sexta-feira, 19 de maio de 2006

Os barcos mortos

“Abandonai essa vida de

crimes e legislações, ó infiéis!”

Millôr Fernandes

A crônica abaixo é do meu livro Crônicas para Natal, numa homenagem ao rio que embeleza a cidade e aos seus barcos velhos, parados e esquecidos.

Trágicos em seu silêncio de madeira triste,

os barcos mortos do Potengi são relembranças de marés em preamar.

Grandes corpos de madeira que sofre, seus corpos se vão.

E seguem parados, sem vela ou navegador.

Quantas vezes se fizeram ao mar, quantas vezes

se apressaram no confronto com ondas.

E de todas as batalhas corsárias de que

participaram, voltaram sob a bandeira da vitória.

Pescadores, corajosos, enfrentaram tempos,

bateram milhas, superaram noites.

E agora, guerreiros esquecidos, sucumbem ao silêncio do frio.

E ninguém, ninguém, se lembra que lutaram tanto.

Vamos fazer pesquisa de lata?

"Há duas maneiras de viver a vida: uma, é como se nada fosse milagre. A outra, com se tudo fosse milagre." Albert Einstein

Aprendo muito com a minha netinha, Eduarda. Certo dia, ela me ensinou: - Vô, é proibido prender arara em casa, sabia? Eu ensaiei uma cara de surpresa e disse: - É mesmo, Eduarda? E por quê?"

Ela me respondeu de forma bem direta: - É contra a lei. Não se pode prender arara, porque é contra a lei. A conversa continuou: -E o que é "contra a lei"? A resposta foi um primor de doce ingenuidade e, paradoxalmente, de grande pertinência. Veja só: - Vô, contra a lei é contra a lei, ora. Contra a lei, Vô: polícia!..

Ou seja, com seu raciocínio de criança de seis anos de idade, ela sintetizou a coercitividade social quando objetiva a que os cidadãos se adequem às determinações legais. Se é contra a lei, polícia neles.

Claro, simples como respirar. Assim, estava explicado por ela, para mim, o conceito de ilegalidade. E as araras, coitadinhas, supostamente protegidas por esse inocente conceito, que aparentemente faria tremer malfeitores de todo o tipo, caso aplicado em sentido amplo.
Claro que eu me comprometi com ela, e estou cumprindo: jamais prender uma arara. Ontem ela me ligou, com uma estranha convocação. Ela sabe que participo de todas as suas convocações. Era o seguinte: - Vô, você sabe fazer pesquisa de lata?


Eu quase caí: como jornalista, já fiz quase todo tipo de cobertura, passei uma noite inteira observando o hotel onde o Papa João Paulo II passou a noite em Natal, pois o jornal onde eu trabalhava temia que ele sofresse um atentado; estive numa mesma sala que que se encontrava Yasser Arafat; recebi uma visita da repressão do regime de 64 em minha casa e por aí vai. Mas, pesquisa de lata... que me lembre, jamais fiz.

Mas, como bom repórter, topei o desafio. "Pronto", pensei, vou fazer uma pesquisa de lata." Por precaução, perguntei o que era a tal pesquisa. Ela não soube me explicar, mas pediu que eu fosse à tarde em sua casa, para ver o que eu poderia fazer. Aceitei na hora. Já pensou, fazer uma pesquisa de lata com a minha netinha? O menino que ainda mora em mim ficou muito contente pelo convite.

Mas, pouco depois minha filha, mãe de Eduarda, ligou explicando que era preciso apenas uma latinha, para que ela fizesse uma experiencia escolar. Coisa simples e que ela mesma faria. Fiquei um pouco frustrado, mas mãe e filha precisavam sair naquela mesma tarde e minha pesquisa de lata ficará para outra oportunidade.

Tudo isso, além da alegria de falar sobre minha neta, serve também para uma reflexão: acho que o brasileiro precisa entender que há mais coisas contra a lei além de capturar araras. Vejamos: receber dinheiros desviados de fundos públicos, praticar assaltos, latrocínios, enganar o povo com discursos populistas, conviver com a improbidade, governos negociando e fazeendo concessões a bandidos, etc... etc...etc... Coisas que o brasileiro sabe muito bem.
Há, evidentemente, muitas coisas que são contra a lei. E se alguém ainda não memorizou o que é ser contra a lei, repito: - Vô, contra a lei é contra a lei, ora. Contra a lei, Vô: polícia!...

quarta-feira, 17 de maio de 2006

A cidade inteira e linda

"Não basta conquistar a sabedoria;
é preciso usá-la"
Cícero



Abaixo, transcrição de crônica do meu livro "Crônicas para Natal - as crônicas do Jornal do Dia", publicado em dezembro de 2000.

Natal ergueu-se do tempo como a história real de um sonho. A cidade, hoje com 400 anos, tornou-se encantadora com o passar dos dias e dos muitos verões. Protegida pela Fortaleza dos Reis Magos, a Noiva do Sol, como a chamava Luís da Câmara Cascudo, tornou-se castelã de dias de alegria e veraneio, nadadora mais linda do Atlântico.

E no Atlântico, Natal projeta a praia de Ponta Negra, um sonho no viés da cidade, com o Morro do Careca ao fundo, em suave curva como corpo de mulher. Depois, a Via Costeira, com seu colar de hotéis, enfeita a cidade com jóias da arquitetura. E, nos hotéis, praias que são tapetes de areia branca, santuários reservados de quietude e beleza.

Vaidosa, Natal é cidade feita de avenidas e luzes, alegria e festa. Quem segue pela Avenida Junqueira Ayres, descobre maravilhado a casa de Luís da Câmara Cascudo, o senhor da História, caminheiro do tempo, zelador de lendas e de luas.

E mais adiante, solene, linda, poderosa em sua simplicidade, a Capitania das Artes guarda exposições e beleza, preserva sonhos da imaginação de artistas. Depois, na primeira curva, a imponência do Palácio Potengi e seus salões de nobreza, quando a política tinha o charme da elegância.

E, ali, pertinho, a arquitetura pesada do Palácio Felipe Camarão, a Prefeitura, solene construção com a cara severa da História.A Ribeira é boemia, é noite, cerveja gelada suando tulipas, beleza, juventude e vibração no som de cada instrumento.

Natal é toda feiticeira. E lembra que era ali, bem ali, na Ribeira, que os soldados americanos festejavam seus medos, antes de partir para a África, para lutar contra Rommel, a Raposa do Deserto. Depois, muito sol e muito mar. As dunas se oferecem como montanhas de aventuras, os bares são encantos, namorados.

Redinha é a praia amiga de Natal, logo depois de atravessado o rio Potengi. Mais adiante, Genipabu é um sonho feito de areia, dunas e coqueiros que enfeitam cada olhar. Em Pirangi, o maior cajueiro do mundo é árvore sem fronteiras, a crescer eternamente.

E dos seus galhos que não se acabam mais, brotam lindos frutos, cajus meninos a adoçar cada boca. Natal é cidade bonita, elegante, como mulher que desfila e sabe que todos os olhares estão em suas curvas. E de sua belez nasce uma energia intensa, que acaricia a cada olhar, como se a cada momento de descoberta a cidade renascesse diferente e ainda mais bela.

terça-feira, 16 de maio de 2006

Tenebrosas transações

"O juiz é condenado quando
o criminoso é absolvido."
P. Ciro

As informações que circulam na imprensa dão conta de que houve, entre o Governo paulista e o criminoso Marcola uma negociação, a fim de que os bandidos reduzam sua brutalidade sobre o povo de São Paulo. Afora o aspecto de rendição que tal comportamento encerra, uma vez que negociar com bandidos é inegavelmente uma forma de fraqueza por parte do governante, há um outro questionamento, esse bem mais grave, que foi a renitente recusa do governador Cláudio Lembo em aceitar ajuda federal.

Fica bastante claro que a intenção do governador foi impedir um suposto uso político da baderna durante a próxima campanha eleitoral. A atitude, mesquinha e temerária sob todos os aspectos - uma vez que a onda terrorista poderia ter tomado rumos totalmente incontroláveis - revela bem que tipo de políticos temos neste País.

A ajuda oferecida pelo presidente Lula, além de ser regida pelo bom senso e espírito de responsabilidade pública, era efetivamente necessária. Mas o governador "achou" que não, que a polícia paulista poderia, sozinha, superar o impase. Não poderia, e os fatos assim o demonstraram.

As rebeliões somente pararam após a ordem do bandido Marcola, ou seja: o crime organizado manteve seu poder de negociação, favorecido pelos apetites político-eleitorais de um governante de baixa estatura cívica.

A questão está posta: cessada a ação coletiva dos marginais as coisas tomarão uma aparência de calmaria social, mas a essência, a matriz de poder dos criminosos está preservada.

O mesmo diga-se com relação ao Rio, onde as quadrilhas estão muito bem situadas nos morros e de lá poderão literalmente disparar ações contra a cidadania. Não há uma ação coordenada, competente, direcionada para esse enfrentamento; um trabalho que tenha por objetivo reduzir ao mínimo a ação dos criminosos, uma vez que extinguir o crime é algo de que não se pode cogitar, já que se trata de algo inerente à condição humana em sociedade.

Com o passar dos anos essa situação, que já assumiu contornos proto-políticos, tenderá a se cristalizar. Já se fala que as facções criminosas tramam eleger representantes no parlamento.

E então, afora os deputados e senadores que praticam os crimes de colarinho branco, teremos, afinal, o criminoso comum, o bandido, o salteador de vidas, devidamente entronizado num mandato, legislando a favor de seus interesses.

O comportamento do governador de São Paulo foi uma tenebrosa transação, uma negociata cujo preço será pago pela sociedade.


segunda-feira, 15 de maio de 2006

O silêncio dos inocentes

"Nossa geração não lamenta tanto os crimes dos
perversos quanto o estarrecedor silêncio dos bondosos."
Martin L. King

A frase do Dr. Martin Luther King resume à perfeição a crise de autoridade e de competência do Estado brasileiro em reprimir exemplarmente a ação brutal de criminosos. A leniência vai desde uma legislação frouxa e que tende a facilitar a volta de criminosos hediondos ao convívio social, até à lentidão com que as forças da lei e da ordem estão se organizando.

Os bandidos em S. Paulo, agora, além de ataques a bases policiais, estão se voltando contra ônibus e bancos. O objetivo é bastante claro: querem implantar o caos, desestabilizar a sociedade, disseminar o terror. Muitos presídios estão sublevados e aparentemente não há no horizonte um indicativo de quando a baderna será posta sob controle.

Há uma real e efetiva demonstração de força dos criminosos organizados, há uma inequívoca indicação de que tais atos implicarão outros e, da parte do Estado, somente conversas, reuniões, e, claro, a resistência possível da polícia paulista.

Entretanto, o País conta com cerca de 3.000 soldados da Força Pública do Exército e 4.000 mil homens da Força Nacional de Segurança, um grupamento civil integrado por policiais de vários Estados. São tropas de elite, capazes de enfrentar com o poder de fogo necessário a ação bárbara dos criminosos descontrolados. Por que essas tropas não foram acionadas?

Não nego que estou redigindo este artigo movido pelo mais forte sentimento de indignação: não é mais possível ao cidadão comum, o homem do povo, eu, você, qualquer um, conviver em silêncio temeroso e quase reverencial com bandidos da pior espécie.

São eles pessoas sem qualquer sentimento de compaixão, piedade, misericórdia ou respeito pelos direitos humanos. O bandido é um ser despido de humanidade. Ou melhor: o bandido é um ser vestido com as mais ornamentadas e vistosas filigranas que a brutalidade humana concebeu ao longo do tempo. O bandido é a humanidade vestida de sangue.

Não vou negar que as deploráveis condições sócio-econômicas nacionais são a causa primeira, a matriz geradora do banditismo e da criminalidade. É preciso uma ação social séria, de desdobramentos históricos profundos, a fim de reverter-se tal situação. E isso somente será possível com uma justa distribuição de renda, freando-se também o apetite pelo lucro ilimitado, que no Brasil tornou-se uma epidemia.

Mas, no momento, vivemos uma situação real, objetiva, sensível no medo, no pavor que desperta e que já obteve repercussão mundial. Não há como rejeitar que é preciso haver uma reação vigorosa em defesa do cidadão. Silenciar, em nome de qualquer doutrina de ademanes anunciadamente humanitários para com os bandidos, é agir com ingenuidade ou má fé.

Meu entendimento é esse: é preciso reagir: mas, enquanto isso não acontece, ocorre o seguinte: entre os apetites do nosso capitalismo que criou essa situação, e a descontrolada brutalidade dos bandidos, fica o cidadão pobre, o trabalhador, que sofre as conseqüências. Sofre calado, e em toda a plenidute, o silêncio dos inocentes.