sábado, 2 de abril de 2011

Vandalismo na rede pública de saúde: o povo tratado a ferro frio

"Isso não é democracia; isso é vandalismo." A afirmativa é de um sofrido e amargo homem, idoso, já bem mais de 60, a respeito da medicina que o Estado brasileiro oferta, ou melhor, impõe, impinge, é o que quero dizer, ao povo. O rápido testemunhal foi feito ao Globo Repórter de ontem, numa das mais sérias, dignas, corajosas e incisivas manifestações de jornalismo que já vi.
Imagem ilustrativo-metafórica da situação
dos hospitais públicos no Brasil: o povo
tratado a ferro frio
 Isso prova: se o patrão deixa, o jornalista faz. Mas, voltemos ao Globo Repórter: a pauta era mostrar como funcionam - ou o contrário disso -, os hospitais públicos desse país. Resultado: uma aterradora realidade de morte por falta de meios de médicos decentes trabalharem, hospitais com obras jamais concluídas e hoje arruinadas, médicos desonestos, médicos insensíveis, lamentos, choro e, para ser um pouco bíblico, ranger de dentes.

O programa foi uma poderosa ação editorial, sob a competência de equipe de profissionais irretocável. A edição ampliava o efeito da denúncia, magnificava a dor, o desespero, a angústia das vítimas desse tipo de assistência - se é que isso é assistência.

Creio que a eficácia editorial do programa, ou seja, sua repercussão, efeito de choque sobre os responsáveis, poderá ser mensurada em alguma declaração do Ministério da Saúde, o que dizem as autoridades setoriais, como se sentem diante do quadro que, digamos assim, administram. Sobre a sociedade, tenho para mim, essa eficácia já se processou: a indignação que sinto certamente é compartilhada por muita gente Brasil afora.

Mas temo que fique nisso mesmo: indignação social, paralisia do governo; perplexidade do cidadão, silêncio pesado de quem deveria agir. No fim, o dinheiro que deveria ser para construção, reforma ou restauração de hospitais irá para a construção de estádios de futebol. O pão e o circo, o pão e o circo. Que bom, que bom...

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Volto a escrever neste sábado.
Emanoel Barreto
Zootecnista agora é profissional de saúde

Recebi do zootecnista Edgar Manso uma boa notícia para a categoria. Compartilho:


Barreto,

Abaixo segue boa notícia para os zootecnistas do RN.
Foi proposta pelo vereador Ney Lopes Junior.
Mandei e-mail para ele e estarei me reunindo com o mesmo na próxima segunda em seu gabinete.

Abraço,
Edgar Manso

Diário Oficial do Município
NATAL, QUINTA-FEIRA, 16 DE DEZEMBRO DE 2010
Página 5

LEI PROMULGADA Nº 0321/2010
Dispõe sobre a Profissão de Zootecnista no Município do Natal, e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DO NATAL, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo Artigo 22, Inciso XVI, da Lei Orgânica do Município do Natal, e pelo Artigo 201, § 6º, da Resolução nº 337/05 - Regimento Interno - PROMULGA à seguinte Lei:

Art. 1º - Fica reconhecida para todos os efeitos legais, a Profissão de Zootecnista, como
Profissional da Área de Saúde do Município do Natal.

Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Sala das Sessões, em Natal, 09 de dezembro de 2010.  

quinta-feira, 31 de março de 2011

Deu na Tribuna que clamor público pressiona contra aumento de IPTU.

Moradores pedem mudança no IPTU


De um lado o secretário de Tributação, André Macedo, respaldado pela legislação e por relatórios técnicos de geoprocessamento, explicando as medidas adotadas pela prefeitura; de outros, líderes comunitários indignados, elevando o tom das críticas e até defendendo a adoção de um movimento de desobediência civil para que o tributo não seja pago enquanto o poder público não der respostas efetivas às demandas dos moradores. Reforçando o tiroteio, vereadores de oposição lamentando à falta de transparência e a insensibilidade da prefeitura na condução do problema.

Foi esta a tônica da audiência pública realizada ontem na Câmara Municipal para discutir o aumento do Imposto Predial e Territorial Urbano de Natal que, em alguns casos, chegou a  de 1.500%, segundo informações do autor da proposta de audiência, vereador George Câmara (PCdoB). 

A desobediência civil foi defendida pelo líder comunitário da Cidade da Esperança Lúcio Carlos, que reclamou do abandono do bairro, o primeiro conjunto habitacional do Brasil, construído no início da década de 1960 pelo então governador Aluízio Alves.  “A Rua Natal está cheia de buracos e lixo. Solicitamos uma ação da prefeitura há mais de um ano e nada foi feito”, disse ele. “É uma sacanagem dizer  que vai tomar a casa de quem não pagar o IPTU”, complementou.

Representando os moradores do loteamento José Sarney, João Bosco Tavares reclamou do aumento exorbitante do imposto e citou o caso de uma residência cujo IPTU subiu para R$ 680, enquanto o do  vizinho foi de R$ 50. “Como pode uma comunidade que tem a maioria das famílias inscritas no Bolsa Família pagar IPTU de R$ 600?”

Antônio Barbosa, da Cidade Satélite, considerou a situação do maior conjunto habitacional da cidade  “uma vergonha” em se tratando de bairro da zona sul. “Parece que os órgãos públicos fecharam os olhos para nós.” Já o representante do Jardim Progresso reclamou da falta de calçamento e de escola e de falhas na iluminação pública e na coleta de lixo. “O caminhão só está passando uma vez por semana”, disse ele.

Insatisfeito com o aumento do imposto, Gilberto Fonseca, do Cidade Praia, desabafou: “A prefeitura  não pode mandar só o cobrador para a nossa comunidade. Ela tem de mandar também o pessoal da ação social, das obras de infraestrutura.”

O advogado das entidades comunitárias,  Luiz Gomes, disse que houve falhas no geoprocessamento, que a verificação dos dados recebidos foi feita por amostragem e sugeriu que a Prefeitura do Natal reconhecesse as falhas e aceitasse uma solução negociada para evitar a judicialização do problema. “É fato que houve erros e que esses erros geraram impacto sócio-econômico nas pessoas, especialmente nas de baixa renda.” Depois de fazer uma explanação dos debates já realizados anteriormente e diante das posições assumidas pela prefeitura, Luiz disse que vai aguardar mais dez dias para então tomar as medidas cabíveis e que torcia por uma solução negociada. “Ao adotar a solução judicial, estamos elegendo um terceiro poder, que é o Judiciário, para resolver um problema administrativo.”

Para o presidente da Federação Estadual dos Conselhos Comunitários e Entidades Beneficentes do Rio Grande do Norte, Paulo César Oliveira, a audiência foi importante porque mostrou os vários aspectos da questão do IPTU. Ele defende a tese de que o Poder Legislativo pode se engajar na luta pela cobrança do tributo levando em conta não apenas questões técnicas, mas também a parte social dos contribuintes.

Para o vereador George Câmara, é fundamental que a prefeitura antes de buscar a todo custo recolher os impostos, dê aos cidadãos natalenses, direitos essenciais como saúde e educação. “Será que o aumento e o valor cobrado pelo IPTU são justos? Temos ruas esburacadas, faltam médicos e remédios, não há limpeza urbana freqüente, falta iluminação e nossa educação vai de mal a pior.

Micarla de Sousa admite levar em conta a questão social

Diante do que foi colocado na audiência pública, a prefeita Micarla de Sousa (PV) pediu um levantamento ao secretário de Tributação sobre a questão do IPTU, inclusive com número de contribuintes isentos. A informação foi dada no final da tarde de ontem pelo secretário executivo do Gabinete Civil, Rivaldo Fernandes, que acompanhou os debates na Câmara Municipal.

Segundo Rivaldo, a prefeita determinou que a Secretaria de Tributação “olhasse de maneira especial” para idosos, desempregados e para as famílias inscritas no programa Bolsa Família do governo federal.

A determinação da prefeita vai obrigar o secretário André Macedo  a mudar o discurso, até então respaldado em questões técnicas e no estrito cumprimento da lei. “A prefeitura vai corrigir todos os erros no cadastro”, garantiu Rivaldo.

Nos 20 minutos a que teve direito no encerramento da audiência, André Macedo perdeu boa parte do tempo justificando a adoção do geoprocessamento. “É impossível fazer a medição de 300 mil imóveis usando a trena.”

Ao responder a uma pergunta sobre arrecadação e aplicação dos recursos do IPTU, o secretário informou que no ano passado foram arrecadados, entre IPTUl e  taxa de limpeza pública, R$ 65 milhões. “Com esse dinheiro não tínhamos nem como pagar as despesas com a coleta de lixo’.
Uma imagem para lembrar o golpe de 64

E a multidão chora a partida do homem público

Alencar: o enterro de um grande morto

O enterro dos grandes mortos é um langor público e profundo. Há uma sinceridade momentânea que grita e quer ser ouvida por todos os jornais. É como se o grande morto reunisse em si todas as saudades dos vivos que deixou para trás, e as homenagens fúnebres, rituais, reverentes, compungidas, dessem à multidão que chora, de alguma maneira chora - chora o corolário de mágoas do existir, chora a hora derradeira de todos nós, chora a perplexidade daquele corpo morto - dissessem àquele que deixou de habitar o corpo que sua figura tinha algo de mítico, antepassado. O cerimonial, em sua matriz mais avoenga, é a repetição do gesto do hominídeo ancestral que urrava ante um corpo que, paralítico de vida, ele agitava, perplexo e inutilmente, buscando trazê-lo de volta ao grupo.

As homenagens a José Alencar não fogem ao padrão. O homem público, agora elevado à condição de desamparo coletivo, agrega à sua condição de grande morto o fato pesaroso de que jamais voltará. Torna-se no noticiário um ser único e, no jornal, encobre as demais informações, como diz Maurice Mouillaud. O fim de um grande homem torna-se o enigna da vida, do viver em sociedade; o enigma do seu discurso, da utopia que defendia, qualquer seja essa utopia, excelsa ou chã, o reveste como armadura histórica e imutável. 

O grande morto, repito, reúne em si todas as saudades, pelo menos no momento em que o paradoxal momento dessa passagem o torna reluzente em todas as manchetes. Depois as saudades se aquietam e voltamos todos a esperar que surja novamente um grande morto. E então a multidão de carpideiras voltará às ruas e clamará àquela perda. Que, no fundo, a todos nós nos atinge e nos faz pensar. Melancolia.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Minha estupidez

François Silvestre, cidadão da vida, escreveu artigo domingo passado no Novo Jornal a respeito da humanidade e sua inominável estupidez. O texto foi, para mim, um reencontro com um amigo que não vejo a anos. Comemorando esse reencontro, enviei-lhe email que compartilho:

Caríssimo François,

Vi, gloriosamente estarrecido, seu artigo de domingo último. Sim amigo,
porque o que você escreveu não é para ser lido, mas visto, apreciado pelo
olhar alumbrado ante mural improvável, ou meticulosamente observado por
visão que se encanta com alguma máquina pequenina e complexa. Foi esse o
meu sentimento. O texto, limitado pelo espaço da mancha gráfica, era
todavia infinito em sua profundidade virtual, o leitor arremetido, puxado
para o centro daquele universo paradoxalmente profundo e plano na página
do jornal.

Serena e lúcida loucura perpassa suas palavras, palavras matizadas,
palavras com cor, volume, corpo. Cor, volume e corpo como somente os
podemos perceber na pintura de um  grande mestre dessa arte que é pintar
com o que se escreve. A palavra vale mais que a imagem quando a palavra é
ela mesma a imagem proposta e visualizada na legalidade interna do texto.
Refiro à  palavra como ato positivo, concretizado, e, sendo assim, visível
no mundo pelos efeitos que provoca. Mesmo que seja um grito, a palavra é
forma corpórea para quem a percebe como escultura. Não estou falando para
os exatos, dirijo-me a quem pensa em paralelo, em contramão, em viés. Uma
conversa amigo, uma grande conversa, é mais que som inteligível articulado
em linguagem; mais que isso, a conversa é monumento.

Sua concepção de humanidade ou de não-humanidade comoveu-me e gratificou o
gesto do meu olhar que via sua obra impressa; e sendo coisa impressa era
imagem, planície a perder de vista. Um marco em meio ao deserto.

Amigo, encerro aqui, mas quero comunicar: tenho me dedicado, nos últimos
tempos, a me tornar um grande, se possível o maior ignorante das cousas e
atos de saber dos que sabem definir o mundo e propor suas soluções. Sou um
ignorante das sabenças definitivas que logo a História revela frágeis como
um dócil vime, sou um ignorante das matemáticas e das lógicas
irreversíveis, sou um ignorante da acurácia que minutos após está cega e
pede um novo modelo interpretativo para atender a intenções as mais
inaceitáveis.

Grato, amigo. Seu artigo, seu mural, mostrou-me que estou no caminho certo
e que devo perseguir a total ignorância. Sabe porquê? Porque continuo sem
entender a lógica, o motivo razoável que dá a alguém a sapiência social, o
direito de ser dono de uma empresa de aviação e nega a outro o direito de
ser dono de um pão, um fugidio pão que lhe mate a fome. E pior: não
entendo porque aquele que tem fome gostaria de ser, ele sim, o dono dos
aviões, de todos os aviões do mundo - e naturalizar tal situação para
sempre.

Abraço grande deste amigo que há anos não o vê,
Emanoel Barreto





terça-feira, 29 de março de 2011

Jô Soares entrevista José Alencar 03/08/2010 (Parte 1 de 5)

Jô Soares entrevista José Alencar 03/08/2010 (Parte 2 de 5)

Jô Soares entrevista José Alencar 03/08/2010 (Parte 3 de 5)

Jô Soares entrevista José Alencar 03/08/2010 (Parte 4 de 5)

Jô Soares entrevista José Alencar 03/08/2010 (Parte 5 de 5)

Recebi de Nabuco Pessoa comentário a respeito da matéria que publiquei sobre a morte do ex-vice-presidente José Alencar, que pode ser lida abaixo deste post. Agradeço a forma elegante como o questionamento me foi feito. Segue o comentário e logo abaixo a minha resposta, como requerido:

Jornalista,

Gostaria da sua opinião sobre o fato do não reconhecimento da filha, o senhor acha que isso não é um fato lastimável e que deveria ser repudiado?

Nabuco Pessoa
.....

Caro Nabuco, 

Realmente foi um fato lastimável, mas isso não o impediu de ser um grande homem público. A decisão judicial quanto à paternidade de José Alencar pode ser lida aqui .

Saudações,
Emanoel Barreto

José de Alencar: na entrevista à TVU, o perfil de um lutador


O então candidato José Alencar nos estúdios da TVU, após a entrevista que concedeu ao programa Xeque-Mate

José de Alencar: o adeus ao grande avô
A morte do ex-vice-presidente José Alencar ocorre após intensa e firme luta contra o câncer. Tive oportunidade de entrevistá-lo, ao lado de estudantes de jornalismo, no programa Xeque-Mate, da TV Universitária, quando de sua primeira e vitoriosa candidatura ao lado de Lula. Dele ficou-me a impressão de um homem simples. 

Sei que me utilizo de lugar comum para fazer a representação de sua figura, tal qual a mim se apresentou. Sei que isso parece reducionismo, sei que não empalma, aparentemente, a sua figura. Mas, o que quis dizer, afinal, com "um homem simples"? Quis dizer o seguinte: simplicidade no sentido de despojamento, falar fácil, pessoa acessível, uma forma de encarnação do grande avô - aquele homem sábio das coisas da vida, sereno e afável; elegante sem pompa, despretensioso e aberto. 

Simplicidade enquanto algo substantivo e vivido. Simplicidade como mineiridade, uma vez que nascido e amante das terras alterosas. 

Lembro bem que durante a entrevista o indaguei se pelo fato de ser um conservador não funcionaria, por isso mesmo, como fiador da candidatura Lula junto aos segmentos que poderiam ver no ex-metalúrgico presença não-confiável na presidência da República. Uma espécie de sociedade de capital e trabalho. Mineiramente disse que não, que Lula seria seu próprio avalista; e detalhou: ele era apenas o vice, o candidato a vice. 

E a entrevista seguiu, informal e muito agradável, mas cumprindo com o papel a nos propusemos eu e os alunos: traçar um perfil do entrevistado. Suponho que a TVU deverá reprisá-la sexta-feira próxima, às sete da noite.

Agora José Alencar se vai. Saudações, velho mineiro. Saudações, grande avô.

domingo, 27 de março de 2011

Um crime inimitável

Caro leitor,

Informo que hoje estou no ano de 1702 e que em plena chuva desembarca de seu landô e se dirige à minha casa um grand signeur. Vestido como os de sua classe, protege-se da pesada água com uma capa curta e se encaminha a mim.
Não o conheço, mas, ao entrar, me informa que fui altamente recomendado por amigo comum para que comigo pudesse partilhar grandes plantos e altos intentos. Coloco-me à disposição e ele me diz: "Aqui vim para que me ajude a tramar um crime inimitável."

Manifestei minha total surpresa e alguma indignação, pois não sou homem de armas, duelista de pistolas ou espadachim da nobre arte do florete, sabre ou espada. Admiro tais habilidades enquanto prática e destreza, mas não enveredo pelos seus resultados, sempre trágicos e lacrimosos. Então, pergunto: "Por que a minha escolha? Sou, sempre fui, apenas um tipógrafo, arte que aprendi com o mestre de Mogúncia por volta de 1439 e até hoje a pratico, esmerando-me na detalhada e delicada construção de tipos preciosos. Apenas isso."

Cavalheirescamente insistente, explica-me o grande senhor: "Não vim aqui para que o crime inimitável seja necessariamente perpetrado, mas para que seja planejado, articulado, estudado; se possível, cientificamente. E que tais planos e conjecturas sejam de tal forma elevados, minuciosos, sutis e corteses que o vitimado, ao morrer, venha a saber que está participando de uma obra d'arte, encontrando aí grande honra e motivos para ser agraciado com tal morte. Sim, meu caro, porque o crime inimitável deve ser levado a efeito sobre alguém de fina sensibilidade, alma estrangeira às vulgaridades e espírito arguto e nobre, atento às artes mais altas, matizes sutis e sons requintados. Refiro, entenda, a um regicídio." 

Ante tal observação pensei estar às voltas com algum magnífico demente, pois, além de me propor um crime, queria elevá-lo à condição perigosíssima de matar um rei. Isso, argumentei, significaria, aí sim, morte certa ao regicida. Mas ele não se deu por vencido. E falou do grande salão onde tal intento seria elegantemente perpetrado, à frente de corte engalanada, com vivas ao monarca, brindes e champanhe. 

Então, contou, o regicida entraria naquele magnificente e ilustre ambiente. Ele próprio um nobre, senhor de título de herdade ancestral, emérito em combates singulares de sabre florete ou espada, amante de damas dulcíssimas e secretas, cujas belezas mais fêmeas e íntimas somente a ele pertenceriam.
E então, caminhando seus distintos sapatos, o regicida iria até o rei e, sem que ninguém, ninguém percebesse, cravaria profundamente, no coração real, dileto, argentino e penetrante punhal. E o faria de tal maneira, e com tal eloquência de modos magistrais e cuidadosos,  que o rei, elegantemente, tombaria em cadeira como se nela estivesse sentando. E certamente, aos olhos dos convivas, daria a impressão de estar cansado da adulação e ademanes, reverências e mesuras que só a falsidade dos aristocratas consegue lucubrar e praticar com gênio assombroso de mentira combinada e ritual. Deixando-se assim, o rei, aparentemente, recostar-se em repouso momentâneo. 

"E então, meu caro, gostou do meu plano? É ou não é um crime inimitável?", disse. E completou: "O rei fecharia de forma sublime as pálpebras, após haver lançado olhar de gratidão ao artista que tão distintamente o havia levado aos braços da Caronte." 

E disse mais: "Não se trata efetivamente de obra de arte?! "E acrescentou: "Depois disso, o regicida - regicida é uma espécie de título nobiliárquico, entende?, disse-me ele - sairia calmamente tocando uma requinta, encantando assim a todos os presentes, que deslumbrados o veriam como a um artista que pusera o rei a dormir e agora se afastava docemente, como suave fauno em busca de ninfa sequiosa de seus prazeres de homem, sobre ela e dentro dela exercidos."

Afinal, persistiu, "é uma grande arte a que pretendo realizar, concorda?" Absolutamente perplexo, convidei-o a tomar algo forte a fim de que, se possível, pudesse refazer seus planos. Chamei a um criado e mandei que trouxesse bebida escalcande, bebida vinda do Brasil, uma terra distante onde os colonizadores fornicam mulheres conhecidas de índias, bebida chamada de cachaça. Esperei, com isso, trazê-lo de volta à realidade, abandonando tão esquisitos e danosos planos. 

Dois tragos e ele, para minha alegria, disse-me, então, altissonante: "Esta bebida ferve o sangue como um tiro de pistolete. E sendo assim, como estou sob as efluências de tal beberagem bárbara, abandono meus planos iniciais."

A atitude deu-me a sensação de que havia vencido meu demencial e sofisticado interlucutor e sua extravagante intentona. Debalde, como logo vi. Para minha surpresa, bradou: "E como sinto ebulir no ser que habita o meu corpo ingente necessidade de agir, eu o farei agora e agora mesmo!" 

Ato contínuo sacou de seu casaco portentosa e poderosa pistola e a descarregou sobre o mordomo que nos havia acabado de servir a cachaça. E o pobre homem caiu, morto, a meus pés.

Isso posto, meu estranho visitante fez-me profunda reverência, tomou mais um trago, correu para o seu landô e desapareceu para sempre. Fora, realmente, um crime inimitável.

 

RITA PAVONE DATEMI UN MARTELLO 64