sábado, 23 de abril de 2011

Dos bons procedimentos

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Fui hoje procurado por um orangotango, um homem que, pelo modo de vestir seu fraque e de empunhar sua bengala de castão de prata, demonstrou-se-me ser cavalheiro de augusta fidalguia. O honorável macaco vinha, asseverou, tratar comigo de faustosos fatos e filigranas conversas. Apresentou-se como filósofo e metafísico, maçon e positivista. Ante tais predicados curvei-me em profunda reverência e o convidei ao salão de fumantes de minha casa ao notar que seu criado, um vetusto hipopótamo, trazia consigo uma caixa de havanas legítimos.

Explicou-me que tivera disposição de procurar-me após entreter palestra com o embaixador da Birmânia, um sapientíssimo sapo, também este homem de grandes pensares. O sapo o informara de que eu estava desenvolvendo estudos a respeito dos bons procedimentos e, como seria de bom alvitre, e atinando-se ele a idênticos estudos, se abalara à minha residência. 

Sendo eu um discípulo de tais e grandes estudos, agradeci longamente ao orangotango seus préstimos, pois, efetivamente, os bons procedimentos são algo que me enevoam a mente, tão e tão altos são esses estudos que minha mente não os considera empalmar, necessitando assim de um mestre e preceptor. Perguntei o que me poderia ensinar e eis o que se me afiançou:
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"Caro alumno, os bons procedimentos já os estudava antigo rei da Mesopotâmia e dele encontrei os alfarrábios de esses registros, escritos em língua morta, mas que a domino bem, são atos perfeitos que devem reger os demais atos, os chamados atos imperfeitos."

Diante de tais esclarecimentos, que jamais minha mente mentecapta os poderia alcançar, trouxe depressa brinde de rum da Jamaica, puríssimo, ao meu interlocutor, e nos abalançamos a falar mais e mais, para gáudio e alegria minha. Acrescentou:

"Os atos imperfeitos são cometidos por seres reles e comuns; e tais seres, sejam homens ou animais, animais ou homens, o que vem a ser a mesma coisa, tanto que orangotango sou  e homem ao mesmo tempo, precisam da luz dos maiorais a fim de que possam evoluir a páramos mais altos. E assim, devo dizer, os seres incomuns, dentre os quais me coloco e mim e a ti, meu alumno, buscam os atos perfeitos a fim de corrigir os atos imperfeitos."

Indaguei então como poderíamos fazer tais correções e ele mo respondeu: "Os bons procedimentos somente podem ser ensinados aos reles e aos comuns suprimindo-se-lhes os atos imperfeitos. Desta arte, devo afirmar que tal processo e exata evolução somente dar-se-á mediante um único e só caminho."

Quis eu saber qual era esse caminho e obtive a seguinte resposta: "É preciso, a todos, fazê-los guinchar. Guincando, todos se tornarão seres maiores intelectualmente e mais densos de saber, serão argutos e pensados e proferirão prodígios e explicarão muitas sabenças e outros maiores desígnios. "

Como fazê-los guinchar?, foi a pergunta a seguir. A resposta veio na forma de um vasto e poderoso látego que o magnífico orangotango despachou no lombo de um meu meu criado, solícito e bondoso mordono que nos atendia. A pobre criatura, ao sentir a força do açoite em seu espinhaço, rasgando o golpe o tecido da libré, atirou-se ao chão resfolegando e saltava como um quadrúpede e apresentando na cara ricto de dor. O segundo lepo o fez saltar mais alto ainda e em seguida veio o guincho: terrível, altissonante, pavoroso, quebrando os vidros de todas as janelas do aposento.  E guichou a bom guinchar e assim por muito tempo.

Ao cabo de tal fazer, o lacaio ergueu-se e pôs-se a dizer sábias coisas e profundas enunciações, demonstrando que agora estava ilustrado. Retirou-se indignado de minha casa, disse que não mais era mordomo e dirigiu-se a excelso colegiado de sábios enclausurado nos cumes de distante montanha, donde se destacou com pertinência ao fazer proclamas da mais grata filosofia. Tinha aprendido os bons procedimentos, disse-me o vasto orangotango.

De imediato entendi que os reles e comuns deveriam ser açoitados a fim de que, guinchando, pudessem aprender os bons procecimentos. "Sim", asseverou o solene macaco, "é pelo lepo e pelo guincho, é pela sua combinação, que teremos homens mais preparados; e apanhando todos, logo o mundo será habitado por gente que vive de e para os bons procedimentos."

Enalteci as reluzentes palavras e então ele me disse: "Mas vim aqui porque não sabias os bons procecimentos, apesar de estudá-los há anos" e eu o confirmei. Tão logo fiz a confirmação ele voltou para mim o chicote e aí percebi: ia ser chibatado a fim de guinchar e tomar posse daquele saber tão necessário. Rápido como um raio saltei de lado e o látego bateu no chão, rasgando o tapete. Vi que a coisa era séria. Nisso, o hipopótamo, que até então permenecera seentado, atirou-se sobre mim, mas a ele também o evitei. 

Então, macaco e hipopótamo tinham virado duas feras a acuar-me. Já não eram mais homens, bichos é que eram. E queriam me ensinar a ser igual a eles, a guinchar igual a eles, a título de aprender os bons procedimentos. Não me dei por vencido e chamei os ajudantes do lar, que acorreram já trazendo cordas e correntes. Ao fim de breve e intensa luta conseguimos dominá-los, entregando-os a feitor de um zoológico, que os levou.

Dias depois - disse-lhe eu, caro leitor, que tais fatos se passaram hoje, mas não leve em conta: o tempo é coisa de pouca valia para mim -, vi nas folhas dos jornais que no zoológico todos os diretores, servidores e visitantes estavam guinchando feito loucos e tal fenômeno não tinha explicação. Para mim tinha: os dois velhacos haviam se libertado e estavam ensinando os bons procedimentos. Rápido como o cão chamei os meus serviçais e todos nos armamos com mosquetes e alabardas, pistolas e pistoletes e agora estamos aqui, trancados em minha casa, esperando pelo ataque que sei logo virá.



sexta-feira, 22 de abril de 2011

 É de Cora Coralina o poema abaixo.

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Humildade

Senhor, fazei com que eu aceite

minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.

Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade

seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,

minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Meus primeiros 60 anos

Chego hoje aos meus primeiros 60 anos. É uma idade em que já foram percorridos, palmilhados e descobertos possibilidades e limites, perplexidades e certezas - certezas convictas ou quase isso. É chegada a hora de um homem aperceber-se barco, galeão e nau trirreme e saber que nestes remos muitos o ajudaram ao longo do navego, longo nevego. Mas é também momento de entender que o barco, alucinado de serenidade, é pequeno ante mar tão grande, oceano que lhe cabe cumprir. Navegar é preciso.

Sou um homem carregado de gratidão e que aprendeu a construir com paciência de cinzel as estátuas que o têm orientado, os mapas e portulanos que o ajudaram com as marcas do desafio a singrar o mar que ele mesmo descobriu como mar. Pois é preciso descobrir o mar a fim de que ele seja mais que isso: seja cortina a descerrar, e, paradoxo, terra firme a ser encontrada. E aí o homem passa de aventureiro e corsário a peregrino com albornoz e cajado.

Este aniversário traz, assim, a marca e a passagem de um só meu Cabo da Boa Esperança. Creio que encontro a maturidade, a velhice, para ser sincero, com o abraço que o tempo construiu em mim. Bem-vinda a minha velhice, velhice menina e brejeira como uma manhã que nasce. Renasço.

Fica aqui meu registro da comemoração prévia que foi feita pela Minha Mulher, Minhas Filhas, Meus Filhos, Meus Genros e Meus Netos, Minha Irmã e Meus Amigos e Amigas. Questão de agenda, sabe? E foi preciso antecipar a festa. Como disse, sou um homem carregado de gratidão. E a eles, mais que ninguém. Sem esquecer os alunos-amigos, os alunos-colegas do Curso de Jornalismo da UFRN, nautas em sua iluminada juventude. O mesmo aos professores colegas do Decom. E a Bruno Emanoel Barreto, sobrinho, filho, herdeiro do meu jornalismo.

Jornaleiro e tipógrafo que sou, foi-me uma festa, e nessa festa um jornal, o Jornal do Velho Barreto, com mensagens que ainda bem antes do aniversário foram postadas na internet, registros de pessoas queridas que a mim referiam. E assim foi feito o jornal. E como o jornal, um bolo em forma também de jornal, uma surpresa preparada com carinho e eficiência: sequer supus que a festa me seria oferecida. Um brinde.

Nordestino e apegado às coisas deste chão, criou-se a Garrafada do Velho Barreto, miniaturas, garrafinhas com a receita de como escrever. Uma poção sertaneja, como se fosse eu um raizeiro a tratar de ensinar, pela bebida do povo, como se constroi um texto. Bondade. Sou um praticante, apenas um praticante da tipografia pequena que expressa um pouco do pouco que tento saber. 

Enfim, comemoro hoje meus primeiros 60 anos. A nau é aprestada e parte para a segunda fase da aventura. A vela é panda e sei que esse mar é imenso e não tem fim; quase. Mas a aventura não me lança à distância dos que amo, antes os aproxima, pois a nave de um velho é o grande convés de todas as querências. Agradecido. De vante à ré, todo o velame está erguido e segue o galeão seu rumo. Cheio de fé, que é força básica e sem explicação; pleno de serenidade, que é o tesouro e legado dos que sabem chamar a velhice de Amiga, pois é cordial e conselheira. Um grande abraço. Naveguemos. 
Jornal impresso em papel de arroz, cobertura do bolo. Minha esposa perdeu as aulas de diagramação...


Bolo em formato de jornal enrolado.


Na hora do parabéns
  
Etiqueta da garrafada, distribuída pela minha esposa e filhos



Garrafada Velho Barreto


terça-feira, 19 de abril de 2011

Estava com um broto no portão

Roberto Carlos faz hoje 70 anos. Figura icônica de minha geração, era o arquétipo do jovem irreverente mas inconsciente das questões políticas nos anos 60. Era a época da Jovem Guarda. Durante um bom tempo suas canções, sejam aquela que dá título a este artigo, seja em Quero que vá tudo pro inferno, serviram de modelo a comportamentos divergentes, que em essência eram atitudes de superfície, contestavam as gerações anteriores em corte de cabelo - ou ausência disso - modo de vestir e de falar, mas só isso.

Estava com um broto no portão poderia ser o resumo de como se dava o namoro naqueles tempos: o rapaz ia à casa da moça e ficava no portão até no máximo às nove da noite, sendo literalmente atirado para fora depois desse horário.

Por sua vez, Quero... marcou uma pontuação diferente: houve o registro de uma forma de amar, um comportamento de amar que tinha uma pontinha inconsciente de confronto, colocava o amor dos jovens amantes em impacto com a sacralidade momentânea do estar com um broto no portão. Seria o jovem diante de um mundo a quem estranhava e refutava como mentor de padrões e normas, um mundo contestável, portanto. Daí afirmar a canção: "Só quero que você/ Me aqueça neste inverno/ E que tudo mais vá pro inferno."

À época, esse refrão, que hoje soa simples e tolo, provocou protestos. Afinal, na canção, o personagem enlouquecido de amor mandava ao diabo todo um sistema de crenças, não só quanto ao tipo de relacionamento homem/mulher entre os jovens, mas, acima de tudo - e está aí o problema - mandava aos quintos toda uma sociedade, os pais, os "velhos", à companhia do demo. 

Roberto ingressava no escorregadio caminho da contestação via confronto entre o sagrado (os comportamentos-padrão) e o profano (a assunção de que o amor carnal deveria ser admitido sem mesuras. Afinal, era a época em que homens casados tinham "duas famílias", hipócrita e formalmente admitidas nas figuras de mulheres teúdas e manteúdas. Ou seja: os caras já estavam no inferno - da mentira social - mas não admitiam).

Roberto, todavia, nunca foi um contestador. Quero... foi apenas uma composição irreverente, mesmo ferindo brios longevos. Quanto a mim, passada essa fase, ingressei no gosto pela música de Geraldo Vandré, Mutantes e Caetano Veloso, Gil e cia. Beatles, claro, jamais esqueci. 

Mas, falava eu dos 70 anos do Rei. Acho que valeu. Hoje, ele é um ersatz, uma imitação de si mesmo, sua própria reprodução, reprisando standards como quanto canta "Quando eu estou aqui/Vivendo este momento lindo". Mas, insisto, valeu. É o Rei e sua música há de ficar. E agora, ao terminar é como se estivesse ouvindo, lá longe: "Estava com um broto no portão/ Quando um grito ouvi/Pega ladrão..."
 ZOORÓSCOPO

Bichano- São geralmente agradáveis, afáveis, movem-se com lentidão e gostam muito de sobra e água fresca. Trata-se de um signo facilmente encontrável  em repartições públicas. No fundo, são boa gente, só não gostam do pesado.

Cascavel - As nascidas em cascavel são o pior tipo de mulher para se casar. Dos homens, diga-se a mesma coisa. Mas, vale um conselho caríssimos cascavelianos: é bom não se meterem com os nascidos em Tijuaçu. Esses são do bem, enfrentam qualquaer cobra, não gostam de brincadeiras e vocês podem se dar mau.

Marimbondo - Aí é preciso ter cuidado. Quem se rege por esse signo não tem qualquer atenção pelos outros, somente pensa em si. Como são geralmente pessoas feias, vingam-se de sua dor ferroando aqueles que, por qualquer equívoco, a eles estão apegados. Todo marimbodiano tem inveja dos que nascem em Abelha. 

Formiga - Nascidos para o trabalho, o formiguiano terá sempre uma condição de vida estável, muito embora dificilmente venha a enriquecer. São valorosos, confiáveis, mas não deve procurar contrair núpcias com quem é de Pavão. Podem acabar no maior buraco. E falidos.

Cavalo - Conhecidos pelo temperamento digamos, forte, para não dizer outra coisa, o cavaliano atrita-se facilmente. Mesmo que o parceiro não o tenha provocado. Cavalo, no entanto, não deve brincar com Hiena. A  mulher em Hiena não leva desaforo para casa e ainda sai rindo depois de armar a confusão.
                    

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces Faces

Monteiro Lobato
Homenagem no Dia Nacional do Livro Infantil
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"Mé dê uma irmolinha pá minha mãe jejuá"


Quando criança, há muit'anos, a Semana Santa tinha algo de especial. Meu olhar de menino via como Meus Pais em sua contrita, simples e magnífica fé se curvavam de forma humilde ao Grandioso, ao Mistério, ao Insondável. A rezação dos fiéis era intensa e havia distribuição de pão aos pobres.

Lembro que ao lado de minhas irmãs santava-me à soleira da porta com um saco de brotes para atender a uma enfieira de pedintes; eram, em sua maioria, crianças como nós que se apresentavam dizendo: "Me dê uma irmolinha pá minha mãe jejuá."  E nós, numa alegria infante, sem perceber que à nossa frente havia todo o drama da fome, atendíamos a cada um com sorriso enorme, como se aquele encontro anual fosse estranha festa. Se havia pobres, devia-se alimentá-los. Radiante e intensa candura do repartir.

 A Semana Santa era um período em que uma espécie de louvor doloroso se espalhava aos quatro cantos. Era como se um uivo humano de culpa se impregnasse nas pessoas. Nas igrejas os santos eram recobertos por sudários roxos. Eu não entendia o porquê daquilo, mas sentia que uma angústia se aninhava naquelas estátuas e que todos deveriam sentir algum medo, um medo básico, obrigatório, e era esse medo básico e incompreensível que eu criança sentia. 

Desde então essa cor, esse roxo sofrido, passou ao meu repretório de temores.  Como o anúncio de que algo grave, temível, uma sentença matizada em tecido, se anunciava a todos, homens ou meninos. Sentença ontem e hoje, só que agora no mundo secular e profano da brutalidade e da espoliação. 

A Semana Santa era penitencial e profunda em sua incompreensibilidade minha. Uma alegria, porém, sempre vinha, quando os padres anunciavam a Ressurreição. Aí, eu sentia um sol dentro de mim, um brilho, uma alegria: tinha passado aquele breve período de clamor e eu tinha a impressão de que Jesus pegava na minha mão. Era isso o que Minha Mãe dizia, com seus grandes olhos verdes. Mesmo assim, eu continuava sem entender porque Ele tinha que morrer todo ano. 

Hoje, a Semana Santa é um evento turístico, um feriadão malandro e cheio de ginga. As pessoas perderam vínculo com as tradições populares que cercavam aqueles dias. E as crianças já não distribuem mais brote à porta de casa. Mas os pobres e famintos continuam buscando pão; só que normalmente lhes é dado circo. 

A Semana Santa virou um grande brinde com vinhos caros e hoje é apenas pacote turístico. Mas o menino que ainda a mim habita me diz que entre o então do clamor rumoroso e ingênuo daquela fé, e o agora dos festivais turísticos, cristalizou-se no coração dos homens a rocha da perda daquela solidariedade tão chã e tão simples, simbolizada na distribuição do pão.

De qualquer forma o Mistério ainda habita a minha alma. Ainda acredito que é preciso ter uma irmola para dar às mães que precisam jejuar.