domingo, 23 de agosto de 2020


"Os mortos são estrangeiros"
Por Emanoel Barreto

A paciência como ato estudado e vivido, exercitado e consciente, é prima-irmã do esperar e tem grande parentesco com a esperança; esta, por sua vez, não se avança ao futuro, antes vive intensamente o presente, o momento, o ato, o gesto, o fazer. Esperança aqui como sinônimo de equilíbrio e tranquilidade.

Paciência não é resignação, abaixar de cabeça. Ao contrário: a paciência é ativa, forte, resiliente – para usar uma palavra que está em moda. E assim a paciência distancia-se da angústia, livra-se do desespero e ignora a incerteza e o temor pois sabe que em alguma parte do que chamamos futuro haverá um porto, uma chegada, um desembarque, um desejado fim; libertação. 

É esse tipo de raciocínio que venho usando para conviver com o isolamento desde que a pandemia chegou e instalou-se como coisa cotidiana, convertendo-se numa espécie de má companhia de quem aceitamos a convivência por momentaneamente ser impossível expulsá-la; mas que fique a boa distância e depois vá embora.

O dia a dia, entretanto, tem-me mostrado como muitas pessoas não conseguem acautelar-se da perigosa realidade e atiram-se à rua, aos bares, aos restaurantes às praias – a tudo quanto possa gerar aglomeração e promover a sensação de escape, numa festa encardida de vírus, encontros que têm algo de queda e júbilo deplorável.

Falando sobre como vivencio a experiência do isolamento, como busco manter-me sereno diante de um dia a dia que se passa como páginas em branco, lembro de quando ingressei no jornalismo, idos de 1974. Logo você perceberá o nexo entre o então e o agora.

Foi assim: para ser aceito como repórter precisei passar por um teste com Luiz Maria Alves, o grande construtor da grandeza do Diário de Natal, depois naufragado em lamentável decadência. Ele fez-me datilografar um longo excerto do livro Os mortos são estrangeiros, de Newton Navarro – escritor, poeta, cronista, desenhista, poeta, boêmio, não necessariamente nessa ordem.

Não lembro detalhes do que me foi dado a transpor para o papel, mas estranhei o nome da obra e guardei-lhe o título: Os mortos são estrangeiros. Enigmática assertiva, explica-se pelo fato de que o morto deixa de existir, mas sua presença é imortal nas lembranças que se alongam na memória que deles se tem, diz ele em seu livro.

Vendo o título por outro ângulo posso entendê-lo como uma forma de expressar o que as pessoas sem paciência e serenidade vivem: são estranhos a suas próprias vidas pois não se reconhecem em perigo e tentam alargar seu território de festa em direção a um terreno alagadiço de perigos e ameaças como se ali nada de terrível  houvesse. 

Muitos dos que vão às festas, às insensatas reuniões onde se celebra uma alegria sem sentido é como se fossem os tais estrangeiros de Navarro. Depois levarão a outros, muitos deles sem culpa, os restos de sua comilança impune em forma de contágio. E então podem vir a ser realmente mortos e efetivamente estrangeiros. E, quem sabe, esquecidos.