domingo, 24 de julho de 2011

Castells propõe outra democracia
Antônio Martins, do site Outras Palavras


Estranha Europa. No terreno dos direitos sociais e da política institucional, um
passo atrás sucede o outro, numa espiral descendente que parece não ter fim. Na
última semana, a Itália promoveu nova rodada de privatizações e ataques ao estado de
bem-estar social (entre outros pontos, acabou a gratuidade das consultas médicas com
especialistas, na rede pública de saúde).
 
Medidas semelhantes têm sido adotadas há pelo menos um ano e meio, desde que o
continente decidiu cobrar das sociedades o desfalque provocado nas finanças públicas
pelo socorro aos bancos. As eleições, que deveriam corrigir tais retrocessos,
parecem impotentes. Os partidos com chances reais de chegar ao poder igualaram-se,
ao aderirem a um 'pensamento único' que nunca ousa tocar os lucros do sistema
financeiro. A esquerda mais radical parece, como tantas vezes, incapaz de dialogar
com as maiorias.

E no entanto, engana-se quem julga que tudo são misérias. Nos últimos meses, a
Europa converteu-se num laboratório de novas formas de mobilização da sociedade
civil - marcadas pela autoconvocação e busca de autonomia. O processo começou em
setembro de 2010, quando os estudantes britânicos e italianos mobilizaram-se
maciçamente (e de modo muito criativo) contra a cobrança de mensalidades (no Reino
Unido) e uma contra-reforma universitária (na Itália). Ampliou-se a partir de maio,
quando a juventude espanhola transformou em acampamentos as praças principais de
dezenas de cidades, para protestar contra o sequestro do futuro coletivo por
'políticos e banqueiros'. Daí derivou a ocupação da Praça Syntagma, em Atenas.

De que modo estas novas formas de expressão e de luta poderão transformar a
sociedade? Em todas as mobilizações recentes, busca-se uma nova democracia (e se
procura praticá-la em micro-escala, na gestão de assuntos como alimentação, limpeza
e segurança dos acampamentos). Constata-se que, na Europa, as instituições que
deveriam representar a sociedade - Parlamentos e governos - perderam ou abandonaram
este papel.

No entanto, é nestas instituições que ainda se concentra o poder - inclusive o de
estabelecer ou extinguir direitos. É preciso, portanto, incidir sobre elas,
pressioná-las - ainda que se procurem caminhos para superá-las, Como articular esta
dialética, que exige reivindicar de quem se considera ilegítimo?

As praças espanholas foram, além de tudo, palco de importantes reflexões teóricas a
este repeito. Os debates eram feitos ao ar livre, sem nenhuma solenidade - mas com
muita densidade e empenho criador. Na Praça Catalunha, em Barcelona, o sociólogo e
filósofo Manuel Castells compareceu a um dos diálogos. Falou cerca de 50 minutos,
sobre Comunicação, Poder e Democracia.
 
Lembrou sua condição de participante ativo dos movimentos de maio de 1968 - talvez o
primeiro momento em que se reivindicou coletivamente a superação democrática das
instituições surgidas da revolução francesa. Foi, como é de seu costume, claro e
incisivo. Em alguns momentos, não se furtou a recomendar ações e posturas: por
exemplo, a luta pela universalização do acesso à internet e a atitude de
não-violência ativa.

Os vídeos com a fala de Castells estão disponíveis na internet (veja ao final do
texto). Para que possa circular mais amplamente e despertar reflexão mais profunda,
'Outras Palavras' transformou-o em texto escrito e traduziu-o para o português.
Ótima leitura!

* * *

Meu nome é Manuel Castells. Sou professor e investigador da Universidade da
Catalunha. Estou aqui para falar com vocês sobre Comunicação, Poder e Democracia.
Uma das acampadas perguntou-me se gostaria de comparecer ao acampamento para falar
de algumas das ideias que tenho desenvolvido há muitos anos, precisamente sobre este
tema, e que estão reunidas num livro que lancei há pouco, Comunicação e Poder.
Fiquei encantado, porque acho central debater publicamente estes temas. Quis
contribuir à maneira que posso para um movimento que ocorre em Barcelona, na
Catalunha, na Espanha e em outros países. Ontem, já havia 706 acampamentos em todo o
mundo e continuam a se multiplicar. São como a água. Quando ela corre, passa por
qualquer lugar, supera obstáculos.

Quando há uma necessidade real, sentida em muitas sociedades, baste que a luta por
ela comece a se expressar em alguma parte para que se difunda um sentimento de que
'nós também podemos'. Foi o que ocorreu, por exemplo, com as revoluções árabes. É
interessante que um dos sites mais atualizados sobre o movimento [espanhol] chama-se
'Yes, we camp', reproduzindo o que Obama disse em sua campanha - embora saibamos que
agora as coisas estão mais complicadas. O importante é que muitas pessoas, em todo o
mundo, não aceitam a fatalidade da crise e pensam que podem fazer algo - o quê,
ainda não sabem - para enfrentar a miséria política predominante e recuperar o papel
de protagonistas que as pessoas sempre desejaram ter em seu futuro.

Não estou aqui para fazer um discurso político, mas para compartilhar o que pude
fazer, em termos de investigação, reflexão e análise a este respeito, durante muitos
anos. Começarei debatendo qual a relação entre comunicação e poder. Debaterei em
seguida a crise que a democracia está vivendo e as soluções concretas que se propõem
para a reconstrução desta democracia.

* * *

As relações de poder são essenciais em todas as sociedades e através da História.
São, aliás, as relações essenciais em nossas sociedades, porque quem tem poder
constrói as instituições em função de seus interesses e valores. As instituições que
vivemos são, cada vez mais, simples expressões destas relações de poder.

Mas como se forma o poder? Ele está fundamentalmente em nossas mentes: não fora, mas
dentro de nós. Claro que há, também, a violência e a intimidação, para o caso de nos
atrevermos a pensar diferente - mas a História demonstra que um poder que se apoia
apenas na violência é sempre débil. Para superá-lo, é preciso passar por muito
sofrimento. Mas, em última instância, a dominação das mentes é muito mais eficaz que
a tortura.

Por isso, a batalha do poder está em nossas mentes, na forma que pensamos. Ela
determina o que fazemos. E as mentes são redes: redes neuronais, que formam suas
visões de mundo, suas concepções, em relação com outras pessoas, outras mentes,
outras redes de neurônios e com as redes de nosso entorno social e natural.

Tudo isso é o processo de comunicação. Ela é simplesmente a conexão entre distintas
redes neuronais. O entorno comunicativo e o que se passa nele é, portanto, o
elemento fundamental através do qual nossas mentes funcionam e, portanto, formam-se
as relações de poder.

Onde quer que haja poder, haverá resistência a ele. E o controle da comunicação foi
sempre a forma fundamental de exercício do poder

Felizmente há sempre, nas sociedades, não apenas poder, mas, também, contrapoder. Se
existe uma lei social geral certamente válida, é que sustenta: onde quer que haja
dominação, haverá resistência a ela. Em consequência, ao longo do tempo e também
aqui, hoje, o que aparece como 'normal', 'natural', 'estabelecido', 'acordado' são
simplesmente os resultados dos compromissos de luta e negociação que se dão entre
distintos interesses e valores na sociedade. Quem ganha vai ampliando seu poder nas
instituições. Quem contesta o poder e apresenta ideias novas, se tem poder
suficiente, vai mudando estas instituições. Esta é a História, continuamente. O
vai-e-vem entre o velho e o novo; entre os interesses que já estão cristalizados,
burocratizados nas instituições e as interesses e valores de quem quer propor uma
nova maneira de ser e viver.

É por isso que o controle da informação e da comunicação foi sempre a forma
fundamental de exercício do poder. O controle dos governos, das grandes empresas
midiáticas - esta é a forma essencial. E por isso a política transformou-se, hoje,
em algo midiático. O que não existe nos meios, não chega aos cidadãos - e, portanto,
não existe. Aliás, o mais importante da política mediática não é tanto o que dizem
os meios, mas o que eles ocultam: a ausência de mensagens, opiniões e alternativas.

Na medida em que há uma mudança organizativa e tecnológica no entorno da
comunicação, mudam também os processos de comunicação, e como consequência as
relações de poder. Qual a mudança fundamental que temos observado nos últimos anos?
É a passagem de um sistema totalmente dominado pela comunicação de massas, e
centrado nos meios de comunicação de massas, para um sistema que chamo de
autocomunicação de massas, através da internet.

Por autocomunicação de massas podemos entender a capacidade de cada pessoa para
emitir suas mensagens, selecionar as que quer receber e organizar suas próprias
redes - nas quais os conteúdos, as formas e os participantes são definidos de forma
autônoma. É claro que isso acontece em um cenário dominado por grandes empresas de
comunicação e pelas empresas de internet. Porém, dentro desse espaço existem
possibilidades infinitamente maiores que havia no espaço tradicional dos meios de
comunicação de massa. Pode-se organizar redes horizontais de comunicação interativa,
que chegam à sociedade através de pessoas, interesses, valores e grupos sociais não
representados pelos sistemas corporativos de poder. Em consequência, ampliou-se
extraordinariamente o espaço para a comunicação conflitiva e, portanto, o espaço de
autorrepresentação das pessoas na sociedade.

Durante anos, minhas observações dos movimentos sociais mostram que essa autonomia
comunicativa tem sido aproveitada, para organizar e ampliar a mobilização. Desde
março de 2004, na Espanha, existe um movimento espontâneo, através de mobilizações,
provocadas pelas mentiras do governo naquele momento. Tudo o que se passou nos
últimos anos e as revoluções árabes, toda essa experiência mostra que o processo
muda a partir do momento em que é produzida alguma indignação por algum ato que já
não se pode suportar. A partir dessa indignação organiza-se um debate. Desse momento
em diante, as iniciativas de rede, do ciberespaço, passam ao espaço urbano, e se
organiza uma interação entre o espaço urbano e o da rede virtual. Ela organiza,
mobiliza, gera uma dinâmica que modifica instantaneamente as relações de poder na
sociedade, e começa a influenciar o mais importante: as mentalidades das pessoas.

As pessoas percebem que não estão sozinhas e se tornam mais fortes. O sistema
passivo de comunicação e democracia consiste em isolar as pessoas e agregá-las em
função dos que controlam o poder

De repente, as pessoas percebem que não estão sozinhas. O que sentem, o que pensam,
outros também sentem e pensam. E quando não estão sozinhas, as pessoas são mais
fortes. Porque todo o conjunto do sistema passivo de comunicação e de democracia
consiste em isolar essas pessoas e agregá-las em função dos que controlam os
sistemas de poder nas instituições. A separação e agregação segundo o que já está
estabelecido fazem com que só se possa pensar através dos sistemas predeterminados
pelos interesses que dominam as instituições. A partir do momento em que surge uma
dinâmica espontânea de organização em rede, na internet, nas ruas e nas relações
interpessoais - a partir daí, a dinâmica muda. Quando as pessoas já não estão
sozinhas, quando sabem que estão juntas, produz-se a mudança mais importante nas
mentes. Perde-se o medo de dizer e de fazer. Porque o medo é a emoção primordial do
ser humano, porque todos somos descendentes de covardes, pois se os valentes não
corressem o suficiente, eram pegos pelas feras.

Portanto, toda a sociedade está baseada na capacidade de instigar o medo nas
pessoas, e na capacidade das pessoas em superar esse medo. Essa superação só pode

ser feita em grupos, nunca individualmente. É da superação do medo, através da
reunião de indivíduos em grupos - mas sem deixar a sua individualidade - que começam
a surgir críticas, alternativas e debates sobre que outras formas de vida são
possíveis.

* * *

Isso permite colocar saídas para a crise da democracia atual. Em todo o mundo,
estamos vivendo uma crise muito séria e profunda da democracia. A democracia
representativa foi uma conquista histórica dos povos, que custou muito sangue, suor
e lágrimas, contra os despotismos que dominaram grande parte do mundo. Porém, a
partir do momento em que já se constituem instituições democráticas, imediatamente
formam-se partidos políticos, que definem as regras da participação política de
acordo com seus interesses e os interesses que representam. Fecham-se outras vias de
representação e se assegura por lei eleitoral que apenas os partidos majoritários
podem governar.

A democracia representativa é reduzida, a distância em relação aos cidadãos aumenta,
e a classe política organiza-se como classe própria, como trabalho profissional. Já
não importa qual ideologia o político segue, ou se é corrupto ou não. Eles podem
dizer: 'a política sou eu, a política é o partido e o partido sou eu'. Qualquer tipo
de intervenção política tem que passar por essa instância estrutural dos partidos.
Em consequência, quando há corrupção, há impunidade. Quando há erros graves na
condução de políticas sobre a crise econômica, não se responsabiliza ninguém por
tais erros e pelas consequências que produziram sobre os cidadãos. Só quando chegam
as eleições os políticos pagam por seus erros. Mas o eleitor deve escolher entre
dois menus da mesma cozinha. Porque as leis eleitorais foram construídas para que os
partidos majoritários continuem sendo majoritários. A menos que ocorram 'terremotos
eleitorais', o que não é impossível, mas só acontece como consequência de mudanças
sociais profundas.

Dois terços dos cidadãos do mundo acreditam que não são governados democraticamente.
Dizem que vivem numa democracia, porém ela não é democrática. E isso é considerado
normal

A classe política é o grupo mais desprestigiado em todas as pesquisas internacionais
sobre prestígio profissional. Inclusive, na Itália, os mafiosos e as prostitutas se
saíram melhor que os políticos. As pessoas diziam que pelo menos eles dizem o que
fazem, diferentemente dos políticos. Insisto que isso é prejudicial para a maioria
dos políticos, que são honestos e tentam fazer seu trabalho. Mas quando há um
sentimento tão generalizado no mundo, os políticos fizeram algo que os colocou como
classe homogênea, porque não é excepcional: foi empiricamente constatado pelos
estudos de sociologia política.

Quando as coisas vão 'mais ou menos', tudo continua igual. Estudos mostram que 75%
das pessoas votam contra alguma coisa, e não a favor. As mensagens na propaganda
política são, na maioria das vezes, negativas, pois os profissionais de marketing
político sabem que uma mensagem negativa tem cinco vezes mais impacto que uma
mensagem positiva. Portanto, todos atacam todos, e assim todos os políticos afundam
na opinião das pessoas.

Porém, quando as coisas vão mal, quando há uma crise, há um despertar de interesse
por saber como as coisas poderiam ser diferentes. Quando os cidadãos percebem que
não estão satisfeitos com as alternativas que existem, cria-se uma insatisfação.
Então, rompe-se a confiança básica entre os cidadãos e aqueles que os deveriam
representar. Esse desencontro entre o que as pessoas pensam e seus representantes
significa que os representantes da democracia caminham para um lado, enquanto o
sentimento dos representados vai por outro.

Devemos lembrar que, de acordo com o modo como se organiza a insatisfação popular,
podem ocorrer movimentos extremistas, fascistas, racistas, xenófobos, que já se vê
na Catalunha. Foi o que ocorreu na crise dos anos 30 - da qual não surgiu a
revolução socialista, mas o fascismo. Por esse motivo, é importante que outros
movimentos coletivos, com valores positivos, humanos, humanistas ocupem o espaço
para preencher essa lacuna entre a política e a sociedade.

Portanto é necessário que a ideia de uma reconstrução da democracia esteja nas ruas,
aqui e no mundo. Aqueles que representam a democracia hoje não podem fazer essa
reconstrução, pois ela vai contra seus interesses como grupo profissional e grupo
político. Muitos tentaram implantar mudanças, porém seus próprios partidos cortaram
esses projetos. É o sistema que bloqueia essa reconstrução, e não os indivíduos.
Esses sistemas têm interesses poderosos, relacionados ao poder político, econômico,
cultural, tecnológico. Se não houver uma pressão social, não haverá mudança. E a
mudança social inicia com as mentes: o que muitas pessoas estão fazendo, aqui e em
outros lugares, é mudar a forma de pensar de si mesmas e das demais, pensar
diferente e pensar juntos.

* * *

Três temas me parecem básicos para a reconstrução da democracia. Poderiam ser
debatidos aqui. Um é a democracia através da comunicação. Outro é que tipo de
instituições democráticas e de reforma democrática necessitamos. Por último, se
existem outras formas de democracia.

A comunicação é fundamental, pois é a base da relação entre poder e contrapoder. A
democratização da comunicação é o princípio da democratização das instituições da
sociedade. A comunicação para toda a sociedade é um direito fundamental: a
comunicação livre, autônoma e para todo o mundo é um direito tão fundamental quanto
a saúde e a educação. Esse direito concretiza-se hoje pela internet e pelas redes
móveis como direito humano fundamental.

O acesso à internet precisa ser universal. Também o acesso à telefonia foi
subsidiado. É essencial multiplicar pontos de acesso. As pessoas precisam poder
acessar quando necessitarem

O acesso à rede precisa ser universal e subsidiado. A forma de financiar este
direito depende das negociações entre os reguladores públicos e as empresas de
telecomunicação. Na história das telecomunicações, o acesso à telefonia foi
subsidiado em diversos países e o mesmo pode ser feito com a internet. Também é
essencial a multiplicação de pontos de acesso público e gratuito, nos centros
sociais, nas escolas, nas bibliotecas, para que a internet seja sempre algo possível
para todos. As pessoas precisam poder acessar quanto necessitarem. Porém, isso não
significa que só devemos nos comunicar pela internet. Por exemplo, a ideia de votar
pela internet é um gravíssimo atentado à democracia, e a ideia de que as consultas
médicas só deveriam ser feitas pela internet também é prejudicial. É preciso ter
opções. O direito fundamental é ao acesso. Ele permite que todos se comuniquem com
todos; permite a construção de uma rede em função de nossos projetos, nossos
interesses e nossos sonhos.

Além disso, é preciso lutar pela liberdade de internet, pois o acesso à internet não
é o mesmo que uma internet livre. Acabar com a censura, acabar com a invasão de
privacidade, que é uma prática constante, e a livre circulação de conteúdos
digitais. Implica ir a quem está por trás das leis: empresas de conteúdos culturais
e os grupos de pressão que atuam para que não haja liberdade na internet (.).

Também é preciso que se crie instituições e processos democráticos de forma
concreta. Existem medidas muito concretas para uma reforma política e institucional.
A reforma na lei eleitoral para que não se discrimine as minorias políticas, e a
possibilidade de contabilizar votos nulos e brancos. Como fazê-lo? Para isso, é
preciso imaginação. Mas acredito que a ideia de representar os votos nulos e brancos
no parlamento é muito interessante. Entre outras coisas, porque nas eleições de
Barcelona, por exemplo, eles somam quase 7%.

A possibilidade de eleger pessoas não filiadas a partidos é básica. Um dos maiores
escândalos da democracia é que se vote apenas em um partido. (.) Infelizmente,
ninguém diz nada sobre isso, tudo continua igual, porque os que podem mudar são
aqueles que se beneficiam desse sistema.

Quanto ao governo, insisto na transparência informativa absoluta pela internet. Tudo
o que os cidadãos têm o direito a saber, tem que estar na internet, acessível. Mas
não em letras pequenas em cinza, e sim como um sistema dinâmico, usando técnicas
como as da publicidade, que torna as informações compreensíveis. Dessa forma se
abriria a possibilidade de começar a construir alguma confiança nas instituições
democráticas.

A internet deveria se utilizada em processos participativos e de consulta. A
participação precisa ser mais que presenciar uma reunião burocrática, ao final de um
dia de trabalho

As enormes possibilidades da internet também deveriam ser utilizadas para processos
participativos e de consulta, em uma grande quantidade de problemas concretos,
particularmente em nível municipal. A democracia participativa pode ser muito
ampliada, se puder ir além da presença em uma comissão municipal burocrática, depois
de um cansativo dia de trabalho. Se os processos de participação fossem estendidos a
internet, inclusive com voto indicativo, a democracia poderia ser mais abrangente.
Os representantes políticos teriam que ser submetidos a organismos que os
supervisionem, mas isso daria muito trabalho. Insisto nesse ponto que as propostas
do acampamento são muito precisas e vale a pena pensar nelas, refletir sobre elas e
debatê-las.

Mas há algo mais importante. É a criação de novas formas de democracia, a partir dos
processos de debates em curso. O mais importante, na minha opinião, não é o que se
propõe, mas como se propõe. Não é tanto o que se faz, mas como se faz. Pois é aí que
está a questão. Uma democracia futura não sairá de documentos, por mais completos e
bem formulados que sejam. Sairá de práticas coletivas, que vão experimentando novos
mecanismos de deliberação, representação e decisão. Vamos aprendendo no caminho.
 
Esse é o método, diria eu, político e científico. Através de experiências, pois é
muito difícil que alguém invente um sistema novo, que substituiria o outro sem que
haja debates e sem que as pessoas saibam exatamente o que está acontecendo. Daí a
importância do que está sendo feito aqui e em outras ocupações de praças, a
participação em comissões, a coordenação de comissões e o poder de decisão das
assembleias; que cada coletivo específico gere suas próprias formas que podem ser
controladas pelas pessoas que participam. É o que está sendo feito aqui, mas não
apenas aqui, não apenas nos acampamentos, mas na sociedade.

O resultado disso seria a substituição da democracia dos partidos para a democracia
das pessoas. É essencial o que já está sendo feito, que não haja líderes no
processo, que se troquem as posições de influência, que se mantenha a abertura
total, e tolerância total ao debate. O direito à estupidez é um direito humano
fundamental, e deve ser respeitado. Que não haja mecanismos formais de militância,
como não há aqui, que se confie, sobretudo, na capacidade coletiva, por interação,
por uma estrutura em rede, de autocorreção dos defeitos, no conjunto da sociedade.
Isso não é uma utopia, isso está sendo feito aqui, e se é feito aqui, pode ser feito
na sociedade.

Não defendo isso como modelo único, mas em uma fase de experimentação. Essa forma de
participação permite ver a emergência de modelos distintos, na prática. É um
processo lento, porque queremos ir longe. Vamos fazer o que gostamos, vamos criar
uma democracia, tranquilamente, e não depressa, como o é a vida hoje em dia.

Minha grande experiência com movimentos sociais - começando com maio de 68, do qual
participei ativamente - me diz que aqui, e que em todos os acampamentos ao redor do
mundo, existem raízes. Porque quaisquer que sejam as formas, elas se expandirão.
Impulsionarão mudanças profundas, precisamente por ser este um movimento de pessoas,
não de organizações. E as pessoas não são criadas ou destruídas, mas as pessoas se
transformam.

É essencial que esse processo de reconstrução da democracia sustente um princípio
fundamental. Um imperativo categórico, que na minha opinião, já se expressa: a
não-violência

Mas não será fácil. E quando os poderes se derem conta de que as praças falam sério
- pois ainda não se dão conta disso - reagirão, provavelmente de forma violenta.
Existem muitos interesses em jogo. Por isso é essencial que esse processo lento e
profundo de reconstrução da democracia viva com um princípio fundamental. Um
imperativo categórico, que na minha opinião, já se expressa aqui, que é a não
violência.

Depois de 11 dias de acampamentos por toda a Espanha, não houve nenhum incidente
violento. Por isso, a violência provável do poder deve ter como resposta a
não-violência das pessoas. E para isso é preciso muita coragem, porque responder a
violência com violência é uma reação de medo. Será preciso trabalhar muito com as
pessoas que têm tanto medo, que não o superam, e que se tornam violentas. É preciso
ir a um nível superior, o da superação do medo a partir da aceitação medo. A única
forma de superar o medo é sair da solidão, juntar-se com os demais, e se superarem o
medo sem violência, tudo é possível.

Se precisasse criar um slogan, ele seria: medrosos do mundo inteiro, uni-vos pela
rede, pois só podem perder seu medo.


 
A doce maldita

A personalidade do gênio é parte de um mundo único e somente entrevisto, se tanto, pelo senso comum. Os atos autodestrutivos, os comportamentos discrepantes, integram essa forma de existir, esse universo paralelo e ofegante. Sem dor inexiste arte, criação, descobertas e propostas que são apresentasdas exatamente para não ser compreendidas e aceitas. Há uma decisão íntima por não ter compreensão; há necessidade de divergir e ser gauche. Há vida e pronto. Quem não entende que fique sem entender.