sexta-feira, 30 de julho de 2021

 Nuvens e café com leite

 Por Emanoel Barreto

 “Aprendi a delirar aos poucos, por intuição e gosto.”

  Quem me disse isso foi um amigo a quem o vulgo gosta de chamar de louco. Não o chamam assim por considerá-lo louco na exatidão do termo. Nada disso. Chamam-no louco por entendê-lo como, digamos assim, discrepante, estranho, não-alinhado, incomum. Chamam-no de louco aqueles tristemente dotados de absoluta e rude incapacidade de chegar até aonde ele chegou em gesto e poesia.

 O meu amigo é pintor, mas também gosta de escrever. Escreve com pincéis quando lhe dá na telha e pinta com palavras quando assim o entende. É um homem realizado espiritualmente. E isso lhe dá condições de ser como é. 

 Meu amigo é um senhor de grandes mestrias. É sensível, requintado, ético. Bebe licores finos, sabe tocar oboé e cravo. Sua mulher tem o nome de Charlotte. E a seu lado vive cada momento como uma pequena eternidade. 

Às vezes gosta de meter-se no ambiente dos comuns para deles ouvir as conversas ásperas e grosseiras. E, claro, concordar com tudo apenas acenando com a cabeça. Após, tem ataques de riso que controla à força de tragos de legítimo Bourbon. 

 Meu amigo é intenso e de alguma forma perigoso, pois desafia o senso comum, a mediocridade, as coisas tidas como algo que "deve ser como é".

 Acabou de informar-me que está na Tailândia. E disse que comprou um biplano. Legítimo exemplar de avião do tempo da Primeira Guerra Mundial. Mais uma de suas extravagâncias. Pretende voar para algum local distante. De lá, prometeu, irá a algum ponto alto. Alto, muito, muito alto. Bem acima das nuvens... 

  “E depois?”, perguntei. 

 Depois, depois não sabe. Mas, parece-me, vai descer, aterrissar num ponto remoto da África central e encontrar-se com uns sobas, líderes de nações primevas e ancestras. Quer entender com eles o sentido da vida. 

 Gostaria de ser como ele. 

Somente para saber como é pegar um pedaço de nuvem, misturá-lo com o ar frio das alturas e mastigar sem pressa aquele manjar inesperado. E saborear, na imensidão do espaço, nuvem e café com leite...