sábado, 31 de dezembro de 2022

 Bolsonaro meteu o pé e foi simbora

Por Emanoel Barreto

Após live em rede social, quando afinal admitiu a derrota, Bolsonaro meteu o pé e foi simbora. Na live via-se perfeitamente a imagem do derrotado que cambaleava num discurso troncho, com argumentações e defensivas meio que a esmo. Chegou mesmo a indagar a alguém como estava repercussão numérica do, digamos, pronunciamento. Não deu para perceber qual foi a resposta.

Veio às lágrimas, tentou verter-se à condição de mártir, já que não topou assumir a situação de herói disparatado e líder dos perigosos e grotescos grupos de alucinados que, postados às portas dos quartéis, vêm implorando por um golpe de Estado, para em seu lugar encravar uma ditadura.

A situação de busca do desequilíbrio institucional lembra palavras do ditador Humberto de Alencar Castello Branco quando dizia, então referindo às elites que procuravam os militares visando a derrubada do presidente João Goulart: “"Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir (sic) com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar."

As vivandeiras de agora também se aproximam dos bivaques e querem da mesma forma bolir com os granadeiros para que perpetrem “extravagâncias”. São também das elites e se valem da desordem e financiam magotes de tipos radicalizados que se expõem ao sol e chuva, muitos deles amalucados que apelam até mesmo pelo socorro de seres extraterrestres, num espetáculo risível e lamentável, como foi estampado nas redes sociais.

Afinal, esgotado, Bolsonaro meteu o pé e foi simbora. Seu discurso de despedida, por ser patético, certamente não teve potência suficiente para provocar comoção coletiva, fenômeno somente obtido pelos grandes discursos – altaneiros, altissonantes, convocatórios; não foi um brado, que é vigoroso, resumiu-se a palavras que escorriam, mirradas, para o ralo da História.

Por ser patético, sua fala mais inspiraria piedade e compaixão – pior: decepção, ao invés dos berros de “mi-tô!, mi-tô!, mi-tô!”.

Bolsonaro foi, sim, patético, e o patético desperta a vergonha alheia, tal a forma como se apresenta: alguém que decaiu das alturas de sua impiedade – altura de onde se sentia invencível e podia zombar, por exemplo, da morte de milhares pela covid.

Em sua live tornou-se alguém a esmolar algum tipo de apoio e garantia de que seu seguidor continuará a nele acreditar. Depois disso empreendeu fuga; Flórida, que beleza. Afinal, precisa retemperar forças e ganhar um bronzeado, pois atualmente está macambúzio, sorumbático, meditabundo.

Do ponto de vista da comunicação certamente não obteve o resultado pretendido. Que tristeza, não? Vejamos agora o desenrolar da História. Qual o rumo que tomarão seus apoiadores. Amanhã, na posse de Lula, esperemos que seja mantida a normalidade institucional: todavia, a leitura dos jornais, a visão dos noticiários de TV e rádio, a veloz comunicação das redes sociais sugere que há perigo na esquina. Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, já dizia Milton Nascimento, para acabar com a escuridão. Lá vem o sol, lá vem o sol, lá vem o sol...

sábado, 17 de dezembro de 2022

 Bolsonaro, o mito de Narciso e a dura derrota

Por Emanoel Barreto

A Folha de S. Paulo informa que Bolsonaro está deprimido, pois afinal entendeu – embora não aceite –, que logo, logo, não mais será presidente. Frente a tal situação, diz a Folha, passará três meses sem envolvimento político, recolhido à mansão que seu partido, o PL, alugou para ele em Brasília.

Mais: como presidente honorário do partido terá salário e gabinete. Além disso, seus filhos que detêm mandato atuarão no sentido de manter o pai em evidência e as redes sociais continuarão inundadas de informes que louvarão o ex-presidente.

A questão a ser levantada é a seguinte: se ele tem mesmo liderança, por que é preciso manter-se em Brasília, como se ainda fosse figura central a decisiva no processo político nacional? Por que necessita criar em torno de si efervescência, por que precisa causar para em busca de manter vínculos comunicacionais com o eleitorado?

Em situação reversa, o presidente eleito, Lula, ao término de seu último mandato foi para São Paulo, não teve qualquer sistema de comunicação a seu favor, foi preso, espezinhado pela grande imprensa e, mesmo assim, voltou. A verdadeira liderança, por ser autêntica, prescinde de engenharia de comunicação a fim de manter-se em linha com essa entidade difusa chamada povo.

A questão é que Bolsonaro, como é incapaz de formular propostas político-administrativas relevantes, elaborar um projeto de nação, estabelecer utopias, vale-se e trabalha a pequena política, aquela do disse-me-disse, do não-sei-quem-é-ruim, Lula-não-presta, vamos defender a família, o comunismo vem aí...

De tais atitudes de comunicação planejada surgem comentários nas redes sociais e uma intensa troca de conversas que tem por fundamentação mentiras e visões de mundo, limitadas e balizadas pelo mais baixo e grotesco senso comum.

Isso é tão perigoso que resultou nos atos de terrorismo em Brasília, quando pessoas partiram para o ataque à sede da Polícia Federal e queimaram ônibus e automóveis. Então, o que se busca, e isso não é só Bolsonaro, mas seu entorno, é criar um sujeito, um personagem identitário àquele candidato baixo-clero que levou uma suposta facada e com isso logrou a eleição.

Estão tentando criar um Bolsonaro do pastiche de si mesmo. Espelhamento de si mesmo feito por um ator político que, parece, começa a não mais existir enquanto representação, símbolo de uma corrente de pensamento caótica, líder da mais reacionária e grosseira direita deste país.

Como cambaleia na depressão – e isso é lamentável e indesejável a qualquer pessoa – surge o aparato de comunicação e a encenação de ficar morando em Brasília como se presidente fosse, mesmo que presidente postiço, por honorário, do PL. O que se pretende é criar uma aparência, uma sensação, a performance de que o mito está forte e intacto – “Bolsonaro ainda é Bolsonaro”, quando, na verdade, tenta arremedar a si mesmo.

A História dirá, muito em breve, quais serão os resultados da proposta desse narciso que busca se encontrar na imagem, na aparência de si, e espera que seus seguidores acreditem que ainda é a mesma pessoa política. O homem, claro, é o mesmo, mas o narciso, o simulacro que se busca criar pode se perder frente à realidade desoladora que o quase ex-presidente busca não ver: perdeu a eleição e nenhum sortilégio midiático poderá inverter tal quadro.

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

 A História não é um poema que se escreve em linha reta

  Por Emanoel Barreto

 

Os atos de terrorismo perpetrados em Brasília são indício de como será difícil o retorno do Brasil à normalidade democrática, que começou a ser solapada no governo Dilma, vicejou com Temer e sinalizou à direita e extrema direita que o terreno ficara plano e fácil para sua ascensão. E deu no que deu.

Agora, quando veio a derrota de Bolsonaro, as forças da reação buscam reverter o quadro, mesmo sabendo que, mantidas as condições atuais, com a Justiça atuante e firme, e os militares se portando unicamente como tais, a posse de Lula é apenas uma questão de tempo – e está bem próxima.

Não se pode esquecer, todavia, que a História não é um poema que se escreve em linha reta. Os passos da construção da normalidade democrática precisam ser dados em terreno firme e seu caminho se faz no caminhar. É difícil essa caminhada, é exigente esse caminhar.

A prova está na ação de hoje da Polícia Federal, que cumpre 81 mandados de busca e apreensão contra indivíduos flagrados na condição de líderes e provedores dos atos de desordem e terrorismo, culminando com o recente ataque à sede da Polícia Federal em Brasília.

O que se percebe é que há organização e organicidade entre os participantes. Todos são convictos de que suas atitudes são manifestação da livre expressão de pensamento, esquecendo que tal manifestação não precisa de armas para se fazer ouvir – a PF apreendeu uma submetralhadora, rifles com luneta e um fuzil.

Diante do quadro instalado, será preciso saber com a maior exatidão possível como se dá a organização do sistema antidemocrático, seus projetos e planos. A reconquista da normalidade democrática somente se dará em ambiente complexo, que reúna, por exemplo, a convergência de pensamentos progressistas em frente ampla, crescimento econômico, esmaecimento das hordas de arruaceiros e sensação geral de que, verazmente, o país está no caminho certo.

O processo, como enfatizado, não se dará em linha reta, com um passo implicando o passo seguinte; ações e reações deverão acontecer, exigindo decisão, planejamento e atitudes desassombradas, sempre e quando houver ameaça à manutenção de um estado de coisas pacífico e distanciado de extremismos.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

 O bêbado e os monstros que vivem no Brasil

 Por Emanoel Barreto

Não sei se você recebe ligações telefônicas estranhas, dessas que o telefone toca, toca, toca e quando a pessoa atende fica tudo em silêncio. Ou então é algum indivíduo querendo convencê-lo a abrir conta num banco ou pegar empréstimo. 

 Talvez você não, mas eu sim. Às vezes dezenas de vezes no mesmo dia. É como se fosse um cerco, o assédio a uma cidade sitiada sendo eu o único morador dessa cidade. Assim, diante de tanta chateação resolvi não mais atender: o telefone toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca, toca e eu não atendo. 

Mas ontem, após mais de dez chamadas, resolvi aceitar a ligação. Era a voz de um homem que eu não conhecia. Estava claramente bêbado. E tão logo eu disse "alô" ele informou-me com todas as letras: “Cuidado, há perigo em toda parte; monstros caminham entre nós e logo poderemos estar todos mortos.”

 Logo percebi tratar-se de algum louco sublime apreciando suas seis ou sete doses de uísque e topei a conversa: “Sei disso”, garanti. E disse: “Sei mais. Descobri que meu vizinho da esquerda é um perigoso monstro abissal que está pronto para atacar-me a golpes de clava a qualquer momento.”

 Ele respondeu: “A coisa é mais séria que isso. O perigo são os monstros do pensamento, os monstros da alma, os que querem invadir nossa mente e controlar nossos atos.”

 Pensei que ele iria enveredar por uma narrativa voltada para ETs ou algo que o valha, mas o sujeito passou com incrível clareza a expor uma série de pontos de vista que comprovam que temos monstros realmente em todo o país. 

 Monstros que são um prodígio de brutalidade e terror, ameaças, ódio e medo. E o que parecia ser uma conversa de bêbado transformou-se numa exposição veemente acerca da vida nacional, suas trapaças e ritos de roubalheira e desmandos.

 Falamos mais um pouco. Ele disse que ia pegar mais uma dose de uísque. Eu disse "tudo bem e esperei." Ele não voltou mais. Cinco minutos depois o telefone foi desligado. Antes uma delicada voz feminina pediu desculpa: “Por favor, não leve a mal: meu marido quando bebe fica pensando que o Brasil é uma terra perigosa. Não leve a mal.” E desligou. 

 Não levei a mal. Havia sido uma ótima conversa. Mas de uma coisa fiquei convencido: o Brasil é uma terra perigosa. 

Imediatamente passei a chave na porta.

 

 

 

 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 Extremistas de Bolsonaro: inferno em Brasília

 Por Emanoel Barreto

 A cerimônia de diplomação de Lula e do seu vice, Alckmin, ocorrida sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes, foi um ato formal mas poderosamente simbólico, uma vez que aludia à aurora, à luz de um tempo que sucederá à idade de trevas do bolsonarismo tacanho e feroz, que ora se finda. Enfim.

Os discursos de Lula e do ministro abordaram, de maneira serena, mas firme, a importância da democracia para a convivência social e para o progresso civilizatório, aspectos da vida societária que Bolsonaro e seus sectários desprezam. Em ambos os pronunciamentos havia uma perceptível referência ao tempo de trevas e horror vividos sob o tacão da barbárie e do atraso que agora se acabam.

À noite, todavia, a luz que se viu em Brasília veio da brutalidade do incêndio de carros e ônibus; labaredas eram a resposta bolsonarista às palavras de sensatez e civilidade. Eles não reconhecem a derrota nem a expulsão da bestialidade que até então vicejava nos esconsos do Poder e se espraiava na destruição da natureza, na repulsa à ciência, no desmantelamento da Universidade Brasileira, nos conluios contra a democracia e na mentira como forma de tornar desejável um governo que, na verdade, mesmo em seus últimos arquejos, é maligno e cruel.

 A desculpa para os atos insurrecionais foi a captura de um indígena identificado José Acácio Serere Xavante, descrito no noticiário como incentivador de violência e autor de ameaças às instituições democráticas.

Segundo Estado de S. Paulo, “o indígena foi preso sob suspeita dos crimes de ameaça, perseguição e abolição violenta do estado democrático de direito.”

Pastor protestante, diz o jornal, Acácio tem forte liderança em sua área de atuação. Preso na sede da Polícia Federal, aquela tornou-se alvo das ações bandoleiras, e os insurgentes tentaram invadir suas dependências para dar fuga ao elemento. Foram repelidos pela PF e pela Polícia Militar e se espalharam pela capital federal levando a todos terror, ódio e destruição, transformando a noite em inferno.  

A questão do bolsonarismo, cujo núcleo de pensamento – se é que dessa gente se pode falar em pensamento enquanto formulação intelectual analítica da sociedade – é binário e maniqueísta, portanto, ordinário e vulgar.

Sua resposta a qualquer gesto ou crítica são considerados como ataque – e esses indivíduos tendem a ter sempre o comportamento ataque/resposta –, eles partem literalmente para a briga ou pelo menos para uma explosão de gritos e insultos. É típico.

Então, o que ocorreu em Brasília deu-se segundo o que se deveria esperar -  suspeitar, quero dizer. O estranho é que os serviços de inteligência das polícias não tenham previsto tais atitudes criminosas e tomado precauções.

Quem observa os vídeos dos atentados percebe como era fácil incendiar um carro ou ônibus. Eles atiravam artefatos sobre os veículos e imediatamente as chamas se espalhavam. Ou seja: tudo estava preparado. Por que os serviços de inteligência não sabiam desses atentados? Outra coisa: pelo que vi em declarações do secretário de Segurança de Brasília ninguém foi preso. Como pôde isso acontecer?

Ouvi claramente o secretário afirmar “todos os identificados serão presos.” Mas veja: vão identificar como? Olhando vídeos e saindo a esmo procurando anônimos, criminosos que agiam rapidamente e sumiam? Por que não prendiam na hora? Muito estranho.

Mas, é isso, o bolsonarismo é produto de uma subcultura política que precisa ser enfrentada dentro da lei, da serenidade e do equilíbrio. Mas, mesmo assim, não podemos nos curvar aos extremistas. Nunca. Jamais.

 

 

 

domingo, 11 de dezembro de 2022

Maria Saberé: mesmo sendo
presa nunca perdeu uma briga

Ano de 1974. Tempo do meu ingresso no jornalismo. Diário de Natal. Repórter e redator do noticiário de polícia. Tempo dos grandes jornalistas Pepe dos Santos e Alexis Gurgel – também eles da página de crimes, que abria para mim as portas de vaivém da redação, jornal dirigido pelo lendário Luís Maria Alves. 

Entrei entrando, sem saber redigir uma linha. Aprendi em meio às bobinas de papel da impressora – aninhadas na redação, cara a cara com a turma que batucava firme o teclado das máquinas de escrever. Aprendi o jornalismo na redação e junto a policiais e escreventes de polícia, criminosos de todos os tipos, malandros de todos os matizes. 

E foi assim, como foca do Diário, que conheci Maria Saberé: bêbada e desordeira, espécime perfeito de toda uma fauna noturna que habitava com fervor baderneiro e intensidade alcoólica dois sinceros bairros boêmios: Ribeira e Rocas. Cachaça pura; radiopatrulha guinchando pneus quando o pau cantava na madrugada. 

Maria era destemida, abusada, atrevida, encrenqueira; metia o pé e entrava em qualquer bar, não enjeitava meter-se numa briga e bebia como qualquer um dos marmanjos que às vezes enfrentava no tapa.

E foi exatamente por causa de uma de suas arruaças que ela foi levada a um distrito policial das Rocas. Prisão correcional, como se dizia na época, era coisa comum para ela. Fazia parte, entende?  

Cheguei ao distrito lá pelas nove da manhã e procurei saber das novidades. “Tem não”, disse-me o comissário. Naquele tempo comissário era o segundo depois do delegado. Não sei se ainda é assim.
“Tem não?”, insisti. E ele: “Não.” 

Eu já ia saindo quando o comissário me diz: “Mas você pode falar com Maria Saberé. Ela abriu um pau danado ontem num bar e está lá dentro agora.” 

Eu disse “Opa! Vamo lá!” Era pegar ou largar. Explico: eu era um foca com três meses de jornal, não tinha fontes, não sabia nada de nada de jornalismo e meu dia começava péssimo: não havia qualquer acontecimento a ser noticiado.

 Assim, o anúncio de que havia uma desordeira nas áreas era a certeza de captar pelo menos uma notinha para a coluna Ronda, que eu fazia a partir de acontecimentos menores, fatos que não tinham a importância de um assalto ou homicídio.

Fui levado à cela onde Maria estava. Ela encarou-me com os olhos vermelhos de ressaca e disse: “Veio fazer o que aqui? Também vai ser recolhido? Brigou aonde? Você tem cara de quem merece entrar em cana.” Ante tão desanimadora recepção adotei uma postura amigável: “Vim lhe ver. Sou jornalista e quero saber como você foi presa. Vamo conversar?”

Para meu espanto ela aceitou imediatamente. Eu supunha que sabendo de minha condição de repórter ela fosse botar dificuldade. Afinal, seu nome ia sair na página mais barra-pesada do jornalismo norte-rio-grandense: a página policial do então todo poderoso Dário de Natal.

Mas ela não deu trabalho e falou sobre a prisão. Disse que “tinha se metido no meio de um azar”, empurrado o murro na cara de uma dona que ela não sabia nem quem era, levado rasteira de um estivador e dado uma tremenda tamboretada na cabeça de um bebo. “É pouco ou quer mais?"

Foi uma entrevista besta, simples, na verdade um acontecimento repetitivo e típico de sua condição de desgraçada e pobre. Eu a olhava e via uma mulher jovem – coisa de vinte e cinco anos –, mas já alquebrada, cabelos desgrenhados, perdida em meio a uma vida de miséria e dor, sofrimento e baderna, a falsa alegria de uma noite de bebedeira barata e violenta. 

Levantei-me daquela que seria apenas a minha primeira entrevista com Maria Saberé e já ia saindo quando ela me disse: “Me faça um favor. Quando eu morrer, quero que você faça uma matéria bem bonita. Diga na manchete que Maria Saberé, mesmo sendo presa, nunca perdeu uma briga.”

Não sei quando ela morreu. Mas foi por isso mesmo que coloquei nessa crônica o título que ela pediu. OK, Saberé, cumprido o nosso trato. 




  

 

sábado, 10 de dezembro de 2022

Seleção falha miseravelmente; aceite, são coisas da condição humana

 Por Emanoel Barreto

Não sou chegado a futebol, pelo menos o futebol de hoje. Sou do tempo de

 Garrincha, Pelé, Didi, Djalma Santos, Nilton Santos, Vavá...; são como

 retratos colados nas paredes da minha memória, alegrias de jogadas de

 craques que nunca vi, somente em fotos na Revista dos Esportes iluminando

 meu imaginário juvenil com a descrição de jogos sensacionais. Então, eu

 tinha a palavra Seleção como uma espécie de termo sagrado, pelo qual tinha

 reverência, quase adoração. Depois passou.

Na verdade, esse nariz de cera é apenas para que eu enviese este artigo e o encaminhe para algo que considero relevante: o aspecto da condição humana em todas as suas limitações. E ser humano pode, e sim, muitas vezes experiencia momentos de horror e queda. A debacle da equipe brasileira é exemplo perfeito.

Nossos heróis subcumbiram. E o heroísmo, que inconscientemente se atribui ao atleta, implica vitória, grandeza, exaltação. Especialmente quando tal heroísmo está envolto nas cores nacionais; que excitam as multidões na sua busca do exercício catártico de purgar seus lamentos existenciais e sociais nas vitórias daqueles escolhidos como os melhores, mais pujantes e mais perfeitos exemplares, padrão de grandeza e glamour.

E quando isso não se dá, quando a hecatombe se consuma, quando o que poderia ser visto como apenas um insucesso passa a ver vivido como tragédia, temos a percepção, mesmo que difusa, de que vivíamos uma ilusão: não havia heróis na Seleção, apenas pessoas; inexistia um acontecimento colossal em si, mas um espetáculo efêmero – a Copa –  engrandecido pela ação do marketing; a Seleção era uma geringonça, uma bricolagem chamada time, não uma plêiade de deuses do futebol.

Nesse momento, no instante da queda, a realidade supera o narcisismo oculto em cada brasileiro que de alguma forma se sente parte da Seleção, batida, superada; e isso nos traz o desencanto. E vêm as acusações, as culpas apontadas, o “eu não disse?”, o escapismo de se ver como parte do fracasso, mesmo parcela que mínima e anônima de torcedor-herói-também-perdedor. Vergonha.

Já dizia Nelson Rodrigues: “A Seleção é a Pátria em chuteiras.” A frase de efeito, em toda a sua grandiosidade estilística, nos aponta para a convergência entre os heróis supostos e o país-pátria, entidade acolhedora, lar geral de riquíssimos e descamisados unidos numa igualdade de faz de conta.

Nossa Pátria de há muito está sem chuteiras, sem escolas, sem empregos, sem sapatos, sem justiça, sem... nem é bom falar. Buscamos, em compensação, fechar nossa ferida narcísica com a busca de um novo Pelé – inútil. O Rei não voltará.

Console-se. A Copa é apenas uma forma de campeonato. Daqui a quatro anos tem mais. E perder ensina a nos prepararmos para a próxima partida: na vida, em casa, no trabalho, em campo para bater o pênalti.  


sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

 BRASÍLIA

presidente Jair Bolsonaro decidiu que continuará em Brasília após deixar o governo e deverá morar em uma casa bancada por seu partido, o PL, do qual será presidente de honra.

Integrantes do PL disseram reservadamente que a intenção do presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, é pagar a Bolsonaro um salário equivalente ao teto constitucional do setor público, que hoje está em R$ 39,2 mil.

Dessa forma, a previsão é que Bolsonaro tenha uma renda mensal próxima de R$ 85 mil a partir de 2023. Isso porque ele também tem direito a aposentadorias de militar (R$ 11.945,49) e de deputado federal, no valor de R$ 33.763.

Bolsonaro é como Chacrinha: não veio para explicar, veio para confundir

Por Emanoel Barreto

O texto acima, que copiei e colei, é de Marianna Holanda e Mateus Teixeira, da Folha. À simples leitura já dá para perceber que o tipo mencionado, futuro ex-presidente, vai ganhar uma renda polpuda para... fazer nada. Ou seja: Bolsonaro, que geme de preguiça, vai ganhar R$ 85 mil para ficar em casa fazendo de conta que está liderando o PL, do qual na verdade será unicamente um fâmulo.

Tenho alguma dificuldade em aceitar, pelo menos aceitar por completo, que ele vá liderar o partido na prática. A bancada do PL é formada por profissionais do carteado político, e nesse pôquer eles sabem ganhar sem Bolsonaro, seja blefando ou não. Certamente não vão precisar de alguém que somente sabe atuar via redes sociais para fazer divulgações aloucadas e divagações sem nexo com a realidade – vide as suspeitas lançadas sobre a confiabilidade das urnas do TSE.

Entendo ser improvável que ele venha a ser consultado pela bancada a respeito de grandes decisões, chamado a reuniões de peso ou qualquer conciliábulo partidário. Creio que seu uso deverá ser mesmo o do sujeito que vai bater lata, fazer barulho e trabalhar a confusão entre realidade e o alucinatório político que tão bem conhece, em vez de liderar, comandar, alertar, incentivar, ou seja lá o que for que se possa esperar de um líder, líder na essência da palavra.

Falta-lhe um telos, um objetivo histórico para o país, inexiste-lhe uma utopia, salvo se por utopia entendermos a defesa de um conservadorismo tacanho, a busca de aperfeiçoar a mediocridade, o empenho em estimular o barbarismo cortante de muitos dos seus seguidores.

Suspeito que ele acredite sinceramente que seja possível aperfeiçoar a decadência, aprimorar o descalabro, requintar a desgraça, tornar cálida e deliciosa a pobreza, bela a miséria, desejável a hecatombe. Suspeito mesmo.

Já tivemos na TV uma figura carismática e poderosa: Abelardo Barbosa. Você conhece: Chacrinha. Ele costumava dizer: “Não vim para explicar; eu vim para confundir.” A figura a respeito de quem aqui venho escrevendo segue o mesmo padrão. Só que sua confusão é bruta, traz discórdia e balbúrdia, berreiro e alarido, transforma o país numa estranha catedral da celeuma e violência.

A confusão chacriniana, quero crer, voltava-se mais para alguma forma difusa de crítica à realidade nacional; naquela em que ele também se imiscuía, fazendo parte do balacobaco bem brasileiro que sofre e samba; passa mal, mas festeja; tem dívidas, mas não lhe falta a cerveja do boteco; não tem escola para o filho, mas faz da escola de samba zona de escape aos seus problemas e dores.

A alegria de Chacrinha em sua Discoteca televisiva era parte da evasão a essas dores. O telespectador confundia, naquela fugitiva alegria, a angústia de ver seu salário-mínimo escorrer pelo ralo, acabar no outro dia, enquanto ele ia esperar o próximo carnaval.

Bolsonaro talvez esteja querendo confundir para voltar a ser o que – ele sabe –, jamais foi de verdade: ele nunca foi presidente embora tenha sido eleito e empossado. Ele veio apenas para confundir. E fez isso muito bem.

 

   

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

 O pão sempre amargo do diabo enche a boca de muitos brasileiros

Por Emanoel Barreto

Há algo de patético e deplorável, porque o patético é o trágico ridículo, nos grupos que se engancham aos portões de quartéis pedindo um golpe de Estado. A mirrada litania vem se alongando, e seus irrelevantes atores, forrados por alimentação que aparece sei lá como, se prestam a ficar sob sol e chuva suplicando por um regime de força, que com certeza lhes tiraria até mesmo os mais limitados direitos, sociais e trabalhistas.

Pobre povo o nosso, quando pessoas, por notória necessidade, se sujeitam a papel tão lamentável. O Brasil, com suas distorções sociais gravíssimas, suas injustiças estruturais, seu capitalismo dependente, está distribuindo pobreza e miséria e fazendo surgir o protesto dos que pedem o fracasso da democracia e estendem a mão faminta a esse óbolo estranho e desprezível.

Há investigações a respeito de quem financia tais movimentos, e tanto mandantes quando seus servos sabem que a nada chegarão. Lamentável o povo que implora pela chibata e busca curvar-se mais e ainda mais, desde que lhe chegue às mãos os miseráveis trinta dinheiros da sordidez dos que usam pessoas carentes para encenar protesto patriótico.

Cuidado com os que clamam pela Pátria e urdem planos trevosos; no fundo, desejam mesmo que tal conceito e realidade socialmente construída sejam, no máximo, um ornamento de oratória, uma desculpa para nos atirar ao escárnio da História, pagando aos famintos os honorários vis do descalabro, da dor, do desespero. Sem democracia haveria a corrente presa ao pescoço do povo – pois essa é o objetivo final de qualquer ditadura.

E o povo, pobre povo, desempregado, subempregado, desesperado em busca de um naco de pão ou um gole de café, surge na figura dos que se prestam a saciar a fome de força dos poderosos e aceitam a remuneração estropiada – vergonha.

Por suposto, tais atos não chegarão ao objetivo pretendido; por suposto os lamentáveis farsantes e soldo de patrões invisíveis, logo estarão em suas casas, nos arrabaldes para onde foram atirados pelo sistema injusto, cruel e ominoso.

Esperancemos que venham novos tempos; e as pessoas não precisem denegrir-se a troco de uma moeda, uma quentinha, um pedaço qualquer de qualquer coisa.

É isso: o Brasil não pode continuar a ser um pedaço qualquer de qualquer coisa. Não se pode servir ao povo o pão torpe que diabos ocultos amassaram.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

 Bolsonaro, um corvo velho,

 sorumbático e meditabundo

Por Emanoel Barreto

Envolto em sua soturna solidão qual um corvo velho, Bolsonaro aparenta estar macambúzio, sorumbático e meditabundo, vagando como alma penada pela penumbra do Palácio da Alvorada. Mesmo que não tenha chegado a tal estágio os presságios para seu futuro imediato não são auspiciosos: responde a algo como 25 processos, dizem as folhas diárias, e há a real possibilidade de que venha a ser preso.

A isso deve-se aditar que perderá capital simbólico, ou seja: será depossuído de poder, não terá mais a seu lado acólitos subservientes, não poderá mais influenciar partidos nem promover nomeações ou atos danosos, seja à saúde pública como ocorreu quando a pandemia explodiu e ele fez de tudo para frustrar a vacinação, seja natureza, ou à classe trabalhadora de modo geral.

Perder capital simbólico significa ver abalada sua imagem de líder, de mito. Em suma, perderá força. Será, na prática, empregado do PL, a quem pediu para ser contratado, e terá o duvidoso cargo de presidente honorário do partido, o que na prática quer dizer que na sigla ele será só uma figura. Parte do mobiliário político, sem utilidade.

Ninguém virá lhe pedir conselhos e em nada poderá atuar para direcionar a bancada de deputados federais, para seu desespero e temor.

É fácil observar os motivos do seu comportamento soturno: seus seguidores mais desmiolados estão escorados às portas de quartéis do Exército implorando por um golpe e Bolsonaro, encurralado em Brasília, não pode funcionar como caixa de ressonância. Teme ser essa caixa de ressonância.

Certamente por temor de que incentivando movimentos golpistas venha a agregar a seus, digamos, pecados políticos, mais uma denúncia, a prática de mais um crime: a busca da derrubada da democracia, o desrespeito à legitimidade do resultado eleitoral.

Como não é um líder pensante, um propositor, não terá, fora do cargo, competência intelectual para criticar o novo governo, salvo em atos de internet, certamente promovendo noticiário falso ou repetindo bordões da extrema direita.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

 Não está certo obrigar o Brasil a dar errado

 Por Emanoel Barreto

Eu não sei se o Brasil pode dar certo, mas sei que não é certo obrigar o Brasil a dar errado. 

 A tragédia nacional que se alonga numa história cheia de tropelias lamentáveis não me traz à memória nenhum grande feito, salvo, é claro, termos ganho Copas do Mundo. Esse o nosso grande feito: chutar bolas, fazer gols. 

 Sim, ia esquecendo: Marta Rocha quase foi Miss Universo em 1954. Mas perdeu o título por ter duas polegadas a mais nos quadris. Chato, né? 

 Nosso libertador era português e o fez por conveniência; e olhe que tempos depois pagamos a Portugal dois milhões de libras esterlinas a título de indenização. Rabo entre as pernas.

Claro, tivemos Getúlio, que também foi ditador e afinal suicidou-se. Perdeu, povão. No tempo histórico amontoamos tudo de ruim o que pudemos acumular – incertezas, golpes de Estado, inflação descontrolada, crescimento do banditismo e outras coisas terríveis como homens lamentáveis e líderes sob suspeita; Bolsonaro é exemplo perfeito – e com ele continuando no Poder sabemos bem aonde vamos chegar. 

O momento que vivemos, enlouquecido em seu espalhafato de fanáticos ululantes, ensandecidos e brutais lembra-me que estamos como que sentados sobre trilhos à espera da locomotiva colossal, o ápice da tragédia.

O ovo da serpente foi plantado lá atrás e dele nasceu Bolsonaro presidente e o bolsonarismo. 

 Lewmbre-se: se ele for reeleito o cerco se apertará de tal forma que a realidade perversa ora vigente vai ser mantida, se intensificar e reafirmar que é preciso o Brasil nunca dar certo para que todos os erros permaneçam, punindo com pena aterradora quem ousar dizer:  “Eu não sei se o Brasil pode dar certo, mas sei que não está certo obrigar o Brasil a dar errado.”

 

 

 

 

 

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

 Bolsonarismo como doutrina de ódio

Por Emanoel Barreto

 

O que se convencionou chamar de bolsonarismo como fenômeno político apresenta em suas vertentes mais obtusas um comportamento agressivo, pautado num raciocínio tosco, binário, com tendência a atos de violência, podendo chegar ao homicídio, como já ocorreu.

O bolsonarista típico não apresenta argumentos a favor do seu ídolo, antes parte para a agressão verbal a qualquer pessoa que dele seja divergente e vê em Lula não um adversário, mas um inimigo. Sua compreensão é de que não há uma campanha política, mas uma briga.

É preciso entender que o comportamento violento de certos grupos radicalizados é resultado de convicções que apontam o outro como um alguém a ser se necessário até mesmo eliminado. Para tanto, a justificativa é que o outro é um obstáculo, um oponente, não alguém que discorda civilizadamente da opção do bolsonarista.

Os procedimentos violentos, ao se repetir, tornam-se como que uma liga, um traço de união na alcateia, uma atitude a ser copiada, quase que uma marca comportamental, um padrão de qualidade estúpido a ser conferido à brutalidade. A atitude de manada instrui o indivíduo, que naturaliza tais atitudes e passa, se entender necessário, a agir segundo o que viu no seu aliado.

É como se a linguagem da violência fosse um discurso, cujo enunciado é “não há adversários, existem inimigos” – e inimigos devem ser eliminados, até mesmo no sentido mais extremo do que seja eliminação quando se consubstancia a morte do adversário político. É a isso que estou chamando de bolsonarismo como doutrina de ódio.

Os atos de fala são substituídos por gestos de barbaridade e se perpetram via socos e pontapés, quando não com tiros e morte, como já ocorreu. Já li no noticiário que pessoas estão com medo de ir votar ante a possibilidade de serem vítimas de agressões; seja de forma direta, seja como vítimas que lamentavelmente passavam no local onde se dava a agressão e foram atingidas como efeito colateral.

Bolsonaro já está dizendo que se o TSE agir como lisura ele vencerá no primeiro turno. Mesmo uma análise de discurso superficial já perceberá que ele está insuflando a massa para que saia às ruas quando, presumivelmente, mantidas as atuais tendências das pesquisas, ele estará amargando a derrota no primeiro turno.

A doutrina do ódio existe em ato, mas em sua forma larvar se manifesta em pronunciamentos como o anteriormente mencionado e funciona como motor potente para dar estímulo a que seus seguidores mais radicais estejam unidos e saiam às ruas prontos para refrega e reação.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Tenha fé, mas tome vacina

Por Emanoel Barreto

Finalmente os governos do Rio e São Paulo compreenderam que Carnaval e covid são incompatíveis e jogaram a festa lá para abril. Por que é tão difícil aos governantes admitir que o tempo não é de comemoração e festejos, mas de trabalho árduo para salvar vidas? Resposta: porque ele são políticos profissionais e querem seguir a valha máxima romana “dai ao povo pão e circo.”

 Já o governo do Rio Grande do Norte permite que supermercados atendam a todos sem apresentação de comprovante de vacinação; o mesmo privilégio se estende a igrejas católicas e protestantes.

Pastores, registre-se, chegaram a ir ao Centro Administrativo reivindicar que toda a aglomeração dos ditos fiéis seja mantida mesmo com todo o risco que podem correr. Não tenho informações se a Igreja Católica mandou algum representante fazer o mesmo tipo de pressão. Mas poderia, por precaução, tomar a iniciativa de exigir o comprovante da vacina.

Fica para mim a dúvida: qual a dificuldade de um pastor ou de um padre mandar seus seguidores se vacinar? Qual o problema em tomar as três doses e garantir-se contra os efeitos da covid?

Muitos ignorantes recusam a vacina e pagam o preço mais alto: o exemplo mais recente é a atriz Elizângela: negacionista radical, recupera-se lenta e sofridamente do poderoso ataque da covid. Segundo li, seus assessores dizem que ela era “muito rebelde”. Deu no que deu.

Para a covid não tem milagre: ou você se vacina ou corre um sério risco. Isso sem esquecer que pode contaminar pessoas que nada têm a ver com a estupidez do abstencionista.

Gilberto Gil canta: “Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá.” Por precaução não acredite nisso: sendo cega a fé pode levar ao pior dos caminhos.

 

 

 

 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

 Ouvírus da covid às margens plácidas

Por Emanoel Barreto

Um exército de insensatos trabalha no Brasil intensamente batalhando para reafirmar a crença de que a covid em sua versão Ômicron é algo até mesmo benéfico, conforme apregoa o capitão reformado que hoje está presidente da república. Há quem acredite. E entoam o estranho hino ouvírus da covid às margens plácidas.

E o riacho Ipiranga da História, por onde navega a vida do povo, das gentes, de todos nós, tem nas suas margens exatamente aqueles que querem a todo custo trazer a desordem, a confusão, buscam convencer que a covid seria apenas uma espécie de brincadeira de mau gosto, um empurrão que a gente facilmente esquece. Deixa pra lá, não é mesmo?

Com isso, o hino do ouvírus da covid às margens plácidas tem os já citados, que o cantam em uníssono. Eles esperam, desejam, querem que as pessoas não se vacinem, pelo menos não tomem a segunda dose, ou se assim o fizeram que esqueçam a dose de reforço.

Os argumentos em defesa da covid são os mais absurdos e vão desde o anúncio de que um menino tomou a vacina e morreu; uma mulher passou mal; alguém disse num sei o que da vacina, esse num sei o que fez num sei o que lá com uma velhinha e ela caiu seca no chão, e por aí vai.

Políticos, notadamente prefeitos, liberam o carnaval em via pública, mas, claro, tomando-se todas as precauções e cumprindo-se os requisitos que vão garantir aos foliões que podem se reunir e nada lhes acontecerá. Mas são apenas safados. O ouvírus não negocia nem respeita nada ou ninguém que ouse desafiá-lo. Mas os safados querem festa.

Somos enfim o Brasil. Sei que não somos exceção. Lá fora há países onde esse tipo de loucura também se apresenta. Afinal, somos todos humanos e errar faz parte dessa humanidade tão nossa e tão troncha.

Aqui a vacinação, todavia, cresce. Ainda bem. Mas é doloroso ter de ouvir de muitos histéricos a voz pilantra que diz: “Ouvírus da covid às margens plácidas.”

 

 

 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

 Elza Soares partiu; ela agora pisa num chão de estrelas

Por Emanoel Barreto

O Brasil perdeu Elza Soares – foi-se embora quem não podia faltar.

Somos agora um samba acabado, uma voz calada, um silêncio grande, uma larga tristeza. A bateria parou em respeito para abrir alas aos versos de Nelson Cavaquinho: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor.”

Elza era alegria e sofrimento, dor e força, coragem e talento. Tudo isso a marcou, toda essa mistura deu o tom de sua vida. Era fulgurante. Elza do Brasil. Foi casada com uma das lendas do futebol brasileiro, Mané Garrincha. Ele sambava com a bola, ela era a passista do grande gênio de pernas tortas.

A carreira começou em 1953 quando participou do programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso. Paupérrima, usava um vestido da mãe, ajustado a seu corpo com alfinetes. Barroso, zombando de sua aparência, que incluía um penteado que ampliava sua figura de criança favelada, perguntou de que planeta ela viera. Resposta:

"Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome." Ela sabia do que falava: ela passava fome mesmo. Sofrimento era coisa de todo dia. Fora casada à força aos doze anos e aos treze já era mãe. Mas, ali, perante Ary Barroso surgia a voz do Brasil, nascia Elza Soares, voz e grito.

O Brasil é, e isso ela deixou bem claro, um país que canta vestindo uma fantasia de alegre viver, mas no fundo traz uma dor profunda e sentida. Explica-se: o Brasil é o planeta fome. Caetano Veloso já disse: “O Haiti é aqui.”

Sua passagem ganha um intenso e forte peso dramático pois ocorre quando somos acossados pela peste que se avoluma enquanto vozes de degradados alardeiam que está tudo bem, e o capitão reformado diz que o Ômicron é bem-vindo. Sai Elza, chega a incerteza, cresce a onda de medo e dor.

Ela morre num mesmo 20 de janeiro, também data em que Garrincha tirava as chuteiras para nunca mais voltar. O Brasil, porém, continua em campo e no palco, na avenida das escolas de samba e nas ruas, onde os caminhantes já sabem: é preciso esperançar sem parar para esperar. Há perigo na esquina, nos bares, nas festas, nos becos. Cuidado.

Perdemos Elza Soares: o Brasil está escorrendo pelo ralo e estamos descendo a ladeira. Novamente Nelson Cavaquinho nos chama: “O sol há de brilhar mais uma vez / A luz há de chegar aos corações / Do mal será queimada a semente / O amor será eterno novamente.”

Elza se foi; mas não completamente. Agora ela está lá em cima e pisa nos astros distraída. Seu chão é feito de estrelas.