sábado, 25 de junho de 2016

Silêncio, vou matá-lo agora...

"Rio Grande do Norte,
rio grande da morte,
rio grande sem sorte."

(De um poema de Bosco Lopes in memoriam )
http://www.madworks.es/2012/09/botellas-veneno-madworks.html

Simplício sempre sempre fora assim: assíduo, trabalhador, correto; desempenho sem qualquer genialidade mas eficaz. Tudo na medida. E o reconhecimento pelo seu trabalho era, no máximo, um sorriso de satisfação do chefe, melhor dizendo, do dono da loja. Até que um dia Simplício descobriu: estava com câncer.

“Seu Simplício, vou ser muito sincero”, disse o médico, “o senhor tem, no máximo, seis meses de vida.” Ele encarou o doutor com seus olhos castanhos, deu uma tragada forte no cigarro sem filtro e somente disse: “Está bem.”

Saiu do consultório e um pensamento aliviado o acudiu: Seu Ascânio, o patrão, não iria lhe falhar naquele momento difícil. Afinal, nunca havia pedido nada e agora era chegado o momento. Nada disse à mulher, esperou passar uma semana, tomou coragem e falou com Ascânio. O homem, de vista baixa estava de vista baixa ficou, traçando rabiscos numa folha de papel.

Simplício, de pé, petrificado, esperava a resposta, como quem espera uma sentença: seria possível que, após sua morte, o patrão providenciasse a Dona Santa, a viúva (o casal não tinha filhos), o pagamento de uma espécie de pensão, uma ajuda, já que a Previdência iria pagar a ela uma miséria?

Ascânio esperou um minuto, pensou e disse, enquanto amassava o papel e o jogava no cesto: “Não, Simplício, não. As coisas não vão bem e..”, quando foi interrompido por Simplício: “Mas seu Ascânio, e esses anos todos, eu aqui, minha fidelidade ao negócio, minha vontade de ajudar... isso não vale nada? Não merece reconhecimento?”

O homem respondeu: “E já foi reconhecido. Você não tinha um salário mensal? Esse foi seu reconhecimento.” Simplício não retrucou e retirou-se, voltando a seus afazeres. Ressentido, trancou-se em sua dor. Enquanto isso tramava uma vingança: sabia que Seu Ascânio era diabético e muito descuidado com a saúde; sabia também que ele tinha o costume de guardar cheques em branco e assinados, sabe-se lá por quê.

Então, Simplício só precisava ajustar essas duas coisas no momento apropriado para garantir a sobrevivência de Santa: envenenar o patrão e apoderar-se de um cheque. 

Sentia que a doença o corroía por dentro e precisava agir rápido. Então, aconteceu: num sábado foi para casa e, pouco depois, Ascânio telefonou pedindo que ele voltasse à loja e ficasse em sua companhia para revisar umas tabelas de preços. Sentiu que estava ali sua chance e voltou correndo.

Ascânio tomava muito café, fumava muito e estava com as taxas elevadíssimas. Foi suficiente substituir o adoçante por açúcar às quatro da tarde e pouco depois ouvir o baque do corpo. Como ninguém sabia que ele estivera com o patrão, foi ao talonário de cheques preencheu um com a quantia de 60 milhões de reais. Pôs o cheque no bolso, fechou a loja e saiu quando a noite caía. Na segunda-feira o corpo foi encontrado e todos lamentavam a morte de Ascânio.

Simplício foi a um cartório onde depositou o cheque dizendo que, após a sua morte, o envelope onde este se encontrava deveria ser entregue a Dona Santa.  Simplício morreu quatro meses depois. Emocionada, a pobre recebeu o cheque que lhe garantiria o resto de vida. E foi chorando que murmurou: “Meu Deus, como era bom o patrão do meu marido.”

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Mercado quer parar a Lava Jato



Empresários safados,
políticos ladrões

Vi nas folhas que setores do mercado estão “preocupados” com a demora da Operação Lava Jato. Segundo diziam as notícias os elementos que assim haviam se pronunciado estavam “preocupados” com a “retomada do crescimento” do país. 
 

Em outras palavras: a Lava Jato seria fator de retardo do tal desenvolvimento, pois investidores internacionais estariam temerosos da “insegurança” aqui reinante e assim refugam em  aplicar seu rico dinheirinho, o mesmo se dizendo dos capitalistas indígenas. Por isso deveria a Lava Jato  ser encerrada imediatamente. 

Mas, temo, as verdadeiras intenções do tal mercado seriam as seguintes: “É bom pará, ó! Os caras querem voltar a ganhar money na mutreta e a gente não aguenta mais esse negó de empresário rico metido na gaiola. Pó pará! Pó pará!”

É isso, o mercado quer que a Lava Jato chegue ao fim porque veio perturbar os sonhos, projetos e propósitos; mais que isso, veio atrapalhar as perpetrações dos criminosos de colarinho branco. E perpetração é algo essencial a um certo tipo de empresário. Perpetrar é preciso, o povo não é preciso.

Mais: sobre o assunto corrupção cumpre acrescentar detalhe de importância jornalística: a grande imprensa, pelos seus diversos segmentos, dá grande destaque aos criminosos que ocupam cargos públicos; há saliência e ênfase ou seja: destaca-se o assunto (saliência) e dá-se sustentação ao noticiário a respeito (ênfase), mantendo-se bandidos como Cerveró ou Delcídio na berlinda das maldições e descompostura social. 

Acho justíssimo. Por mim tais elementos, que eram agentes públicos, pegariam prisão perpétua em cárcere comum junto a traficantes, estupradores e assaltantes. Comeriam a mesma comida, dormiriam no mesmo chão.

Mas também acharia justíssimo o desenvolvimento de um jornalismo voltado para explicitar de forma aprofundada a ação de Odebrecht, por exemplo. Melhor dizendo: acharia justíssimo que se fizesse jornalismo interpretativo e investigativo, deixando às claras o quanto as grandes empresas privadas já surrupiaram do povo brasileiro. 

Do jeito que as coisas são apresentadas tem-se a impressão de que o bandido público é o único culpado, ficando o empresário assaltante meio em segundo plano, quando, na verdade é tão culpado quanto o agente público que atuou na falcatrua. 

Ou seja: é preciso mostrar que entre o grande empresariado corruptor desenvolveu-se a cultura desse tipo de furto luxuoso, que existia em maio a proverbial impunidade. É preciso contar como isso vinha funcionando, como contaminava as relações entre o público e o privado e, acima de tudo, como retirava dinheiro que deveria ser aplicado em favor dos mais pobres.  

Por isso é importante que a Lava Jato não tenha prazo para terminar e incrimine, prenda e apresente ao país os perigosíssimos criminosos que o espoliam. 

É preciso intimidar funcionários públicos corruptos e políticos safados, bem como deixar avisados aos grandes empresários corruptores que eles não estão acima da lei. O barulhinho das algemas precisa assombrar o sono desses meliantes. 
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Ilustração: https://www.google.com.br/search?q=empresarios+ladr%C3%B5es&client=firefox-b&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiVmuOy4cDNAhWHTZAKHd-QDSsQ_AUICCgB&biw=2144&bih=1030&dpr=0.9#imgrc=3yP-404XsIfeUM%3A

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Notícia, a vida e seus fatos

Deadline, o prazo fatal da notícia

"Era isso mesmo o que eu esperava:
comprar um cemitério."
(Assis Chateaubriand, ao comprar e recuperar o jornal Estado de Minas)

Muito antes de as prensas comecem a rodar, o jornal começa a ser feito. É um trabalho de equipe, intenso e coordenado. Como num jogo de passes é preciso que cada jogador entregue ao companheiro o bastão da notícia. Notícia esse objeto abstrato que só aparentemente está expresso nas palavras. 
http://thebsreport.files.wordpress.com/2009/07/800px-hoes_six-cylinder

Na verdade, da notícia enquanto mensagem vale a compreensão, a representatividade do relato, o valor que previamente se dá a um determinado tipo de acontecimento,
que deve ser importante ou interessante. Sem isso, nada de notícia. 

Importância ou interesse são essenciais.
Letras, palavras, fotos, ilustrações, tudo isso somente vale pelo que representa. E pelas consequências junto ao leitor. Vale pelo rumor social que pode causar. Em si não têm essência ou consistência. O código é a expressão tosca do entendimento humano.
 
 E o jornal é a desesperada tentativa de captar o mundo, transformando em tinta impressa a pressa das pressões que o homem sofre todos os dias.
A notícia sobrepaira à página impressa, se espalha, sai da mancha gráfica e se espraia no mundo.

O jornal trabalha com um repertório de fatos que nada mais são que os padrões do mundo, as coisas que escolhemos como cotidianas. Mesmo que essa estranha cotidianidade jornalística sejam o inusitado, o grotesco, o excessivamente bom ou a maldade em sua mais requintada forma. De alguma forma ao longo da História a história da maldade se sobrepôs.O homem tem o dom do ruim.
A cotidianidade, rotineira e plana, é plena de um vazio e presivível viver. Assim, o jornalismo dedicou-se dar relevo àquilo que foge do comum. E, lamentavelmente, os atos de maldade superam em muito os comportamentos de caridade, solidariedade, humanidade e bem. 
E, ao trabalhar com tantos fatos, todos recheados de tensão, o jornalismo o faz sob pressão. 

É o que chamamos nas redações de deadline, literalmente "linha da morte", em português prazo fatal, hora-limite. Agora, se você tem uma profissão, digamos, convencional, cumpre expediente litúrgico, atende a uma pontualidade budista, sequer imagina o que é trabalhar numa redação, o que é ser jornalista. E se você gosta de ser assim, jamais seria jornalista. O jornalismo é a tranqüilidade em disparada. Ou, como já se disse, jornalismo é a História escrita à queima-roupa.


A matéria-prima do jornal é o mundo e seu almanaque de acontecimentos, o tal repertório a que me referi há pouco. Cria-se assim, entre o jornal e o leitor, uma relação analógica: o leitor sabe que, numa determinada página, encontrará, sempre, um determinado tema - política, esporte, polícia, economia, por exemplo - mas jamais pode, ou pelo menos não deveria, prever qual assunto será tratado.

Explicando: sabe-se que em política a corrupção é quase norma executiva. Político é quase sinônimo de ladrão, pelo menos no Brasil. Assim, o tema, a novidade jornalística é: qual a nova corrupção a ser exposta? Ou, separando cada coisa: o tema é política&corrupção, esses dois irmãos siameses. Já o assunto é a novidade sobre o mais recente corrupto flagrado.

Mas o que quero falar mesmo é a respeito da questão tempo, em função do deadline e seu equivalente literal em português, "linha da morte". Em jornal, adquirimos uma vivência muito especial a respeito da questão tempo. Tempo não apenas enquanto aquele imperceptível passar de horas para o trabalhador de expediente litúrgico, mas para o jornalista, o trabalhador do tempo fragmentado, angustiado. 

Para nós, a convivência com o tempo é como conviver com o silêncio, ou com um lago calmo e profundo. Aparentemente, nada está acontecendo, mas, por trás do biombo da calma, o mundo está em ebulição. O grande problema é que os grandes acontecimentos têm algo de secreto, algo de sagrado. Os criminosos da política, por exemplo, disfarçam seu fervor pelo dinheiro e pelo poder em conciliábulos - perdão pela palavra - e confrarias que ocorrem às ocultas. Há um certo recato no roubar político. 

Compete ao jornalista descobrir esses segredos, tão bem guardados como os grandes venenos, aqueles que se ocultam nos menores frascos. E, o mais triste, é que um grande veneno é uma grande arte. Administrá-lo é uma forma de ciência; há um certo saber, no trabalho dos corruptos. Tanto, que neles demoram a ser descobertos. Suas doses são homeopáticas. 

O ladrão dos dinheiros públicos tem a perícia de um cirurgião ou a técnica de um pintor do Renascimento ao retocar, com suavidade, uma nesga de tinta. E o que é pior - dessa cicuta, o veneno de buscar sempre o novo, algo que também nos contamina - os jornalistas bebemos todos os dias. De algum modo os jornalistas também morremos, todos os dias, com o delicado veneno do deadline. Mas renascemos, dia seguinte, com uma nova manchete.