sábado, 12 de setembro de 2020


O protocolo do luto para a morte das crianças
Por Emanoel Barreto

Leio na Carta Capital o seguinte título a respeito do retorno às aulas no estado do Espírito Santo: “Plano de volta às aulas no Espírito Santo prevê ‘ritos de despedida’ em caso de mortes”. 

Em documento publicado pelo governo Renato Casagrande fica notavelmente clara a morbidez sinistra da decisão que contraria claramente o bom senso e o respeito à vida humana. No documento, intitulado “Plano de retorno às aulas presenciais da rede pública estadual de ensino do Espírito Santo” está dito, segundo a Carta Capital:

“Havendo óbitos de alunos ou de profissionais da escola, e se for algo desejado pela comunidade escolar, o grupo pode organizar ritos de despedida, homenagens, memoriais, formas de expressão dos sentimentos acerca da situação e em relação à pessoa que faleceu, e ainda atentar para a construção de uma rede socioafetiva para os enlutados. Simbolizar a dor de alguma forma contribui para o processo de luto, lembrando que cada um vive esse momento de uma maneira, como uma experiencia pessoal e única e que, por isso, precisa ser respeitado.”

O que você acabou de ler não é um trecho de roteiro de filme de terror, é parte de um documento oficial, uma decisão de governo mas envolve uma brutalidade tal, se espoja num tamanho cinismo, numa crueldade insana e entranhada na essência e na alma administrativa desse governo que chega a me parecer coisa preparada por algum admirador da mente doentia de Norman Bates, personagem principal do filme Psicose, de Alfred Hitchcock.  
 Mas, voltando ao documento mencionado pela revista pesquisei-o na internet e não encontrei conforme o registro jornalístico. Sou levado a supor que diante da repercussão obtida seus feitores o modificaram, amenizando e eufemizando a perigosa situação admitida. 

É terrível: como um governo prepara o retorno de crianças à escola e antevê ao mesmo tempo a possível morte de inocentes? Talvez fosse melhor ensinar a meninos e meninas a soturna saudação dos gladiadores quando entravam na arena em Roma e diziam: “Ave Caesar morituri te salutant”, ou Ave César, os que vão morrer te saúdam.”

A malignidade do ato é claramente exposta na admissão da possibilidade de morte, alinhando a escola a um campo de concentração onde a inocência brinca com a morte. 

Tal falta de honradez leva-me a questionar: até que ponto pôde  a sociedade descer com essa pandemia. Desprezamos todas ou quase todas as formas de respeito à saúde da pessoa e do outro que convivemos com a insensata farra da frouxidão e do insulto à vida do próximo como forma de deleite. Isso facilitou a molícia dos governantes. 

A sociedade brasileira está caindo muito baixo; as pessoas, enlouquecidas da loucura indecorosa de alegria a qualquer custo lotam praias e bares. Não são ingênuos; não, eles sabem o que fazem. 

Para encerrar: Natal também está prestes a dar largada à febre das escolas reabertas, aqui na rede privada. Mas aqui o prefeito Álvaro Dias já lavou as mãos: as crianças só voltam às aulas após permissão dos pais ou responsáveis em documento assinado. Just in case.


sexta-feira, 11 de setembro de 2020



“Pelo amor de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá...”
Por Emanoel Barreto

Quando eu era criança minha mãe ensinou-me muitas orações que naquele tempo eram chamadas de rezas. Isso foi lá pelos anos 1960, e antes de dormir eu passava um bom tempo dedicando-me a debulhar o Pai Nosso, a Ave Maria, O Credo, a Salve Rainha, o Santo Anjo do Senhor e um pedacinho do Salmo 90, que eu não havia  conseguido decorar por completo apesar de todos os meus grandes esforços. 

Havia também uma prece que dizia “levai as almas todas para o céu”, mas eu não lembro do nome dessa piedosa manifestação de fé.

Essas são as rezas de que me lembro. Mas sei que havia mais, muito mais. E eu repetia todas; todas as noites. Assim, quando terminava a última sílaba da última oração eu já cambaleava de sono. Todavia, o ingênuo  fervor era  tanto que eu não sentia o passar das horas. 

Certa vez, uma noite, chegou à minha casa a visita inesperada de um tio, e querendo eu ouvir conversa de gente grande, fiquei até tarde na sala aprendendo o que as pessoas mais velhas falavam. Eu acreditava que além de conhecer todas as fervorosas preces todas deviam saber de muitos fatos incríveis, coisas notáveis, acontecimentos de valor. 

Para mim 0s adultos tinham a autoridade do tempo, sabiam tudo e discorriam com facilidade a respeito das coisas e do mundo. Eles conversando e eu ali, olho grelado, aprendendo a ser grande. Afinal meu tio foi embora. Já era tarde e eu fui dormir. Havia aprendido muita coisa. 

Por exemplo: um tal de Batalha era um cabra safado, deixava a família passando fome; outro, um certo Santa Rosa não valia nada e publicava um jornaleco chamado O Chicote; padre não sei quem era na verdade um tipo mesquinho e vingativo e um certo João Moura era grande amigo do tio que nos visitara. Informações preciosíssimas, percebe? Tanto que até hoje as tenho comigo e compartilho com você. Aprenda também.

Com a saída do visitante noturno veio a mim um problema: eu não podia dormir sem rezar, lembra? Teria que voltar a todo o meu repertório sagrado. Era uma obrigação, todo menino tinha de rezar. E eu reprisei toda a minha coletânea de crenças entre um cochilo e outro, tombando como um pêndulo maluco.

Aí houve um momento em que perdi o sono. Foi quando eu, já quase caindo sobre a cama, tive uma dúvida horrível: “E se Deus não existisse?”

Isso tirou de mim o sono e pensei: “Vou rezar a Alá. Pode ser que Alá exista e venha me salvar.” E clamei em silêncio: “Alá, pelo amor de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá.”

Em seguida a dúvida voltou a me atacar: e se Alá também não existisse? Rezei imediatamente a Buda e disse: “Buda, pelo amor de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá.”


Senti-me satisfeito e protegido, quando novo temor me assediou: será que Buda existia? Quem sabe? Resolvi tentar Tupã e disse: “Tupã, pelo amor de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá.”

Já ia me deitar de novo quando pavorosa incerteza me cercou: “Será que Tupã também não existia?”. Lembrei-me então  das revistas de caubói, onde os índios adoravam Manitu, e implorei: “Manitu, pelo amor de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá.”


Nesse momento as luzes da casa foram apagadas. Todos tinham ido dormir. Somente eu continuava acordado, agora envolto em sombras e dúvidas. Lembrei-me de uma revistinha que havia lido, “Deuses de todo o mundo”, e à minha memória veio o nome de Júpiter, do panteão grego. 

Antes de pedir mais uma vez socorro a uma deidade fiquei com medo do escuro e acendi uma vela – em todos os quartos da casa havia uma vela e fósforos em caso de falta de energia. A luz bruxuleante iluminava aquela pequena e patética cena: um menino de uns sete anos de pé sobre a cama e agora falando quase em voz alta: “Júpiter, pelo amor de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá.”


Tamanha maluquice chamou a atenção dos meus pais que vieram correndo saber o que era aquilo: eu falando sozinho e uma vela acesa. Temiam por um princípio de incêndio e, suponho, meu súbito enlouquecimento. 

Como eu não seria doido de dizer das minhas dúvidas celestiais a um casal catoliquíssimo, pois seria obrigado a rezar milhares de terços e mais uns dois rosários, garanti que estava com medo de almas e que, jurava, havia visto uma rondando a minha cama. 

A vela foi apagada e fui posto a dormir. Terminei adormecendo de puro cansaço. Durante o sono caí da cama. Acordei sobressaltado e quase gritei: “Meu Deus, pelo amor de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá.”


Voltei à cama, o tempo passou e agora estou aqui, contando a história. E pelo amor  de Deus me ajude, e não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê lá.