editoria de Geral da Tribuna do Norte era entrevistar Luís da Câmara Cascudo; para mim Mestre Luís da Câmara Cascudo. Dali, de sua casa na grande subida da Junqueira Ayres, o Professor via o Potengi amado e descortinava todo um mundo de lendas, mistérios, cantigas e danças, credos e medos que o Homem brasileiro tem guardado dentro de si.

 Certa vez, pautado para entrevistar o Professor, passei uma bela tarde conversando. Terminamos falando exatamente sobre lendas e crendices populares. As coisas do povo, a fé do povo, o medo irracional que nos acompanha a todos e se aflora nos momentos de tensão ou insegurança.

Ele me falou do Saci Pererê; disse que o molequinho, em tempos outros, fizera medo a muitos e comparou essas épocas passadas com o tempo em que a entrevista transcorria (anos 70) e lembrou: o medo do Saci se transformara no medo da perda do emprego, no terror da altíssima inflação que então corroía o país.

Explicou o Mestre que o medo persiste na humanidade, mas se apresenta sob formas variadas dependendo do estágio em que se encontre uma certa sociedade. E vieram outras lendas: a Caipora, o Bicho Papão, a Mãe d’Água, a Boitatá, o Lobisomem, ah, o Lobisomem.

Sobre a Boitatá – me lembro como se fosse hoje – ele comentou:

“Bicho grande, cobrona que brilha de noite reluzente toda pela luz dos olhos dos bichos que já comeu. Os olhos ficam brilhando dentro da cobra, meu filho... E disso o povo tinha medo, porque nisso o povo acreditava. Porque uma boa parte do medo é construída dentro da gente.” E completou: “Hoje, a boitatá é a inflação”, e deu uma de suas gargalhadas envolto na fumaça do charuto.

Sentado em sua cadeira de espaldar alto, largos apoios para os braços, o Professor foi servido de água por Dona Dhália, sua mulher. Nisso, ele virou-se para mim e disse: “Já estou quase mandando você baixar em outro terreiro” (era com essa expressão que ele gaiatamente expulsava seus entrevistadores). E disparou de letra: “O que mais você quer saber?”

Perguntei: "O senhor acredita em Deus?", ao que ele respondeu: "Acredito em Deus, quero bem a Nossa Senhora, tenho medo de lobisomem." 

Fiquei espantado: “Professor, o senhor tem medo de lobisomem?” Sorrindo, após mais um fumarento aspirar do charuto, respondeu. E sua voz tinha um tom sombrio, como a recitar um pesado sortilégio de quem sabe de tudo. Disse:

Não, meu filho, não. Aqui dentro desta casa, sentado em minha cadeira, nesta cidade do Natal, sob a proteção das luzes que nos cercam, digo a você que não. Mas, no sertão, numa noite de lua, numa sexta-feira aziaga, a cruviana* me rondando, o vento assanhando a crina do cavalo, digo que sim. Numa hora dessas, Barreto, eu digo que sim:  sim Barreto, eu tenho medo de lobisomem. E agora, vá baixar noutro terreiro!”

·       Cruviana: vento frio das noites nordestinas. Termo hoje em desuso.

 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

De repente a PF baixou no Diário de Natal e queria “falar comigo”

Por Emanoel Barreto

O ano era 1985 ou 1986, sei lá. Eu era repórter de política do Diário de Natal. Certo dia, ao entrar na redação, vindo da Assembleia Legislativa, fui surpreendido pelo hoje saudoso jornalista Luciano Herbert com a seguinte informação: “Barreto, Albimar – Albimar Furtado, diretor do jornal – me disse que dois agentes da Polícia Federal estiveram na sala dele para saber se você trabalha mesmo aqui. Ele confirmou que você trabalha aqui e os policiais o tranquilizaram dizendo que estava tudo bem, era só para saber se você é mesmo repórter do jornal.” E completou: “Fique tranquilo, não há problema algum...”

A informação me soou no mínimo estranha: dois caras da PF terem o trabalho de ir a um jornal só para garantir a um repórter que as coisas estavam bem é meio esquisito, não é?  Pelo menos eu acho. Porque, até onde sei, não é papel da polícia procurar cidadãos, acalmá-los, dizer-lhes que está tudo bem e ir embora. Pelo que sei, polícia quando sai é para investigar ou pior, prender...

Diante de tão esquisita situação fui à sala de Albimar. Ele afirmou angelicalmente a mesma coisa que Luciano: “Não, não se preocupe: realmente eles estiveram aqui, falaram comigo, confirmei que você é do jornal, eles disseram que ‘está tudo bem’ e foram embora. Não se preocupe. Eles queriam falar com voce, mas como você não estava... Mas, está tudo bem, viu?”

Respondi: “Se você está dizendo...” e fui para a Redação preparar minhas matérias. Mas, fiquei pensando: como é que dois experientes jornalistas são tão ingênuos a ponto de não perceber que havia algo a mais no ar, e pelo jeito não eram apenas mosquitos?

Enfim, diante da candura dos meus colegas dei também o caso por encerrado e fui trabalhar. Dias depois, uma surpresa: o mesmo Luciano informou, agora com cara de preocupação: “Barreto, um oficial de justiça veio aqui lhe procurar. Você está sendo processado não sei por qual crime e precisa assinar um documento oficializando que sabe do processo.”

Eu disse “o quê?!!!!” E ele: “É verdade.”                                                   

Pensei: “Eu num disse? Não estava tudo bem: Luciano era realmente um ingênuo e Albimar era um doido.” Mas, não sei bem por quê, não dei muita importância ao fato e fui redigir meus textos. Afinal, eu não havia feito nada de errado e segui em frente. Dois dias depois o oficial de justiça procurou-me novamente, eu não estava e ele se foi. Mais uns três dias e repetiu-se tudo: o sujeito me procurava e eu sempre fora, cumprindo pauta.

Dessa vez, porém, deixou uma ameaça: eu deveria dirigir-me à repartição onde ele trabalhava e assinar o documento de citação. Era isso ou o processo ia correr à minha revelia. Em suma: eu estava lascado.

Então, caiu a ficha. Sabe Kafka? Já leu O processo? Foi assim que me senti: estava sendo processado e não sabia o motivo, igualzinho ao livro. Mas, diante da mudança de quadro peguei o carro e fui procurar o tal funcionário. Encontrei-o, tomei conhecimento do crime pelo qual era acusado, assinei o papel, peguei a minha cópia da citação e fui embora. Sim: e ele ainda me deu um aperto de mão. E disse a frase fatal: “Agora está tudo bem.” Na verdade, era exatamente o contrário: agora eu era, literalmente, um homem na mira da lei.

E o meu crime: ter publicado uma notinha na coluna Roda Viva, de Cassiano Arruda, que estivera fora alguns dias e eu fora seu interino. A tal nota, minúscula, na parte inferior da coluna, informava a respeito do resultado de uma pesquisa sobre intenção de voto numa cidade do alto-oeste potiguar. Especificamente, o crime estava no fato de que a pesquisa não havia sido registrada no Tribunal Regional Eleitoral. Eu não atentei a isso e publiquei.

Alguém, que nunca soube quem foi, representou contra mim a partir desse fato. Suspeito que tenha sido algum dos candidatos que ficaram em segundo e terceiro lugares.

A informação sobre a pesquisa me fora passada por um colega jornalista, velho conhecido meu. Não lembrei de perguntar se o material fora autorizado pela Justiça para publicação, ele não tocou no assunto e deu no que deu: uma mera informação, sem qualquer propósito de beneficiar qualquer lado, estava me levando às barras do tribunal.

Mais uns dias e fui prestar depoimento à Polícia Federal. Cheguei lá e disse: “Boa tarde. Vim aqui para ser interrogado.” O recepcionista, muito atencioso, disse: “Tudo bem. Venha por aqui.” Novamente “tudo bem”, percebeu?

Pensei: por que tudo o que vem para me lascar vem precedido de um “tudo bem”? E caminhei ao lado do rapaz da PF.

Fui levado a uma grande sala cheia de birôs onde fui recebido por dois senhores de gravata, as mangas das camisas sociais arregaçadas. Eram dois delegados. Eu supunha que ia ser um interrogatório truculento, cheio de perguntas capciosas, mas não. Foram feitas perguntas objetivas visando saber se eu tinha interesse na eleição de alguém e se era filiado a algum partido político. Tudo nesse tom. Jogo limpo.

Sim, ao chegar já encontrei Albimar me esperando ao lado de um advogado do jornal. Tinham vindo dar-me assistência jurídica e eu nem havia pedido. Claro, o jornal tinha obrigação de me apoiar, mas eu sequer havia pensado nisso. Uns 20 anos depois, em cerimônia na UFRN, agradeci publicamente a Albimar durante o lançamento de um ebook que tratava de perfis biográficos de jornalistas, eu e ele citados no livro.

Bom, passada essa fase da PF viria a etapa em que eu seria inquirido por um juiz e um promotor. E lá fui eu, trazendo o colega jornalista como minha testemunha de defesa. Aí, o juiz disse: “Já li muitas das suas matérias, gosto muito das suas crônicas, mas vou ter de processá-lo, certo?”

Respondi solenemente: “Sem problema. Estamos aqui para isso, Excelência.” O magistrado seguiu um roteiro mais ou menos idêntico ao dos delegados da PF. O problema para ele é que praticamente não havia base para a acusação, a não ser a questão técnica de a pesquisa não ter sido registrada. E as perguntas, assim, não me levavam ao canto do ringue, digamos assim.

Explico: eu não morava na cidade onde fora feita a pesquisa, não tinha ali qualquer vínculo político ou familiar, sequer conhecia os candidatos. Na verdade não conhecia ninguém lá e a notinha era graficamente insignificante: tinha uns dois centímetros de altura por dois centímetros de largura, publicada no rodapé da coluna. Objetivamente: eu não tinha qualquer interesse no resultado da eleição nem nunca buscaria beneficiar a quem quer que fosse utilizando o jornal onde trabalhava.

Em minha defesa tive o cuidado de apresentar aos autos uma declaração formal do chefe do setor de circulação do jornal atestando quantos exemplares haviam sido vendidos na cidade no dia da publicação da nota: cinco. Miseravelmente, cinco exemplares estavam me jogando naquela situação. Uma briga paroquiana e mesquinha tinha virado um imbróglio para mim.

O problema, na sequência dos depoimentos, foi quando o colega jornalista foi chamado a depor. O juiz jogou uma isca e ele caiu. Foi feita a seguinte pergunta: “O Sr. acha que o articulista deveria ter publicado essa nota, divulgando uma pesquisa que não tinha registro?”

Em vez de engatar uma resposta que me defendesse, ele agiu como um jogador de várzea: aquele que tem tudo para fazer o gol, a trave está aberta, o goleiro batido, mas, em vez de chutar a bola o sujeito chuta o chão.

Sabe o que minha testemunha disse? O seguinte: “É... pela experiência dele, né?...” Ou seja, eu deveria ter tido precaução. Eu pensei, “meu Deus, mas foi ele quem me passou a informação. Podia ter dito que me conhecia, que era sabedor de que eu jamais iria usar do jornalismo com finalidades escusas.” Mas fez a pixotada, e por um momento senti as coisas se complicando.

Eu já estava começando a pensar que ia sair dali algemado e com um saco preto na cabeça, quando o juiz encerrou o interrogatório. O promotor também fez umas perguntas, deu-se por satisfeito e aquela cena terminou. Claro que não sai algemado nem nada.

Dias depois saía a sentença: além do meu advogado até o promotor pedia a minha absolvição. Às vezes comento sobre esse assunto com minha mulher e digo, brincando: “Minha filha, eu espero que os caras da PF não se arrependam de não terem me prendido e reabram o processo. Já pensou se, de repente, chega aqui em casa uma dupla de policiais federais procurando por mim, e avisando: “Ei rapaz, fique tranquilo que a gente veio aqui só pra lhe avisar que está tudo bem...”?