sábado, 13 de julho de 2024

 De repente a PF baixou no Diário de Natal: os agentes queriam “falar comigo”

Por Emanoel Barreto

O ano era 1985 ou 1986, sei lá. Eu era repórter de política do Diário de Natal. Certo dia, ao entrar na redação vindo da Assembleia Legislativa, fui surpreendido pelo hoje saudoso jornalista Luciano Herbert com a seguinte informação: “Barreto, Albimar – Albimar Furtado, diretor do jornal – me disse que dois agentes da Polícia Federal estiveram na sala dele para saber se você trabalha mesmo aqui. Ele confirmou que você trabalha aqui e os policiais o tranquilizaram dizendo que estava tudo bem, era só para saber se você é mesmo repórter do jornal.” E completou: “Fique tranquilo, não há problema algum...”

A informação me soou no mínimo estranha: dois caras da PF terem o trabalho de ir a um jornal só para garantir a um repórter que as coisas estavam bem é meio esquisito, não é?  Pelo menos eu acho. Porque, até onde sei, não é papel da polícia procurar cidadãos, acalmá-los, dizer-lhes que está tudo bem e ir embora. Pelo que sei polícia quando sai é para investigar ou, na pior das hipóteses, prender...

Diante de tão esquisita situação fui à sala de Albimar. Ele afirmou angelicalmente a mesma coisa que Luciano: “Não, não se preocupe: realmente eles estiveram aqui, falaram comigo, confirmei que você é do jornal, eles disseram que ‘está tudo bem’ e foram embora. Não se preocupe. Eles queriam falar com você, mas como você não estava... Mas eles disseram que está tudo bem, viu?”

Respondi: “Se você está dizendo...” e fui para a Redação preparar minhas matérias. Enquanto isso fiquei pensando: como é que dois experientes jornalistas são tão ingênuos a ponto de não perceber que havia algo a mais no ar, e pelo jeito não eram apenas mosquitos?

Enfim, diante da candura dos meus colegas dei também o caso por encerrado e fui trabalhar. Dias depois, uma surpresa: o mesmo Luciano informou, agora com cara de preocupação: “Barreto, um oficial de justiça veio aqui lhe procurar. Você está sendo processado não sei por qual crime e precisa assinar um documento oficializando que sabe do processo.”

Eu disse “o quê?!!!!” 

E ele: “É verdade.”                                                   

Pensei: “Eu num disse? Não estava tudo bem: Luciano era realmente um ingênuo e Albimar era um doido.” Mas, não sei bem por que não dei muita importância ao fato e fui redigir meus textos. Afinal, eu não havia feito nada de errado e segui em frente. Dois dias depois o oficial de justiça procurou-me novamente, eu não estava e ele se foi. Mais uns três dias e repetiu-se tudo: o sujeito me procurava e eu sempre fora, cumprindo pauta.

Dessa vez, porém, deixou uma ameaça: eu deveria dirigir-me à repartição onde ele trabalhava e assinar o documento de citação. Era isso ou o processo ia correr à minha revelia. Em suma: eu estava lascado.

Então, caiu a ficha. Sabe Kafka? Já leu O processo? Foi assim que me senti: estava sendo processado e não sabia o motivo, igualzinho ao livro. Mas, diante da mudança de quadro peguei o carro e fui procurar o tal funcionário. Encontrei-o, tomei conhecimento do crime pelo qual era acusado, assinei o papel, peguei a minha cópia da citação e fui embora. Sim: e ele ainda me deu um aperto de mão. E disse a frase fatal: “Agora está tudo bem.” Na verdade, era exatamente o contrário: agora eu era, literalmente, um homem na mira da lei.

E o meu crime: ter publicado uma notinha na coluna Roda Viva, de Cassiano Arruda, que estivera fora alguns dias e eu fora seu interino. A tal nota, minúscula, na parte inferior da coluna, informava a respeito do resultado de uma pesquisa sobre intenção de voto numa cidade do alto-oeste potiguar. Especificamente o crime estava no fato de que a pesquisa não havia sido registrada no Tribunal Regional Eleitoral, o que por lei é obrigatório . Eu não atentei a isso e publiquei.

Alguém, que nunca soube quem foi, havia representado contra mim a partir desse fato. Suspeito que tenha sido algum dos candidatos que ficaram em segundo e terceiro lugares.

A informação sobre a pesquisa me fora passada por um jornalista conhecido meu, mas um tipo com quem não tinha muito contato. Não lembrei de perguntar se o material fora autorizado pela Justiça para publicação, ele não tocou no assunto e deu no que deu: uma mera informação, sem qualquer propósito de beneficiar qualquer lado, estava me levando às barras do tribunal.

Mais uns dias e fui prestar depoimento à Polícia Federal. Cheguei lá e disse: “Boa tarde. Vim aqui para ser interrogado.” O recepcionista, muito atencioso, disse: “Tudo bem. Venha por aqui.” Novamente “tudo bem”. O cara entra numa fria e tudo bem.    

Pensei: por que tudo o que vem para me lascar vem precedido de um “tudo bem”? E caminhei ao lado do rapaz da PF.

Fui levado a uma grande sala, cheia de birôs, onde fui recebido por dois senhores de gravata, as mangas das camisas sociais arregaçadas. Eram dois delegados. Eu supunha que ia ser um interrogatório truculento, cheio de perguntas capciosas, mas não. Foram feitas perguntas objetivas visando saber se eu tinha interesse na eleição de alguém e se era filiado a algum partido político. Tudo nesse tom. Jogo limpo.

Sim, ao chegar já encontrei Albimar me esperando ao lado de um advogado do jornal. Tinham vindo dar-me assistência jurídica e eu nem havia pedido. Claro, o jornal tinha obrigação de me apoiar, mas eu sequer havia pensado nisso, tal a minha confiança de que nada havia feito de errado. Uns 20 anos depois, em cerimônia na UFRN, agradeci publicamente a Albimar pelo gesto. O agradecimento se deu durante o lançamento de um ebook que tratava de perfis biográficos de jornalistas, eu e ele citados no livro.

Bom, passada essa fase da PF viria a etapa em que eu seria inquirido por um juiz e um promotor. E lá fui eu, trazendo o tal colega jornalista como minha testemunha de defesa. Aí, o juiz disse: “Já li muitas das suas matérias, gosto muito das suas crônicas, mas vou ter de processá-lo, certo?”

Respondi solenemente: “Sem problema. Estamos aqui para isso, Excelência.” O magistrado seguiu um roteiro mais ou menos idêntico ao dos delegados da PF. O problema para ele é que praticamente não havia base para a acusação, a não ser a questão de a pesquisa não ter sido registrada. E as perguntas, assim, não me levaram ao canto do ringue, digamos assim.

Explico: eu não morava na cidade onde fora feita a pesquisa, não tinha ali qualquer vínculo político ou familiar, sequer conhecia os candidatos. Na verdade não conhecia ninguém lá e a notinha era graficamente insignificante: tivera uns dois centímetros de altura por dois centímetros de largura, publicada no rodapé da coluna. Objetivamente: eu não tinha qualquer interesse no resultado da eleição nem nunca buscaria beneficiar a quem quer que fosse utilizando o jornal onde trabalhava.

Em minha defesa tive o cuidado de apresentar aos autos uma declaração formal do chefe do setor de circulação do jornal atestando quantos exemplares haviam sido vendidos na cidade no dia da publicação da nota: cinco. Miseravelmente cinco exemplares estavam me jogando naquela situação. Uma briga paroquiana e mesquinha tinha virado um imbróglio para mim. Cinco jornais nunca teriam a possibilidade de definir a eleição de ninguém.

O problema, na sequência dos depoimentos, foi quando o colega jornalista foi chamado a depor. O juiz jogou uma isca e ele caiu. Foi feita a seguinte pergunta: “O Sr. acha que o articulista deveria ter publicado essa nota, divulgando uma pesquisa que não tinha registro?”

Em vez de engatar uma resposta que me defendesse, ele agiu como um jogador de várzea: aquele que tem tudo para fazer o gol, a trave está aberta, o goleiro batido, mas, em vez de chutar a bola o sujeito dá um coice no chão.

Sabe o que minha testemunha disse? O seguinte: “É... pela experiência dele, né?...” Ou seja, eu deveria ter tido precaução. Eu pensei, “meu Deus, mas foi esse sujeito quem me passou a informação. Podia ter dito que me conhecia, que era sabedor de que eu jamais iria usar do jornalismo com finalidades escusas.” Mas fez a estupidez, e, por um momento, senti as coisas se complicando. Eu poderia ter revelado que fora ele a pessoa que me dera a informação sobre a tal pesquisa mas preferi aguentar o tranco. 

Eu já estava começando a pensar que ia sair dali algemado e com um saco preto na cabeça, quando o juiz encerrou o interrogatório. O promotor também fez umas perguntas, deu-se por satisfeito e aquela cena terminou. Claro que não saí algemado nem nada - são apenas ilações estilísticas para dar clima ao texto, sabe?

Dias depois saía a sentença: além do  meu advogado até o promotor pedia a minha absolvição. Às vezes comento sobre esse assunto com minha mulher e digo, brincando: “Minha filha, eu espero que os caras da PF não se arrependam de não terem me prendido e reabram o processo. Quem sabe, chega aqui em casa uma dupla de policiais federais procurando por mim, e avisando: 'Ei rapaz, fique tranquilo que a gente veio aqui só pra lhe avisar que está tudo bem.'"

 

 

 


sexta-feira, 12 de julho de 2024

 “Quando eu morrer quero um enterro muito bonito”

Por Emanoel Barreto

Já escrevi aqui a respeito de uma mulher conhecida como Maria Saberé. E disse também que isso não é um apelido: é uma  biografia, implica que alguém leva uma vida vulgar, pobre, desembestada, pessoa grosseira, bruta e braba. Os apelidos populares, muitas vezes formados por palavras que sequer existem no vocabulário, têm esse condão: passam uma ideia bastante exata de quem neles seja representado. Veja só: o que você pensaria de um sujeito apelidado de Zé da Buranca?

Mas eu dizia algo a respeito de Maria Saberé, notória bêbada e arruaceira com, digamos assim, atuação em botequins e qualquer buraco de ponta de rua onde se vendesse cachaça e tira-gosto de má qualidade. Rocas e Ribeira eram seu território de caça. Era uma arruaceira de primeira grandeza e, quando podia, desmontava no murro e no chute quem estivesse pela frente. Fosse um sargentão de radiopatrulha, um passante inofensivo ou a pessoa com quem tivesse iniciado um quebra-pau pelo motivo mais besta do mundo.

Muitas vezes estive com ela em delegacias, anotando suas, posso dizer atividades? Que seja. Mas, os feitos de Saberé não davam notícia. Eram acontecimentos menores, brutalidade de segunda categoria, bobeira. Tudo o que ela fazia, desde uma troca de tapas até o mais consumado quebra-quebra, era editado numa coluna chamada Ronda, onde se noticiavam acontecimentos menores do então chamado submundo do crime. Ela estava nesse catálogo.

Quando eu chegava a uma delegacia falava com o delegado ou, em sua falta, algum investigador para saber de novidades. Nem sempre havia algo de grande, porque em polícia ou a coisa é realmente pesada, inversamente não passa de discussão entre vizinhos ou, no caso específico, uma, vejamos, batalha de Maria Saberé.

Certa vez,  numa delegacia nas Rocas, ela havia acabado de chegar. Tinha aprontado no Canto do Mangue: queria levar um peixe, garantindo que “depois pagaria”. Quando recebeu um não como resposta simplesmente pegou o peixe e fez dele um inesperado cacetete que se espatifou na cara do vendedor. Uma radiopatrulha passava e ela se deu mal.

Depois que foi acondicionada numa cela fui até ela, que abriu um sorriso desse tamanho ao me ver: “Você sempre chega na hora certa. Acho que a gente devia assinar um contrato. Eu saio na Ronda, o jornal de paga! Eu saio na Ronda, o jornal de paga! Bom pra mim, bom pro Diário.”

Anotei o que ela falou a respeito de sua mais recente desordem, ela com a voz embargada pelo álcool. Queria levar o peixe, não dei certo, abriu o pau. De repente, disse: “Eu queria saber o que o jornal vai fazer quando todos os desordeiros, o pessoal da bagunça se acabar. Quando morrer todo mundo ou quando ninguém mais quiser briga e porrada jornal se acaba, rapaz! Jornal se acaba! Quem sustenta jornal é os pobre, que não tem o que fazer e lasca o murro a fazer merda pra compensar essa vida!”

Surpreendido pelo raciocínio tosco, mas com raízes firmes na realidade dos que estão nos arrabaldes da vida, ainda ouvi quando ela desabafou: “Quando eu morrer, por tudo o que já fiz de grito e pancada, quero ter um enterro muito bonito. Quero um caixaozão bem grande e muita gente chorando... Quero um enterro muito bonito...”

Não sei se ela já morreu. Mas tenho minhas suspeitas que sim. E de uma coisa tenho certeza: se já morreu não teve um enterro muito bonito.

 

  

 

 

 

quinta-feira, 11 de julho de 2024

 Desejo da matar: o plano sinistro

 para um dia de ira

 

Por Emanoel Barreto

Nos idos de 1974 eu era repórter da editoria de polícia do Diário de Natal. Uma tarde apareceu por lá um homem que se identificou como funcionário da Secretaria de Segurança: queria informar a respeito de um enfrentamento que pretendia ter com um colega de trabalho: situação a ser resolvida a tiros, assunto de inimizade terrível e ódio sincero.

Não quis falar a respeito do motivo para o surgimento de tamanha raiva. Queria mesmo era descrever como se daria o confronto, coisa que sua mente perturbada queria consumar a qualquer custo, mesmo que, em meio aos balaços ele viesse a morrer. O sujeito tinha olhos negros e um bigode que cobria fartamente o lábio superior. As mãos fortes pareciam dispostas a se destruir mutuamente, tal a forma como se apresentavam: crispadas e quase pingando o fel da sanha que animava o tal sujeito.

Eu perguntando a respeito do intento, ele falando, eu anotando. Indaguei sem interrogação: “Quer dizer que o senhor pretende atacar seu colega...” Ele disse “sim” e axrescentou, colocando o cotovelo sobre o birô e fechando a mão direita como se fosse dar um murro que teria a força estúpida de um coice: “Sim, e pretendo atacá-lo de forma definitiva.”

Quando eu quis saber o que seria exatamente essa forma definitiva claro que já imaginava a resposta. Ele foi objetivo ao dizer que o homem alvo de tamanha raiva, gana a furor não escaparia. Morte certa seria o fim daquela jornada insana.

À medida que detalhava seu plano ia ficando mais e mais excitado em seus intentos molestos. Gesticulava e falava alto, chamando atenção. E olhe que ele estava numa redação, ambiente que naquele tempo era muito barulhento, com o entra e sai de repórteres e fotógrafos, máquinas metralhando textos e preenchendo laudas e laudas.

Disse em seguida: “Terei comigo uma pistola muito boa, um revólver calibre 38 e outra arma de fogo: pesada, para bater e machucar.” Ainda hoje, sempre que lembro desse assunto, me pergunto por que ele iria manusear uma arma de fogo para “bater e machucar” em vez de usá-la para disparo. Talvez quisesse iniciar o combate corpo a corpo para depois dar início ao tiroteio. Perguntei e a resposta foi essa: “Depende do momento.”

Quando quis saber onde se daria o confronto foi taxativo: “Será na rua, em frente à Secretaria de Segurança.” O plano era simples: esperar que o inimigo chegasse à Secretaria – que na época funcionava onde fora a Faculdade de Direito, na Ribeira –, defrontá-lo e partir para a agressão. Olhou para mim e disse, olho no olho:

“Espero liquidar o assunto em menos de cinco minutos. Quero despachar o sujeito – cujo nome não revelou de jeito nenhum –, mas quero evitar atingir algum passante, embora isso seja sempre uma possibilidade..”

Quando seria? “Não sei. Talvez amanhã, quando a edição dessa entrevista estiver na rua.”

Não quis dizer mais nada. Agradeceu e saiu pelas portas de vaivém da redação, típicas de um saloon de filme de caubói. Portas bem apropriadas para receber o assunto que acabava de ser tratado.

Ainda sob o impacto daquela loucura e como eu era muito novo em jornal, coisa se três ou quatro meses, dirigi-me a colegas mais experientes e contei o que havia acontecido: quase me disseram em coro: “Você está doido? Isso é um duelo. O jornal não pode noticiar a programação de um crime. Deixe isso pra lá.”

Como sequer havia começado a redigir a matéria engavetei na memória aquele assunto e somente hoje estou falando dele. Detalhe: dia seguinte eu estava esperando que a qualquer momento chegasse a notícia do embate em frente à Secretaria. Eu teria que ir direto para lá, para saber detalhes. Até hoje não ouvi falar a respeito...