Magnífico trabalho
Não
gosto de fazer transcrições, mas encontrei um texto tão magnífico, tão
perfeito, redigido pelo jornalista Gilles Lapouge, correspondente do Estadão em
Paris, que o trouxe a você. Perceba o estilo, a linhagem semântica, a estirpe
da coerência e a magnífica tradução assinada por Celso Paciornick. Segue:
A Argélia de Bouteflika
19 de abril de 2014 | 2h 04
T ornou-se
conhecido ontem o nome do novo presidente da Argélia: Abdelaziz Bouteflika,
eleito pela quarta vez. Essa vitória não é nenhuma novidade. Bouteflika estava
eleito antes mesmo da votação, graças a uma fraude maciça e a 260 mil
policiais.
http://www.planobrazil.com/policia-prende-dezenas-de-manifestantes-na-argelia/ (Meramente ilustrativa) |
Mas as
eleições trouxeram mesmo assim uma surpresa. Os argelinos viram pela televisão
seu presidente Bouteflika, que havia dois anos andava sumido depois de um AVC
(acidente vascular cerebral) brutal. Bouteflika compareceu a sua zona eleitoral
num terno, acomodado numa cadeira de rodas. Ele enfiou seu voto com dificuldade
no orifício da urna e disse "bom dia". Uma vez. Depois, cansado, seus
guardas o levaram.
Foi uma cena
alucinante. Um personagem irreal sai dos territórios brumosos onde morre
docemente, vota, e se dissipa como vapor. Ele retornou a sua morada de
fantasmas. As ditaduras mais barrocas não teriam imaginado semelhante teatro.
Bouteflika teria quebrado um tabu? Será que veremos outros espectros se içarem
aqui e ali aos tronos dos reis ou das repúblicas? O curioso é que a Argélia
sobrevive a tais vergonhas. Duas razões ao menos para esta
"sobrevida".
A primeira é
que o verdadeiro poder está nas mãos dos generais, aqueles que são os herdeiros
distantes e depravados dos guerreiros heroicos que, antes de 1964, fizeram a
guerra contra a potência colonial, a França. A segunda é que o subsolo do sul
da Argélia é uma esponja encharcada de petróleo. O fluxo de dinheiro dos
hidrocarbonetos é tão imenso que a Argélia, a despeito da má gestão de sua
economia, pode empreender, se enriquecer e sobreviver (ela se deu o luxo de
emprestar US$ 5 bilhões ao Fundo Monetário Internacional em plena crise
financeira dos países do sul da Europa).
Esta fonte
infinita de dólares tem efeitos perversos. Sobre esta opulência artificial
pululam os corruptos. Os militares alimentam suas famílias, suas redes e seus
clãs. Os políticos próximos do poder também. Mas, sobretudo, esse dinheiro
impuro engorda os que, a partir de 1999, ocupam o coração da máquina, a família
Bouteflika. Essa família é numerosa e unida. Há alguns anos, havia a mãe,
Mansouria, a chefe do clã. Ela morreu em 2009. Bouteflika ficou inconsolável.
Em família. Hoje restam-lhe três irmãos: um advogado,
Abdelghani, o secretário do Ministério da Informação, Nasser, e o caçula, Said.
Este Said é um personagem romanesco da fratria e o mais temível. Ele não larga
o irmão desde que este adoeceu. Ele é invisível e está em toda parte. Said
manipula todos os cordões da Argélia. Ele fez fortuna colocando petróleo no
mercado negro internacional, controla o narcotráfico e jamais foi citado na
Justiça.
Em 2010,
quando o WikiLeaks revelou despachos diplomáticos, foi possível ler os
telegramas enviados a Paris pelo embaixador da França na Argélia. Exemplo:
"A corrupção atingiu o escalão mais alto na Argélia e chega aos irmãos de
Bouteflika". Depois, a situação piorou. A corrupção prospera enquanto o
presidente, o "morto-vivo"que foi reeleito na sexta-feira, é engolido
por sua noite.
O estranho é
que essas torpezas são denunciadas por alguns jornais que não são perturbados
pela censura. O poder protege esses periódicos para mostrar que a expressão é
livre. Eis um achado dos ditadores inteligentes (Putin também faz isso, vela
gentilmente sobre os jornais de oposição).
Citemos
apenas um dos artigos publicados dia após dia pelo violento polemista Kemal
Daoud no jornal Quotidien d'Oran: "A Argélia é um país espremido entre o
céu e a terra. A terra pertence aos 'libertadores' (o Exército), essa casta
maldita que não quer morrer e garante ter feito a guerra por nós. E o céu é
colonizado pelos religiosos que se apropriaram do nome de Alá". E a
conclusão cortante: "A Argélia é um carruagem-fantasma conduzida em
alucinada carreira pelos 'bouteflikianos'". / TRADUÇÃO DE CELSO
PACIORNIK
É
CORRESPONDENTE EM PARIS