quinta-feira, 25 de maio de 2006

A crônica dos 400 anos

"Grandes almas sempre encontraram
forte oposição de mentes medíocres."
Albert Einstein

A crônica a seguir eu a publiquei em 2000, quando Natal completou 400 anos.

Natal. A cidade renasce, num olhar de orvalho.
E o tempo, esse ancião que sabe moldar o futuro,

deu a Natal a condição de eterna adolescência.

E rebrotada no jardim de si mesma, a cidade escolhe
seus caminhos, reconhece seus dramas e
tira, dos novelos da vida ,o tecido que veste cada rua, cada beco.

Natal é assim: uma cidade bordadeira de teias de futuro,
uma menina que guarda suas luzes
para cada momento de alegria ou dor.

E que cresce, no silêncio das raízes,
operando o grande milagre de ter 400 anos
e ser amável, jovem e muito linda noiva do sol.

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Silêncio, ela é virgem...*

"Não há nada permanente,
exceto a mudança."
Heráclito

Natal, anos 50. Festinha no Aero Clube, com Aderaldo e seu solovox de ouro. À frente de uma pequena porém vigorosa banda, Ade encantava as tertúlias de brotos, tocando os hits das big bands e ensaiando os primeiros passos de uma nova dança, que escandalizava os papais e mamães, o rock’n’roll.

Em meio à vertigem da música, Maria Lúcia deixava-se envolver pelos acordes verbais de Anselmo, um rapaz insinuante, mas tido por todas as famílias de bem como um cafajeste. Mas Lucinha foi, foi e foi, dançando ante os olhares cobiçosos e ao mesmo tempo temerosos de suas amigas que, timidamente arrebatadas, queriam um namorado que se vestisse como James Dean.

Depois, em meio à voltagem da festa, Maria Lúcia desapareceu com Anselmo e voltou meia hora depois sozinha, lívida, pasma, transparente. O que foi, o que foi?, todas as amigas perguntavam. Ela somente respondia com uma negativa de cabeça, deixando no ar uma expectativa de medo, temor de uma coisa ruim, desastre no meio da noite. Depois, estourou na gargalhada e súbito calou-se. Acalmou-se e foi dançar com outro rapaz. Até o fim da festa.

“Você viu?”, comentou uma amiga, “Anselmo não voltou com ela. O que terá havido?” Nunca ninguém soube e ela, discretamente, retirou-se da convivência com as meninas, passando a ouvir em casa intermináveis discos de Cely Campelo. Certo dia, um jornal noticiou, letras enormes, tipos de madeira: “Morto o Dr. Sinésio. E sob o grande título, o complemento: “Famoso ginecologista degolado em pleno consultório.”

Maria Lúcia leu a notícia e manteve-se calada, em seu claustro privativo e voluntário. O pai, Dr. Samuel, comentava com a família o trágico desaparecimento do colega e ninguém entendia como um médico podia ser morto em seu consultório, sem que ninguém percebesse: “Pois é. Ele foi encontrado morto de manhã. Quer dizer que alguém, depois do atendimento, entrou lá e pá!, matou o homem!”, espantava-se o Dr. Samuel.

E as mortes se sucederam uma a uma, até chegar a cinco. A cidade estava em polvorosa, mortos cinco ginecologistas e não se tinha um suspeito, um motivo para os crimes, nada. Os médicos especialistas do setor ficaram preocupados e passaram a tomar graves cuidados. Todos mantinham nas gavetas alguma arma, qualquer coisa para se defender.

Uma tarde, tardinha, começo de noite, um deles, Dr. Anderson, um médico recém-formado, mas de grande futuro, atendia a uma jovem e linda cliente. Respeitoso, ele a examinava, mas não deixava de perceber como aquele corpo era belo, intenso e... na mão esquerda, não tinha aliança de casada. Naquele tempo aquilo era gravíssimo. Constatou a gravidez em estado inicial e, para saber algo mais a respeito da cliente, insinuou: “Parabéns, seu marido vai ficar feliz, a senhora está grávida...”

A mulher reagiu como uma mola, num bote de cascavel: “Parabéns não, mentiroso. Eu não sou casada, se não sou casada sou virgem, se sou virgem sou uma moça e uma moça não pode ter filhos. Vocês, médicos, não respeitam a virgindade. Eu já fui a muitos médidos para comprovar que não estou grávida.” E sacou um finíssimo estilete para tentar punir o difamador.

Horas depois, em casa, o Dr. Samuel recebia uma ligação da delegacia de polícia: “Dr. Samuel venha rápido. Sua filha está na cadeia. Foi ela quem matou todos aqueles médicos. O último conseguiu dominá-la.”

Ele foi até lá em companhia da mulher, Dona Arlinda, que em prantos ouviu da filha: - Fui a um bando de difamadores e todos diziam que eu estava grávida. Não sou casada e eles tinham de ficar em silêncio, em respeito à minha virgindade. Ninguém podia dizer que eu estava grávida. É proibido acusar uma moça de estar grávida.

Dia seguinte, ao ler o jornal, Anselmo riu em silêncio e acendeu mais um cigarro. E pensou: "Eu também, Lucinha. Eu também sabia que você não estava grávida. Como você poderia ficar grávida, se a gente nem tinha casado?" E logo em seguida pegou o telefone: ia ligar para Guiomar. Claro, ela também não ficaria grávida. Nem eram casados...
* Este texto é ficcional.

terça-feira, 23 de maio de 2006

O hamster também foi atropelado

"Muita luz é como muita
sombra: não deixa ver."
Carlos Catañeda


O jornalismo trabalha com um processo de seleção de acontecimentos que tenham saliência em relação aos demais fatos do cotidiano.
A priori, ganham destaque aqueles fatos que tenham carga de dramaticidade,criem tensão, gerem expectativa. Com isso, fundou-se a tradição da tensão jornalística, aquela circunstância comunicacional impactante, que gera no leitor a curiosidade pela leitura do texto.

Em função disso, os jornais estão cheios de notícias com poderoso efeito tensor. Isso pode ser facilmente percebido nos telejornais, especialmente porque estes trabalham com e contra o fator tempo: é preciso comprimir, em cerca de 40 minutos, uma profusão de fatos. E os "mais importantes" são, certamente, aqueles que melhor se enquadrarem no conceito de tensão jornalística.

Vivemos num mundo farto em acontecimentos de forte carga negativa. Como o jornal é parte do mundo, naturalmente reflete toda essa carga. Há poucos dias tive uma experiência, que me fez meditar a respeito dessa realidade e de como é preocupante o tipo de mensagem que o jornalismo dispõe ao público.

Foi assim: fui visitar minha neta, Eduarda, e qual não foi a minha surpresa quando a vi: estava vestida com uma saia da mãe, que lhe chegava aos pés, uma blusa e sapatos de saltos altos. Sim: e, na mão, tinha um lápis. Elogiei sua roupa, sua delicada elegância infantil e perguntei porque aquilo. Ela respondeu: - Vô, eu vou apresentar o Jornal Nacional.

Eu abri um sorriso desse tamanho e disse a ela que sim, que queria assistir ao seu jornal.
Ela disse o que ia fazer e subiu ao primeiro andar da casa onde mora. E completou: - Vô, venha comigo - claro que eu a acompanhei. Ela chegou à mesinha onde faz suas tarefas escolares, mandou-me ficar em silêncio e começou: - O cachorro pastor alemão foi atravessar a rua e foi atropelado pelo caminhão...

Parei. Imaginava que o "Jornal Nacional" de Eduarda seria aberto, digamos assim, com alguma "notícia" a respeito de alguma de suas bonecas ou bichos de pelúcia. Mas imediatamente, fui atropelado pela segunda "notícia": - O macaco foi atravessar a rua e também foi atropelado.

Minha admiração com sua figurinha graciosa cedeu lugar a um sentimento de preocupação: o que estaria havendo? Por que a escolha por fatos da vida, em vez de referências ao seu delicado e belo mundo de menina?

Para tentar suavizar o "noticiário", eu disse: - Eduarda, corte para o repórter Emanoel Barreto. Ele está no jardim zoológico e vai entrevistar um novo leão que chegou.

Ensinei como ela deveria fazer e ela: - Agora, vai falar o repórter Emanoel Barreto, diretamente do zoológico.

Eu entrei no "noticiário" e inventei uma entrevista maluca com o tal leão. Feito isso, cresceram minha surpresa e minha preocupação: - Mas Vô, leão não fala.

Ou seja: ali, no "Jornal Nacional", não valiam as regras da inocência, da ingenuidade. Prevaleciam as normas do mundo, suas dores e sofrimentos. Afinal, é isso mesmo o que os jornais veiculam: as dores do mundo. Lamentavelmente, tenho de admitir que, frente à realidade, não há como fugir: o mundo, feio e triste, jornalisticamente cifrado, também chega às crianças e havia, havia sim, chegado à minha netinha.

Tentei outra vez consertar a situação, mas não adiantou. Compreendi então como é poderosa a cadeia social a que estamos presos. Um mundo de desigualdades, de temores, incertezas, crueldades e dor. E o jornalismo reúne todos esses fios de desolação e tece a trama da tragédia, ao relatar o terror da vida.

Eu disse a Eduarda que estava bom de terminarmos aquele jornal, que queria ver com ela algum desenho ou algo assim. Ela respondeu - Tá bom, Vô: vamos brincar. Mas antes ainda tenho uma notícia.

Qual é? - indaguei.
Ela respondeu - O hamster também foi atropelado.

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Beco da Quarentena

"A avareza é a
miséria no agora."
Provérbio árabe


Abaixo, um registro da Natal boêmia, onde bêbados desvalidos faziam suas farras de desespero. O texto é do meu livro Crônicas para Natal.

Na Ribeira há um caminho torto, feio, escuro.
É a Travessa da Quarentena, onde, há
muito, muito tempo, os deuses desvairados
do sexo barato faziam ali suas orgias.

O Beco da Quarentena, como ficou na

lembrança popular, é esse falido porão
da cachaça barata e das mulheres de todos
e de ninguém.

Ali, vez por outra, passantes cortam

caminho, num atalho sem futuro.

Ali, quem sabe, nas noites da velha Ribeira,

fantasmas de bêbados e marias se juntam.
E dançam sua dança de cachaça.

Código Da Vinci: uma bíblia midiática para uma fé televisiva

"Comprometemo-nos a trabalhar
com ambas as partes para levar o nível
de terror a um nível aceitável
para ambas as partes."
George W. Bush

Chegamos a um ponto em que a farsa tomou o lugar do bom senso e o bom senso perdeu a saliência essencial daquilo que seria digno de nota. Tem-se uma prova com a simples leitura da frase do presidente americano, bem como com a celeuma criada em torno da versão filmográfica do Código Da Vinci.

Vivemos numa sociedade midiocrática, onde comportamentos podem ser moldados. Não pelo fato de que as pessoas reajam maquinalmente a uma determinada mensagem, como um robô faria a um comando direto.

Mas em função de que a criação de esquemas mentais socializados e cristalizados respondem positivamente sempre e quando mensagems de determinado teor tocam pontos socialmente sensibilizados (já notou que supermercados e lojas de roupas estão vendendo em grande escala roupas verde-e-amarelo? - é só para mostrar...)

Num mundo de grandes carências, num mundo em que não há mesmo respostas a indagações as mais simples, como a dúvida de uma família favelada se terá o que comer dia seguinte, publicações como o Código Da Vinci assumem o papel de estatutos que até então tinham sobre si a visão de esclarecimento sobre o divino e o mundo.

Para muita gente, o Código Da Vinci está substituindo a Bíblia. E isso pelo fato de que o Código Da Vinci é uma espécie de Bíblia midiática, feita sob medida para uma fé claudicante, para os fiéis de uma Igreja Católica que também se transformou numa instituição midiática que tem produtos como o padre Marcelo Rossi e o padre Antônio Maria, que tão bem trabalham suas imagens públicas.

Igrejas protestantes também alardeiam milagres; em Natal, chegou a passar um pastor que anunciou claro e bom som: "Venha buscar o seu milagre!" E, ao que parece, uma grande mulditão compareceu.

No mais, é o seguinte: reze para o PCC não publicar também sua bíblia de crimes. Na prática, já há tantos adeptos, que, logo logo, seus chefões estarão comandando rituais de iniciação ao crime.



domingo, 21 de maio de 2006

Agradecer sempre

Liberdade é uma palavra que o sonho humano
alimenta,não há ninguém que
explique e ninguém que não entenda.
Cecília Meireles

Agradecer sempre, em todos os instantes, a graça da vida.

A vida está até mesmo na lembrança, uma vez que a lembrança
é parte da eternidade.
E tudo o que é eterno,

mesmo aparentemente desaparecido,
jamais morre, pois se destina a renascer na perenidade do amor.

E a vida, nas mãos de todos nós, é como um segredo que
temos, todos sabem, mas ninguém o desvela por inteiro.
A sua descoberta é um passo adiante.
E esse passo somente o podemos

dar para dentro de nós mesmos.