quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Sombras, passos, silêncios...



Coisas estranhas que me disse um velho

Certa vez um velho me disse que a pessoa que fala muito gasta todo o seu estoque de palavras. E assim surgem os mudos. 
 
http://riobonito.blogspot.com.br/2012/07/tudo-parece-um-jogo-de-sombras.html
Do mesmo modo quem sonha muito: com o tempo perde a imaginação, desaprende de sonhar e esquece até como se dorme. 

Quem anda muito, a mesma coisa: os pés perdem todas as pegadas e você para de andar.

Os caminhantes sob o sol precisam tomar cuidado: suas sombras certamente desaparecerão, cansadas de tal tormento. 

Os ociosos também não escaparão; e isso é o mais grave: de tanto não fazer nada seus corpos se dissolverão.

Afinal, aqueles que esquecem sua humanidade tornam-se detentos de seu próprio vazio e assim desaparecerá o Homem.


Quando a mim, e a respeito de tudo isso, digo: não sei o que isso quer dizer. Mas alguma coisa quer dizer.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Lembranças de lembranças

"O delegado sou eu"

Eu o vi duas ou três vezes: bêbado, mirrado, bracinho fino erguido e indicador apontado para o alto, bradando uma inútil advertência: "O delegado sou eu! O delegado sou eu!" Ninguém contestava até porque nele ninguém prestava atenção, a não ser eu; não sei se perplexo ou estranhamente fascinado com aquela cena que oscilava entre o ridículo e o comovente.

Corriam os anos 60, e da minha casa eu o via seguir ladeira abaixo, Rua Princesa Isabel, centro de Natal. Ele passava na calçada do outro lado da rua e seus gestos hoje me lembram um Carlitos torto e anônimo, um brasileiro pobre que se dizia autoridade. Eu devia ter uns doze anos.

Não sei mas, na época, bem que eu poderia tê-lo presenteado  (meninos, se você não sabe, podem tudo) com uma linda viatura policial que naqueles tempos eram chamadas de "tintureiras", para ele fazer valer sua disposição de Quixote e prender todo mundo. A tintureira seria toda pintada em preto e branco e Delegado poderia cumprir mandados, fazer flagrantes, capturar os maus. 

E mais: eu poderia pedir ajuda aos meus amigos Zorro e Tonto, Billy the Kid, Kit Karson, Roy Rogers, o Fantasma, Búfalo Bill, Águia Negra, Falcão Negro, Daniel Boone, Dom Chicote, Cavaleiro Negro, Kid Colt e, claro, Jerônimo, Aninha e Moleque Saci. Se a coisa ficasse muito feia poderia chamar o Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda e mais: El Cid, o imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França. Athos, Porthos, Aramis e d'Artagnan também poderiam vir.

Eles eram invencíveis e jamais se negariam a ajudar a mim e ao Delegado. Eu daria a ele um dos meus revólveres de plástico, quem sabe até mesmo um de metal, o mais bonito, o que disparava espoletas. 

Com essas armas eu mesmo prendi muitos bandidos que habitavam esconderijos que somente eu conhecia. Eu tinha até uma estrela de xerife, ganha numa promoção da Toddy chamada Patrulheiros Toddy. Eu era um Patrulheiro Toddy e bem poderia ter ajudado ao Delegado. Mas eu não fiz nada. Não chamei os caubóis meus amigos, nem os grandes espadachins, não lhe dei a tintureira, não lhe dei meu revólver, não saí galopando a seu lado rua abaixo. Nada, nada, nada; somente o vi passar; tão desamparado, maltrapilho e tão bêbado, um pobre brasileiro e se perder na pesada ladeira da Princesa Isabel. 
E ele se dizia o delegado. É porque ele só queria respeito. Porque tinha a autoridade de ser povo, pobre e embriagado. 

Depois eu o vi duas ou três vezes. Então, nunca mais reencontrei o Delegado. E acho, somente hoje descobri, que ele também era meu amigo, e tão corajoso e firme como Jerônimo ou Zorro. Afinal, eu e o Delegado vivíamos em mundos paralelos, universos imaginários e queríamos ajudar, prendendo bandidos. Naquele tempo além de querer prender bandidos, eu tinha outra paixão: queria ser arqueólogo, pensava em ir ao Egito e fazer grandes descobertas.  

Hoje penso no meu amigo Delegado, reduzido a uma réstia de lembrança. E agora me vem, não sem um certo temor e uma fisgada de angústia: acho que quando ergo minha voz nestes textos de internet também estou descendo alguma ladeira e grito como o louco sublime: "O delegado sou eu! O delegado sou eu!"