sábado, 18 de janeiro de 2014

As sombras estão chegando



O manifesto das sombras

Nós, sombras, vimos anunciar que é chegado o tempo de superaram-se todas as formas de opressão e preconceito, domínio e crueldade. Sombras são todos os que vêm das favelas e dos guetos, arrabaldes e ruelas, esgotos e locais ermos. Somos também feitos das mais diversas formas de sofrimento e abandono, equívocos e perpetrações. 
 
http://fragmentosydeooga.blogspot.com.br/2011/08/nas-sombras.html
Nós, sombras, estamos também nos pequenos serviços e na invisibilidade, nos trabalhos humilhantes e tarefas perigosas; sob o sol e a chuva, nas filas e no desprezo.
Nós, sombras, reivindicamos o direito de escapar das grades e das sentenças, das más leis ominosas e dos poderosos e outros infames. Exigimos que tenhamos direito à luz, pois é da essência da luz chegar a todos os pontos não podendo, portanto, ser negada sua luminosidade aos que são socialmente distanciados

Comunicamos que de todos os lados, nós, sombras, sairemos. E assim como fomos postas à escuridão, como se dela fizéssemos parte, cobraremos o preço de nossa presença com a presença de nossa dignidade e da nossa indignação.

Nós, sombras, já estamos ao lado de vocês. Somente não perceberam porque estão na mais sólida escuridão. Nós, sombras, algum dia mandaremos em vocês. E lhes daremos direito à nossa luz.




quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Discurso Colação de Grau 2013.2 - Comunicação Social - UFRN




Caros colegas jornalistas,
Caros colegas radialistas,
Caros colegas publicitários,

Estais aqui cumprindo rito de passagem que é ao mesmo tempo solene e formal, necessário e exigível pelas normas da academia. Mas tal ato é também vivaz e luminoso, alegre e juvenil; representa a última fronteira de vossas mais recentes conquistas e abre ante vosso olhar o limiar desafiador de novos começos. Este ato é um brinde e uma celebração. É gesto, é sagração.

Chegastes até aqui após cumprida intensa maratona, superados todos os obstáculos, vencidos os muitos instantes de incerteza. Enfrentastes as avaliações semestrais, os terrores noturnos da redação do TCC e a chegada ofegante à banca; a banca essa pequena Santa Inquisição que as universidades criaram para vos testar. E ante tudo isso, e apesar de tudo isso estais aqui e estais aprovados. Sois, portanto, vencedores.

Diante disso e em razão do pleno merecimento de todos vós, peço aos pais e familiares que levantem-se e aplaudam seus filhos e filhas, afilhados e afilhadas.
Por favor.

Quanto aos formandos fiquem todos sentados.
Obrigado. Voltai a vossos lugares.

Caríssimos, estamos aqui vivendo um grande momento. E digo: precisamos ter consciência de quando vivemos um grande momento. Para tanto, é preciso ter sensibilidade, pois os grandes momentos são indefiníveis, intangíveis, são com luzes dentro de nós. Somente podem ser compreendidos pela emoção.

Eles não podem ser contados como as horas ou os minutos; não cabem dentro dos relógios. Eles só podem ser vividos; unicamente vividos. Os grandes momentos são dotados de encantador mistério, como a paradoxal poética de Zeca Baleiro quando nos diz: “Eu não sei dizer/O que quer dizer/ O que eu vou dizer.”

Então, sem tentar explicar, eu vos digo: eu não sei dizer o que são os grandes momentos; mas sei dizer que eles são isso que todos vocês estão sentindo agora: a lágrima brotando, que na verdade é uma lagrima sorridente; uma sensação de aperto no peito que no fundo, no fundo, é alegria. Não precisa explicar. Basta viver. Podem viver.

E como exemplo essencial disto que agora experienciamos temos a reunião de três grandes vertentes da comunicação: a publicidade, o jornalismo, o radialismo. Profissões de arrojo e de grandes momentos. Jovens recém-formados por uma universidade federal cujo compromisso histórico é com o social.

Jovens que vivenciaram uma universidade que se empenha na busca da excelência, jovens que tiveram dos professores a convocação ao aprendizado técnico e às descobertas teóricas. Todos unidos pelo liame central da ética e do respeito à cidadania.

Sei que não há como negar a presença e a necessidade do mercado. Mas acima do mercado está o social, estão a cidadania e o ser humano. Sois, jornalistas, radialistas, publicitários, de uma geração que sem dúvida alguma saberá entender que o processo histórico tem pressa e cobra de cada um força, sensibilidade, decisão, habilidade e coragem.

Isso porque, na complexidade da existência humana, deverá haver sempre lugar para o poema e para o trabalho, para o silêncio e para o brado, para a conciliação e para a resistência, para a serenidade e para o enfrentamento.

Às vezes tudo isso ao mesmo tempo, em notável convergência de conflitos dentro de cada um. É a condição humana em sua magnífica e contraditória expressão.

É a mistura de nossas decisões e indecisões que nos faz buscar o caminho, mesmo sabendo que este pode ser uma senda estreita em meio à escuridão. E aí está a grandeza do radialista, do jornalista, do publicitário: trazer luz à missão que cada um escolheu. Criar é da essência mesma de todos vós. E quem cria ilumina. E se a criação e o caminhar são solitários, a luz é sempre compartilhada.

Tem sido sempre assim sobre a face da Terra apesar da condição humana, apesar dos temores, das incertezas, apesar de tudo. De tudo o que somos, de tudo o que não podemos ser, de tudo o que não pudemos ser, de tudo o que não pudermos ser. Mas, apesar de tantas limitações, tentaremos, vamos continuar tentando.

Vossos textos, áudios e vídeos luminosos serão a prova do que digo: esse trabalho reluzirá na medida exata da responsabilidade e da ética aliadas à perfeição do estilo, ao delineamento dos cases e das imagens, à beleza da sonoplastia.

Mas, atenção: vossas produções vos encaminharão inevitavelmente ao viés político e histórico, ao instante de dizer não ao não; ao momento, ao grande momento de gritar eu não aceito a injustiça, eu renego os maus governantes, eu me levanto contra a exploração do homem pelo homem, eu repudio a corrupção neste país.

E direis então, como o grande Bob Dylan em sua canção-poema: “Eu bato à porta do céu. Está ficando escuro demais para ver. E eu preciso de luz.”

E direis: quero luz para um mundo que se fez escuridão além da conta, tornou-se temível demais, traiçoeiro demais. Eu exijo que se abram e se derrubem todas as portas da opressão e da desigualdade, da injustiça e das diversas manifestações da brutalidade. Quero luz, quero mais luz.

E com mais rigor afirmareis: como ser humano tenho o direito de cobrar uma existência digna para mim e para meus iguais. Como pessoa tenho a obrigação de ter direitos. Como cidadão e cidadã quero uma sociedade que resgate o sentido de honradez. Como dizia Goethe, em Fausto, "a lei é poderosa; mais poderosa, porém, é a necessidade."

Assim, que a necessidade do homens prevaleça sobre as leis injustas. E nessa luta contra a injustiça devereis erguer as vossas vozes e dizer que é preciso comunicar ao mundo que chegou a hora de mudar.

E para que venham as mudanças proponho que sigais batendo na porta da democracia e da justiça social, da solidariedade substituindo o materialismo, do abraço em lugar da frieza. Batereis na porta da coragem e direis “estou convosco; eu resisto”; chegareis ao limiar dos desafios e direis “não volto atrás, eu enfrento.”

Ireis até os poetas e aos loucos, aos andarilhos e aos sem-nada e lhes estendereis as mãos, gritando: “Venham, vamos bater juntos na porta do céu.”

Porque o céu não está nas alturas. Ele está nas ruas, nas praças e nas casas, nos becos e nas favelas. O céu está dentro de cada um de vós. Vosso céu é vossa revolta, descontentamento e indignação. Vosso céu é vossa luta. É vossa coragem e ousadia. Vosso céu é vosso gesto. Vosso céu é vosso não!

O céu é a juventude luminosa em vossas frontes, o brilho do olhar, a vontade do futuro. Vosso céu são também vossos brindes, alegrias e celebrações. E deveis também enfrentar os que não querem que as pessoas sejam felizes. Os preconceituosos, os de mente escura e sombria. Abaixo todos eles.

Agora, jamais ide a um lugar longe demais. A um lugar aonde não tenhais coragem da imensidão. Pois é preciso ter coragem da imensidão para chamar a si os desafios. Mas, sei que tendes essa coragem. Não é à toa que sois jornalistas, publicitários e radialistas.

E sabeis porque confio tanto em vós? Muito simples: porque para cá só vem quem é feito da argamassa poderosa dos tijolos que constroem as muralhas; do ferro que ergue pontes sobre abismos; do ouro que reluz em vossos corações como medalhas de vitória. Sintetizando: para cá só vem quem é feito de vida!

Agradeço a honra de aqui estar, agradeço a generosidade do convite. Estendo aos colegas professores o meu abraço e os convido também a bater à porta do céu e da grandiosa loucura que é existir em nosso tempo maravilhoso e ameaçador.

Desejo a todos e a todas sucesso, vitórias, realizações e reconhecimento. Desejo, acima de tudo, uma atividade profissional comprometida com os desafios históricos e com a ética.

E vos proponho uma utopia; a utopia que é o sonho corajoso. A utopia de lutar por um Brasil mais justo, numa sociedade mais honrada, mais crítica, mais forte. A utopia de o homem viver com grandeza sua louca aventura na face da Terra.

E afinal vos apresento as palavras poderosas de Antero de Quental, endoidecido de sonhos, quando dizia: “A galope, a galope, ó fantasia! Plantemos uma tenda em cada estrela!”
Muito obrigado.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

De como eu fui preso no meio do catimbó e virei "representante das almas e secretário do Cão"

Grande baderna na Pensão Calango


No ano de 1930 morava eu na Pensão Calango, na verdade Hotel Hospedaria S. Francisco das Boas Almas, numa ruela na Ribeira. Dadas as suas modestas acomodações a hospedaria havia recebido dos seus ocupantes aquele título bastante elucidativo como se vê. Ali se arranchavam estudantes como eu, caixeiros-viajantes, ocasionais visitantes da cidade e, algumas vezes, indivíduos de trato furtivo. Devo supor fossem fugitivos, falsários, vigaristas e que tais.
http://www.alemdaimaginacao.com/Noticias/o_homem_da_capa_preta.html

Pois bem, dentre esses tipos eis que chega um que se apresentou como "alta autoridade em coisas místicas". Era um tipo alto, magro, branco de cabelos avermelhados e crespos. Os olhos, muito pretos, completavam a figura. Levemente encurvado, era de poucas palavras e recebia pessoas que iam "pedir conselhos e fazer trabalhos". Quando isso acontecia ele fechava a porta do quarto a chave e se ouviam cantorias e loas numa língua estranha. Algumas vezes gritos horrendos; guinchos cortavam os ares e então silêncio total . Pouco depois o consulente saía dizendo "está bem. Agora está tudo bem."

Certa noite cheguei tarde das aulas. O quarto do tal sujeito ficava nos fundos do quintal da hospedaria e para lá me dirigi ao ouvir chorosa ladainha que aos poucos se transformou em um batecum pesado, em meio a grande falariço que virou cantar forte e rápido. Aproximei-me da janela lateral e, pela fresta, vi a seguinte cena: o tipo estava entonado numa capa preta que lhe chegava aos pés e tinha acendido uma fogueira no meio do quarto. A seu redor uma ciranda de mulheres dançava um samba de doidos.
Ao fundo sentava-se um homem de cabelos brancos, que gritava: "Ele vai chegar? Ele vai chegar?" 

E aquele círculo de dementes respondia:"Ele vai chegar! Ele vai chegar!" e continuava a dança. O da capa preta dava voltas rápidas e fortes fazendo o manto abrir-se, o que lhe dava poderosa aparência de taumaturgo do além. Continuemos: para melhor ver a cena subi ao telhado do quarto, afastei umas telhas e de lá continuei a acompanhar o amalucado espetáculo. 

Para completar, um amigo meu, colega de hospedaria, também fora atraído por aquela loucura, e ao ver-me encarapitado correu para perto e ficou a meu lado. Perguntou: "O que diabo é isso?, e eu espondi: "Só Deus sabe o que  é isso. É negócio de doido."
Nesse instante o homem de cabelos brancos insistiu: "Ele vai chegar? Ele vai chegar?", ao que turma toda respondia: "Sim! Ele vai chegar!, e o homem retornava: "E vai trazer o dinheiro? Vai trazer o dinheiro?!" 

E todos, no mesmo tom, garantiam: "Vai trazer o dinheiro!
Vai trazer o dinheiro!"

Aí, aconteceu outra loucura: as mulheres se apoderaram de latas cheias de água e jogavam no sujeito, dizendo: "Toma este banho de salvação! Fica limpo que a fortuna vem!". Encharcado, o pobre começou a dar saltos enormes e se dizia forte e poderoso e berrava: "Agora que ele chegue e traga o meu dinheiro! Estas fortes orações vão me fazer ficar rico!"

Então o mestre daquela cantilena apoderou-se de uma chibata e passou a surrar o infeliz que gritou: "O que diabo é isso? Pelo amor de Deus, o que diabo é isso?", enquanto a chibata ligeira o açoitava. O mestre respondeu que aquilo era a "limpeza" da alma. "A surra divina retira o pecado!" e lepo no lombo do coitado, que se desesperava e insistia com a pergunta: "Ele vai chegar? Ele vai chegar? Quero que chegue, e chegue logo com o meu dinheiro!"

Nesse momento meu amigo se mexeu. Foi o suficiente: as telhas se deslocaram, um caibro cedeu, outro também, uma ripa se partiu e o telhado veio abaixo. Caímos bem no meio da bagaceira. O feiticeiro gritou: "Pronto! Ele chegou: e veio logo dois. Veio logo dois, tá vendo?!" Diante disso o homem surrado não se fez de rogado e atirou-se ao meu pescoço perguntando "onde estava o dinheiro". Queria saber se eu "era o representante das almas" e como iria ajudá-lo a sair da falência de sua bodega.

De nada adiantava negar que fosse eu o representante das almas. O homem continuava sua inquirição e partia para cima de mim e do meu amigo. O mestre gargalhava alto e sua ciranda de mulheres loucas dançava sem parar. Nessa luta a fogueira cresceu e tomou conta do quarto. Todo o Hotel Hospedaria S. Francisco já estava desperto e correu para ver aquela cena de alucinados.  O corre-corre e o falariço tomavam conta de tudo. As chamas se espalhavam e assumiam proporções enormes e o homem lá: "Você é o representante? O representante da almas? Se é o representante, onde está o dinheiro? Cadê o dinheiro que Deus mandou, fila da puta?"

O dono da pensão e os moradores, vendo isso, partiram para cima de mim, do meu amigo e dos desmiolados, gritando: "Bando de catimbozeiros! Bando de catimbozeiros! Arreia o pau no lombo deles! Arreia o pau!" 

E o pau cantou. Uma velhinha, empunhando uma cruz e uma enorme vela, como se já não bastasse tanto fogo, cantava:

"Queremos Deus, homens ingratos
"Ao Pai supremo, ao redentor
"Zombam da fé os insensatos
"Erguem-se em vão contra o Senhor
"Dá nossa fé, oh! Virgem, o brado abençoai
"Queremos Deus que é nosso Rei
"Queremos Deus que é nosso Pai"

Para atiçar ainda mais a assembléia de dementes aconteceu o seguinte: nas imediações morava um padre que sofria de insônia. Quando ouviu toda aquela lamúria, cantilenas, loas e proclamas alucinados, veio ver o que era. Percebendo que o louco se atirava ao meu pescoço correu para me ajudar, gritando: "Em nome de Deus parem com isso!" E dizia: "Irmãos, vamos rezar em outro credo. Abaixo o catimbó!" 

Mas deu tudo errado. As pessoas pensaram que o padre fazia parte do magote e baixaram-lhe o pau, urrando: "O pade tá chamando Deus pra perto do Cão! O pade tá chamando Deus pra perto do Cão! O pade é do catimbó!" No meio da confusão o mestre de todo aquele pandemônio se evadiu, bradando: "Taí! Isso é a paga por terem prejudicado os trabalhos!" E sumiu junto com as mulheres loucas.

Para encerrar: o bodegueiro foi dominado e eu fui posto a ferros. O padre também foi preso. Meu amigo conseguiu escapulir. Logo depois a polícia chegava e fomos parar na delegacia.  Lá, o delegado, já quase duas horas da manhã, disse: "Bota todo mundo no xilindró: o comerciante que é desordeiro, o padre, que é padre catimbozeiro e esse aí, que é o secretário do Cão".

O "esse aí" era eu, e somente então fui perceber o motivo da acusação de ser o "secretário do Cão": no meio da desordem a capa preta tinha ficado presa ao meu pesçoco e eu estava, para aquelas pessoas, vestido de ajudante do capeta: dos pés à cabeça, literalmente. Passei uns dez dias preso só comendo pão e água, até que um tio meu foi me soltar. Quando me viu em estado tão lamentável, disse: "Que vergonha, meu filho, que vergonha. Que vergonha para a família. Além da cachaça, que eu soube que anda bebendo muito, agora deu pra catimbó... E pra que tá vestido de secretário do Cão?!!!!"