sexta-feira, 4 de setembro de 2020


Pro inferno o novo normal
Por Emanoel Barreto

Quando nos idos de março a pandemia configurou-se definitivamente como situação alarmante e em processo de crescimento houve um recuo social em busca de alguma forma de salvação ou pelo menos evitação do contágio e do perigo real e iminente de morte para muitos. 

Esse recuo, que foi chamado de isolamento social, suscitou na imprensa um farto material que ia de informações a respeito de jogos eróticos para enfrentar o tédio até sugestões de filmes na TV e apresentações de músicos em lives.

Em meio a tudo isso surgiu a expressão “novo normal” a ser vivido na fase pós-pandemia. Esse novo normal, suspeito, seria decorrente do surgimento de um “novo brasileiro” – mais cauteloso, amadurecido, consciente de suas responsabilidades para com a sua vida e a vida dos demais.

O isolamento teria o condão de levar as pessoas a refletir a respeito do sentido da vida pelo reencontro no lar em pacífico e aconchegante convívio.
E daí surgiria o novo normal com suas regras de convivialidade, cuidados e precauções quanto à proximidade, prudência em aglomerações, e até mesmo um certo recato nos cumprimentos para que todos pudessem retomar suas vidas e vivê-las em paz e caprichada coexistência. 

Mas o que temos visto é que nem o novo normal nem o novo brasileiro aludido neste texto estão surgindo. A peste, vou chamá-la assim, fez com que durante algum tempo as pessoas se compenetrassem da importância de impedir sua disseminação e morticínio. Contudo, o tempo passado em casa não levou a maioria das pessoas à compenetração e à sensatez. 

Muito ao contrário o que se viu foram os bailes clandestinos e multidões desesperadas por algumas horas nas praias mesmo que ao custo da morte de muitos dos que ali estavam. As pessoas não suportavam a si próprias em sua solidão, isolamento, equilíbrio interior, sensatez, prudência. Resumindo: as pessoas não suportavam esperar para viver. 

E preferiam se meter no mundo, na rua, nos bares, mesmo que correndo o risco. Minha vida por uma rodada de chopp, tornou-se uma espécie de lema.
Mas não foi apenas no Brasil, com nossa malandragem e ginga inconsequente. 

Oropa, França e Bahia, só para pegar um gancho em Ascenso Ferreira, também seguiram esse caminho e o novo normal não surgiu.

Atualmente já se fala numa lenta, muito tênue queda nos casos de contaminação e morte no país. Foi o sinal, o apito, o chamado para aumentar o regabofe – vamos todo mundo para a rua. E como segunda-feira é feriado, dia da pátria’mada salve,salve, vamos todos para a praia que ninguém é de ferro. 

E pro inferno o novo normal.


quinta-feira, 3 de setembro de 2020


“Não vou mais trabalhar: vou é ser ladrão!”

Por Emanoel Barreto

Ele seguiu avenida abaixo, pensativo. Era já o terceiro emprego que perdia no ano. Apesar de esforçado e sempre pontual, na hora das demissões seu nome constava sempre na lista. Nunca compreendera o motivo de tanta má sorte.

Havia recebido o dinheiro pelos poucos dias que havia trabalhado: dava coisa de uns quinhentos reais. A demissão veio quando tudo parecia estar dando certo: então, de repente, apareceu na obra um sujeito que conhecia um engenheiro por lá. O novato, apadrinhado, acabou tomando seu emprego.
E agora, o que dizer a Joaquina, aos cinco filhos e à sogra?

Caminhou meio zonzo sem saber o que fazer. Estava assim: perdido. Sem rumo. De repente viu lá na esquina uma barraca de churrasquinho. Também vendiam cachaça. Seguiu direto até lá.

Pediu uma dose de cana e emborcou de um gole. Pediu duas, pediu três. A bebida desceu muriática, atiçando todas as raivas e fazendo surgir pensamentos de ódio e revolta.

Seguiu pela calçada ruminando horrores. Sentou-se no meio-fio e uma rajada de vento polvilhada de areia envolveu seu corpo num abraço de lixa grossa. No meio desse redemoinho de vento e raiva veio voando um jornal. Já velho, de uns cinco dias.

Ele pegou o jornal e leu: bandidos haviam chacinado um policial; criminosos haviam assaltado uma mansão e levado muitas joias; deputados envolvidos em atos de corrupção haviam sido absolvidos; ricaços escapavam da acusação de ter fortuna em paraísos fiscais.

Diante de tudo isso, decidiu: "Eu vou é ser ladrão." De que adiantava trabalhar tanto para no fim do mês ver dinheiro faltando para pagar as contas? 

Levantou-se e caminhou rumo à zona sul da cidade. Afinal viu-se diante de uma mansão. Foi fácil saltar o muro. Fácil atravessar o jardim. Fácil abrir a porta. Fácil entrar na casa.

Subiu ao primeiro andar. Além dele, ninguém. Aparentemente, ninguém. Mas, suspeitou: se a porta de entrada estava só no trinco haveria alguém em casa. E pensou: “Será que num tempo como o de hoje, com tanto ladrão por aí, uma pessoa ia deixar a casa só no trinco?” Tomou cuidado. “Será que havia ladrões na casa?” Ficou com medo de ser assaltado: já pensou se lhe tomavam o que restara dos quinhentos reais?

De repente ouviu barulho de chuveiro. Foi cautelosamente até a suíte de onde vinha o barulho e ficou olhando pela porta entreaberta. Somente o quarto estava iluminado. O restante da casa era envolvido em penumbra. A escuridão era sua amiga. Mesmo assim, ofegava. Fera no bote da presa. Até que a presa apareceu.

Saída do banheiro uma mulher de uns trinta anos, muito bonita, caminhava resplandecente e nua. Ele tremeu. Aí, percebeu: era um ladrão lamentável – nem arma tinha para o assalto. A mulher caminhou até o guarda-roupa e demorou-se mexendo em saias e blusas, de costas para ele. Depois ela virou-se e tornou a caminhar. Ele a seguia com o olhar. E via também a riqueza, a ostentação, o luxo daquele quarto.

Olhava tudo aquilo e comparou com a pobreza de sua casa, a figura triste de sua Joaquina, os moveizinhos baratos, a casinha apertada e feia. A beleza da mulher rica voltou a dominar seu olhar. Ela se perfumava. O aroma espalhou-se pelo quarto e chegou até ele.

Aí, sentiu seu próprio cheiro, o odor forte vindo de si. Sentiu-se imundo e sórdido.  Olhou-se e recuou, recuou, recuou. Caminhou pela semiobscuridade, chegou até à porta e saltou o muro. Quando seus pés bateram na calçada respirou fundo. Encolheu-se a um canto do muro e chorou em silêncio. Estava quase em convulsão. 

Havia fracassado até mesmo como ladrão. 

De repente ouviu dois tiros vindos de dentro da casa e um grito horrendo de mulher. Logo em seguida dois jovens saltavam o muro, fugindo da mansão. 

Ainda deu para ele ouvir quando um deles gritava para o outro: – Cê viu, rapá, aquele otário que tava na casa também querendo robá? O bicho saiu na frente, num levô nada e nem viu que a gente já tava dentro da casa. Aí a gente se fez. Mandei bem, não mandei? Dei dois tecos na madame e a gente pegou o colar!



quarta-feira, 2 de setembro de 2020


Da duração do tempo e de outras cousas que passam

Por Emanoel Barreto

Quanto tempo dura um quando? E esquecimento, quantos momentos tem? Um momento vale quantos segundos? Talvez um instante dure a vida inteira; depende, quem sabe, de um se – que por sua vez tem a perenidade do talvez.
Um “espere” pode ser longo demais, a depender da diferença entre espera e esperançar. A espera é cansativa, esperançar é resistência. 

E quanto tempo dura o tempo? E quando começou o tempo? A eternidade é maior que o tempo ou é um tempo especial, um tempo parado? E se é parado vira perpetuidade, que deve ser uma coisa que também estacionou girando em torno de si mesma.

O tempo não se mede em metros; sua medida são as horas, minutos, segundos. Estes são uma invenção que se fez para se dizer quantos metros tem o desespero de quem já não tem mais tempo pois perdeu o ânimo e já não tem qualquer forma de certeza ao fim e ao cabo da espera – e sem esperança de uma certeza não há razão para existir. 

A certeza é a única forma de tempo que tranquiliza e serena. Mas o excesso de certeza leva a tranquilidade à paralisia, e a serenidade à sonolência. 

É preciso ter a tranquilidade dos quilômetros por hora, a serenidade de quem se arrisca na velocidade com firmeza. Pois é da firmeza que nasce o melhor dos tempos: aquele que existe em você, em sua mente calma, em seu gesto de determinação – e a determinação nunca acaba. 

A determinação é o para sempre e o nunca mais, um substituindo o outro sem parar. Seja para sempre e busque o nunca mais.