quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Bens a penhora

Quando o oficial de justiça chegou àquela casa para executar mandado de bens a penhora encontrou tristezas. O devedor havia morrido na noite anterior e seu corpo jazia no caixão, centro da sala. Cumpridor, o zeloso funcionário não recuou: apresentou-se à viúva e exigiu a entrega de um bem pela dívida de dois mil reais. Em desespero a mulher disse que não tinha o que dar, lembrando que se o marido devia ao Estado era exatamente por não ter dinheiro.

Mas o oficial de justiça não se deu por vencido. Queria levar qualquer coisa, mas tudo que pedia a mulher dizia que era coisa essencial à família: geladeira, rádio, toca-discos, TV, camas, roupas. Nisso, o homem, para não sair sem levar nada, pediu o caixão onde estava o morto. Afinal, ninguém ali precisaria daquele utensílio. Pelo menos era o que se supunha.

Aí, um sobrinho atalhou: pega o caixão mas tem de levar o morto junto. Negócio sério: leva o caixão ganha o defunto como bônus. O oficial de justiça recusou, dizendo que aquilo era transferência de ônus ao Estado, de acordo com a lei nº 899. 88678777.88789,78787999.9990.998.776353444.6968688.9898900?99, uma das mais severas e respeitáveis leis do mundo. Mas o sobrinho insistia: pega o bem, paga bem. Pagar bem, no caso, representava levar o corpo, claro. Formou-se grande alarido e a família gritava: - Le-va! Le-va! Le-va!

Nisso, um vizinho se aproximou da confusão e cochichou alguma coisa no ouvido do oficial de justiça. Em menos de um minuto ele pôs o caixão nas costas e já ia fazer carreira com defunto e tudo, quando o vizinho disse a um dos familiares do morto: - Ele vai ficar rico - e começou a rir. Perguntaram por que ria e respondeu que havia indicado ao funcionário da justiça o endereço de um sujeito que praticava vudu e pagava bem por um corpo em bom estado.

Foi o suficiente para que a família, aos gritos, partisse atrás do oficial de justiça que foi agarrado, já na esquina, chamando um táxi. Ele soltou o caixão e atracou-se com a viúva que gritava: - Roubando morto dos outros, rapaz?!! Está louco?!! Onde já se viu isso?!!

O oficial reagia: - O morto é meu! Veio de bônus! Além disso, ele vai ser um bom zumbi e pode até fazer carreira em filmes de terror. Dizem que zumbi ganha muito bem, viu? Não quer um bom futuro para o seu marido que lutou tanto na vida? Deixe ele comigo. Depois, pode assistir aos filmes dele. E de graça, que família, nesses casos, tem a preferência!

Enquanto isso os filhos e o sobrinho do falecido corriam a recolocá-lo no caixão. Acontece que o homem do vudu estava por perto. Ele sabia de todas as mortes da cidade e sempre acorria aos enterros querendo negociar com a família. Por bons preços, óbvio. Mas como havia chegado atrasado e aquele escândalo já estava parando o trânsito, não seria bom para os negócios falar em dinheiro, dado o alto nível de exaltação da mulher e dos filhos, além da presença de testemunhas - muitas, por sinal.

Resolveu então agir como se fosse um bondoso homem de religião. Aos gritos de "acalmai-vos, ó meus filhos!", aproximou-se e disse que levaria o corpo para "um bom lugar". Todos caíram na emboscada e acataram brandamente aquele tratante. Quando ele saiu, entretanto, recomeçou a luta da mulher contra o oficial de justiça. Ela e o funcionário, refeitos do logro e percebendo que haviam sido enganados passaram a berrar: - Quero meu morto! Você me fez perder o meu morto!

Distanciando-se da briga, o homem do vudu afinal chegou à sua casa e, num quarto escuro, largou o corpo e o caixão. O problema é que o homem morto na verdade estava em transe cataléptico, voltando a si quando o voduísta entrava no quarto. Foi um susto enorme para os dois: o homem por saber-se tido como morto, o voduísta por encontrar seu zumbi pronto antes mesmo do cerimonial. 

Cada um correu para um lado. O sujeito do vudu perdeu-se na noite, o homem foi para casa. A família, ali, lamentava o prejuízo: - Já pensou, perdemos um bom lucro. E ainda tinha os filmes de terror, já pensou?

O homem não entendia nada. Estava escondido ao lado da casa e esperava um bom momento para entrar. Sem entender as coisas ficou ouvindo tudo. Quando percebeu que havia sido vítima de uma negociata resolveu se vingar: deixou os olhos entreabertos, estirou os braços e entrou em casa como um sonâmbulo de filme classe B. Nesse momento faltou luz. Alguém chegou com uma vela e viu a cena: o sujeito andando aos tropeções, olhar envidrado.

Alguém foi chamar a viúva: - Mulher, seu marido enviveceu! Corre!

A mulher veio correndo. Quando viu o marido teve um ataque a morreu ali mesmo. Aí volta o homem do vudu e diz: - Agora nós: vamos fazer negócio?

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