sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Primeira de uma série de histórias de Alberany, o abominável, a ser narradas neste folhetim

De como Alberany fingiu-se de eremita e acabou em ignóbil masmorra

Ó vós, que vos abalançais a ler este coranto, digo-vos que sou Alberany, o abominável, e que encontro-me em lamentável situação, atirado a cárcere de masmorra hedionda e vil. A princípio contar-vos-ei como vim aqui parar, hoje dormindo sobre a palha e comendo códeas de pão dormido, ao lado de infeliz farsante que cometeu o erro de me acompanhar em meus intentos e embustes. Estamos no ano da graça de 1712 e nesta quadra se passa minha existência malsã.
 Eis o que digo e o que aconteceu: encontrava-me eu percorrendo aldeias e vilarejos onde exercia meu nefando ofício de enganar e surrupiar de pessoas crédulas até mesmo a roupa do corpo, mediante anúncios de tragédias e outros males, e me apresentava como curandeiro dotado de grandes poderes. Se me dessem o que pedia nada de mal lhes aconteceria. 

http://cinerama.blogs.sapo.pt/322811.html
Neste périplo encontrei, caído de bêbado, o indivíduo já citado. Dormia ele num estábulo onde eu também vim a me abrigar. Quando acordou conversamos e percebi que ali estava um ordinário igual a mim. Combinamos que ele chegaria antecipadamente a um povoado, fazendo-se passar por coxo. Pediria esmolas para ir a Roma em busca do Papa, que certamente o curaria. Nesse momento eu chegaria e, fazendo rezas fortes, o faria curado, atraindo sobre nós os favores do populacho. 

Destarte fizemos muito dinheiro e partimos então para grande e ilustre cidade, onde iríamos explorar o povo nos arrabaldes. Assim pensamos e assim fizemos. Bom dinheiro entrou e o gastamos todo em casas de tavolagem. Então rumamos para iniciativas mais ousadas. Disse eu ao detestável comparsa: 


- Vamos fazer pregações em púlpitos. Seremos dois eremitas que recolhem recursos para uma nova e definitiva Cruzada que libertará a Terra Santa do jugo dos infiéis. Conheço o latim e...

- Sabeis latim? - quis ele saber.


- Sim - respondi.

- E o que sabeis de latim?


Respondi que conhecia duas palavras: "orater frater" e que isso, no que se resumia meu grande saber, seria o suficiente para dosar as multidões aos nossos intentos. 

- O que significa tal coisa? - questionou.


- Não sei. Mas sei que quando os padres dizem isso nas missas todos se curvam. E um rapazinho, munido de uma vara que tem em uma das pontas uma sacola recolhe dinheiro e muito. Até mesmo moedas de ouro.


Ele então sugeriu que às palavras em latim ajuntássemos esta outra: "catecúmeno". Nem eu nem ele sabíamos o que significava, mas o perverso aduziu: - Certa feita quando eu, praticando diatribes no adro de uma igreja promovia grande confusão, fui de tal palavra acusado pelo padre. Portanto,se sou um catecúmeno, e sei bem o que sou, catecúmeno deve ser algo mui lamentável e péssimo. 


Pusemos em andamento o plano. Vestimo-nos de andrajos, munimo-nos de cajados e fomos para o centro da cidade. Ali havia duas grandes praças e nas praças, que distavam uma da outra muitas braças, havia dois púlpitos em pedra, de onde os cidadãos podiam se manifestar, gritar e reivindicar, muitas vezes recebendo em troco ovos podres e repolhos na cara. 


Caminhamos cada um para uma praça e começamos nossa solerte prédica. Deu-se então o meu exórdio. Subindo ao púlpito ergui o cajado e elevei a voz. Berrei: - Orater frater, catecúmenos! - ninguém me deu atenção. Repeti: - Orater frater, catecúmenos! - e mais uma vez: - Orater frater, catecúmenos!

A multidão continuava a passar, ignorando-me. De nada adiantava minha sórdida surtida. Até que vi um homem que parecia se encaminhar para mim. Pelo menos olhava para mim e disso não havia dúvida. Era um tipo alto e fornido, envergando roupas de certo luxo e um portentoso tricorne. Entendi que estaria ali a minha vítima primeira.

Encarei o tipo e insisti: - Orater frater, catecúmeno! - Orater frater, catecúmeno! - o homem aproximou-se e eu lhe disse:   -Orater frater, catecúmeno! Orater frater! Ajoelhai-vos e ouvi a palavra de um austero eremita que o deseja ao lado da luta contra os mouros!


Tomado de surpresa o homem reagiu quando gritei: - Orater frater, maldito! Orater frater, farsante!  já fora de mim, pois percebia que meu plano não estava dando certo. Possuído de grande furor passei a acusar o homem de torpe, de vil e de avaro; de mesquinho, de ímprobo e de corrupto;de sonegador e retentor do dízimo na luta contra os infiéis. 


Grande erro cometi. O homem era padre que gostava de livrar-se da sotaina e envergar trajes civis. Para completar havia bebido um pouco e atacou-me a golpes de sólida bengala de cedro. Reagiu assim quando eu dizia ser "enviado do Papa em nobre missão de postular esmolas santas para a guerra contra os mouros".


Munido de tal arma ele saltou sobre o púlpito e vibrou-me formidável golpe no crânio, pondo-me abaixo. E gritava: - Ataquem o perjuro! Ataquem o herege! - foi o suficiente. Um grupo de desocupados investiu contra mim e me pôs em fuga sob uma chuva de golpes e pedradas.

Enquanto corria ouvia as invectivas: - Atacai o monstro! Atacai o malvado! Matai ao assassino! Atacai-o e matai-o! É um lúbrico e um vilão e matou seu próprio pai! Parricida! Parricida! - as coisas estavam fora de controle. Em poucos minutos boato daninho havia se espalhado e agora eu era um parricida. Já me via pendurado à forca. Corri em busca do meu amigo. 

Este não tivera melhor sorte. Insistindo com um mendigo que deveria dar-lhe todo o seu dinheiro para as Cruzadas, enfureceu-se quando este o agrediu com gesto chulo.  Ato contínuo atirou-se à goela do patife e tentava meter as mãos em seus bolsos para se apoderar de tudo o que pudesse.



O miserável mendigo, vendo-se a ponto de perder suas parcas moedas valeu-se do povo: - Atacai-o, ó meus! Atacai-o! Eis que tenta roubar os vinténs de um pobre e todo pobre é um santo, como dizem as Escrituras! - as pessoas então atentaram àquela mesquinha contenda e moeram de pau o meu amigo.


Corremos então de uma praça à outra. Ele de lá e eu de cá, e nos encontramos no meio do caminho. A gendarmeria fazia a sua ronda e fomos capturados. E agora estamos aqui, nesta infecta prisão. Creio que em breve seremos levados ao juiz.
(Continua)

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