sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Reze ou ore, meu filho... mas mande pra cá o dinheiro

"A César, o que é de César;
a Deus, o que é de Deus."
(Jesus Cristo)

A sociedade do espetáculo, que se expandiu e se firmou, especialmente pela consolidação da TV como veículo primordial de visão e divulgação do mundo, trouxe a reboque uma circunstância inesperada: a midiatização religiosa, transformando Jesus Cristo em super star, Nossa Senhora em mito pop e os anjos em ídolos imateriais.

Isso, em se falando de marketing católico, cujo panteão abrange muitas manifestações de fé, respeito e amor por entidades sobrenaturais. Quando se fala de protestantismo, cujos fiéis hoje preferem ser conhecidos pela marca evangélicos, a coisa fica diferente. Admitem o Espírito Santo como integrante do seu elenco de salvadores. Mas as palmas vão, mesmo, para Jesus. É da mercadoria Jesus, da marca Jesus, que advêm seus maiores aportes financeiros.

A Igreja Católica, da mesma forma, também cultua a figura exemplar do Rabi da Galiléia. Mas, alguns de seus segmentos, midiatizados e extremamente profissionalizados, obtêm êxitos financeiros com programas de exaltação, onde Jesus também é mercadoria fina e rentável.
Este texto, que tem, sei disso, uma apresentação efetivamente satírico-crítica, não objetiva criticar a fé, a crença em um ser supremo. Meu objetivo é lamentar a utilização da fé como mercadoria, dentro de um contexto de economia globalizada.

Vão longe os tempos em que, nos púlpitos, católicos ou protestantes, se pregava a palavra da crença com o uso da retórica, com gestos grandiosos e oradores de grande poder de convencimento. Havia, é claro, a atitude teatral, o vigor da palavra, o acendimento da fé mediante o impressionismo. Mas, suponho, existia também sinceridade, o próprio orador imerso em seu discurso.

Hoje, o discurso mesclou-se ao discurso televisivo, com os recursos de edição, cortes, enquadramentos, vinhetas e cenários. A isso deve ser ajuntado o desencantamento das multidões, que se encantam novamente via imagem telemidiática. Há portentosos eventos que são vistos pelos participantes de co-presença, mas que também são vistos em tempo real por pessoas em suas casas. O espetáculo só é espetáculo porque há um público ali presente e esse mesmo público, espetacularizado, é visto por um público não-presente, mas atento, no recôndito do lar, ao que está acontecendo.

Há uma cadeia, uma teia de acontecimentos: o grande espetáculo da vida religiosa, visto por quem também tem um sentimento de pertença àquele grupo, todos numa ação global de louvor. Em verdade, em verdade vos digo: o que vale é a aliança que se forma entre a participação co-presencial e a participação tele-assistencial.

Ao fundo, o pastor e o padre conferem com seus contadores quem pagou ou não.
Suponho que hoje, de alguma forma, ressurge midiaticamente a figura dos vendilhões do templo. Talvez seja chegada a hora de todos, todos eles, serem expulsos do vestíbulo, pois suas oferendas são venais e lucrativas.

César não quer as coisas de Deus. E, Deus, também não quer o que é de César. Os sofrimentos do mundo são muitos. E vender a salvação virou objeto de lucro. Compre um carro novo, compre a TV de tela de plasma, compre também um jeitinho de escapar do purgatório, ou até mesmo do inferno.

Mas se você quer mesmo ser um justo, fique em paz e deixe Deus de fora dessa coisa de dinheiro. Não precisa nem mesmo rezar, ou orar como dizem outros. Seja honesto, digno e honrado. Creio que isso agrada a Deus. Ser bom é ser feliz, como dizia a minha Mãe. Seja bom e afasta-se dos trinta dinheiros.

Causos do Edgar - O homem bom

Transcrevo aqui uma colaboração de Edgar Manso, que gosta e conhece as coisas e os tipos do sertão. Eis aqui mais um causo do Edgar.

Em todo canto que a gente anda, nos deparamos com pessoas que despertam a nossa atenção, por um motivo qualquer. Eu, particularmente, gosto muito de observar as figuras típicas do nosso interior nordestino. Dizem que o matuto nordestino é ingênuo. De certa forma isso é verdade, se considerarmos a forma como eles se deixam enganar por políticos adoradores da seca, que manejam esse fenômeno milenar da natureza aumentando sempre seus currais com fins eleitoreiros.

Ao mesmo tempo, o matuto nordestino é dono de uma vivacidade e velocidade de raciocínio as vezes espantosa, sem falar no bom humor quase que permanente. E quando o bicho é valente? Aí, lasca. Hoje, me lembrei de uma figura interessante nas minhas andanças pelos interiores desse nosso Nordeste, Carlos, mais conhecido como "Bigodão", aliás essa parte de seu corpo era um verdadeiro adorno, e ai de quem mangasse do dito cujo.

Carlos é crioulo do brejo paraibano, mais precisamente da cidade de Areia, importante berço cultural, produtora de cachaças da mais alta qualidade, inclusive abriga o museu da cachaça: lá também encontramos Areia do Bruxaxá, as ruínas da Usina Santa Maria, a cahaça Volúpia, o Bregareia, d Foliarte e muito mais... Mas nesse caso aqui, Areia de Bigodão.

Conheci Bigodão na cidade de Passa e Fica, eu como estágiário em uma fazenda de produção leiteira e ele como uma espécie de vigia ou chefe de segurança. O cabra impunha respeito logo à primeira vista, era "forte", no interior quem tem um bucho um pouco proeminente é logo "forte", possuía um bigode digno de um general, e além de tudo isso ele andava com um 38 meio graúdo na cintura, esse penduricalho parecia que fazia parte do seu corpo, não se desgrudavam nem um só minuto. Apesar apesar dessa força ele era uma pessoa ágil pois montava bem e até chegava a dar umas quedas nuns garrotes em dias de pega de boi no mato.

Pois bem, Bigodão passou pouco tempo nessa fazenda, mas mesmo assim praticou feitos que merecem ser contados por aí. Bigodão era muito misterioso, parecia que tinha saído de um filme de faroeste americano. Foi contratado para fazer a segurança da fazenda, não trouxe mulher nem filhos, aliás é logo aí onde começa o mistério. Bigodão sempre mostrou a todos da fazenda um revólver novinho que ele guardava numa caixa, enrolado numa flanela vermelha e uma bala e todo dia ele limpava esse trabuco.

O que todos sabiam e ele confirmava, é que esse aparato estava guardado para ser usado contra um homem que havia matado o seu único filho com pauladas num bar, apenas por causa de um esbarrão da criança. Quando essa conversa se espalhou na região, Bigodão ficou logo respeitado, e fora isso, o cabra tinha uma mira espantosa com todo tipo de arma. Cachorro e gato nessa fazenda era mais difícil de ver do que orelha de freira, Bigodão acabava com tudo.

Apesar dessa fama os funcionários da fazenda gostavam muito dele e eu também, porque além de estarmos protegidos da violência que vem aumentando assustadoramente no meio rural potiguar, ele era uma pessoa muito tranquila, divertida e muito trabalhador. Até hoje eu acho que Bigodão não dormia, passava o dia todo montado num cavalo vigiando os cercados e a noite toda vigiando a casa e as instalações, o homem andava pelas sombras, quase invisível.

Foi aí que veio a primeira presepada de Bigodão, e logo comigo. Houve uma época em que uns fugitivos de uma cadeia da Paraíba estavam praticando roubos e até assassinatos na região próxima a fazenda onde eu e Bigodão trabalhávamos. Numa noite de sábado teve um jantar na casa do prefeito e eu fui convidado. Muita comida, muita bebida, um ótimo papo, e o tempo se passando, lá pras três e meia da madrugada eu resolvo voltar para a fazenda que fica a seis quilômetros da cidade.

Seis quilômetros para quem está de carro não é nada, mas para está num fusca 77, com farol queimado e carburador entupido, rende que só a bixiga. Ao chegar à fazenda, morrendo de medo, parei o fusca na garagem e olhei bem para todos os lados: como não vi ninguém, desci um pouco aliviado mas ainda com medo. De repente, do meio da escuridão uma mão bate no meu ombro... não caguei porque não tinha nada pronto, se tivesse era ali mesmo. Quando me viro estava Bigodão rindo, com um revólver na cintura, uma espingarda na mão e uma faca na cinta, a faca nem faz diferença porque quase todo trabalhador rural gosta muito de uma amiguinha dessas na cinta.

Ainda trêmulo do susto eu abri a porta da cozinha e chamei Bigodão para tomar um cafezinho, era um homem muito respeitador, não quis entrar de jeito nenhum mas aceitou beber o café do lado de fora, perguntei de onde ele vinha para estar ali na garagem numa hora daquelas, foi aí minha grande surpresa. Bigodão, homem temido, melhor mira da região, movido por uma vingança... fez cara de choro!
- Que foi Carlos? -perguntei.
-Seu Adigá, eu vou mimbora, num tô mais agüentando isso.

Eu pensei que ele tinha matado alguém ou estava sendo perseguido e insisti na pergunta. Ele me contou que pouco antes da minha chegada tinha atirado e matado uma gata, pegado o corpo do animal e jogado num fogo onde ele queimava o lixo todas as noites, ao voltar para casa escutara miados e ruídos atrás de umas telhas num canto de parede, ao afastá-las viu cinco gatinhos recém-nascidos, e agora, órfãos.

Isso tinha dilacerado seu coração. Fiquei sem reação quando vi aquela figura de homem sem coração se martirizando por causa de gatinhos, tentei disfarçar e já bastante curioso perguntei qual fora a sua atitude quando viu aquilo. Sabem o que ele me disse?

- Seu Adigá... eu num pudia dexá aqueles bixim sem mãe. Peguei tudim num saco e joguei no fogo pra eles morrer tudo junto. Pelu menos num fica ninguém sofrendo.Fiquei estupefato. O que dizer? A única coisa que veio na minha cabeça foi:
- É Carlos. Você é um homem bom. Depois dessa noite, passei a ver Bigodão de uma forma diferente. Bem diferente.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Menores não, crianças isso sim

“É difícil continuar sendo o mesmo
depois de ler Garcia Lorca.”
(Ian Gibson, historiador irlandês)
O jargão assistencial das entidades governamentais consagrou a expressão “menor infrator” para designar as crianças, meninos e meninas que vivem pelas ruas, autores de pequenos furtos ou outras atitudes que a lei penal tipifica como crimes.


As duas palavras, “menor infrator”, na verdade, escondem uma atitude de discriminação e funcionam como a máscara que a sociedade impõe e afivela nos rostos dessas crianças que vivem nas marquises e se alimentam de restos, festejando com crack sua existência vazia.

Ninguém diz que é pai de “um menor”. Não. Todos dizem que são pais de crianças ou até mesmo aborrecentes, quando se referem às travessuras, petulâncias ou à inconformidade, tão natural aos jovens. “Aborrecentes” é, digamos, no máximo, uma adorável e terna reclamação. Nada mais que isso.

Mas, quando se vêem meninos e meninas participando de alguma revolta nessas casas de recolhimento, a palavra oficial os chama de menores infratores ou, como se dizia mais antigamente, meninos de Febem.A sociedade tem uma grande dívida para com esses jovens.

Ela os gera nas favelas e nos guetos de onde saem para as ruas, armados com sua raiva, sua perplexidade, seu medo, sua vontade de dar o troco.

E o troco que eles dão ao salário da miséria chega como nos diz aquela lei da física: a toda uma ação corresponde uma reação, em sentido igual e contrária. É o Talião da miséria, que cobra fome com crime e desamparo com violência.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

"Corre, que o homem tá doido..."

“A chave do sucesso é ter paixão.”
(Monserrat Caballé, soprano espanhola)

Redação da Tribuna do Norte, 20h de uma noite qualquer, de um mês qualquer do segundo semestre de 1980. Os trabalhos prosseguiam normais, ou seja: fervenedo, a um grau da loucura, para fechar o jornal. “Fechar”, em jornalês, não tem o significado comum e rotineiro, por exemplo, de fechar uma loja, ou algo assim.

Fechar, em jornalês, indica até mesmo puerpério, aquele estado em que a mulher pode ser levada a fazer tudo, até mesmo matar o filho recém-nascido. É o parto da notícia. Tudo é pressa, exatidão, presença. Tudo tem que ser preciso, improviso perfeito, tiro de atirador de elite, certeiro e fulminante.

Pois bem, foi num ambiente assim, que, repentinamente, alguém gritou: “Corre, que o homem tá doido!” Nessa época, as redações eram movidas à máquina da escrever e não a computadores. A neurótica sinfonia das máquinas matraqueando inundava a grande sala com um som de que hoje tenho saudades.

Era um parapapá que chegava a ensurdecer. Bem diverso dos computadores de hoje, com suas teclas macias e educadas.

Mas, voltando à cena: o homem, sem camisa, desesperado, suado, louco, gritava alucinadamente. E assim ele invadiu a redação. Eu me virei para Moacir, o diagramador chefe que comigo fechava a primeira página e perguntei arregalado: “O que diabo é isso?”, e o velho Moa, impassível, simplesmente respondeu, dando de ombros: “E eu sei lá?” - e continuou a fechar uma página.

Nesse momento, uma pequena multidão se preparava para invadir o jornal. Coisa de louco, coisa de louco. E atrás do homem, também endiabrado, vinha o vigilante do jornal. Desarmado (a direção não aceitava vigilantes trabalhando armados), o pobre homem muniu-se de um pau que servia para guardar jornais e desceu imediatamente, para enfrentar os invasores e expulsá-los.

“O que diabo é isso?”, gritei, já então no meio da redação. Ninguém sabia responder. Enquanto isso, o fugitivo se escondia na sala dos fotógrafos, melhor dizendo, no laboratório. Não sei exatamente como, o vigilante conseguiu conter os atacantes e eles recuaram, desceram as escadas e se dispersaram na noite da Ribeira.

Todos mais calmos, descobri o motivo do misterioso - e estrepitoso - acontecimento: o fugitivo havia espancado seu pai, nas Rocas. Uma dessas brigas de família, as famosas brigas-de-ponta-de-rua, que havia degenerado num quebra-quebra espetacular dentro de casa. Os vizinhos ouviram o barulho da quebradeira, descobriram que o velho tinha sido espancado e, revoltados, partiram para o linchamento do malsinado filho. Paus e pedras contra ele.

O sujeito correu das Rocas até a Ribeira, rápido como um maldito, buscou esconderijo nas portas da Tribuna e explodiu bem no meio da redação como uma bomba humana enlouquecida.

Depois, controlado o acontecimento, não sei como, pelo vigilante, e sabidas as causas do acontecimento, acompanhei do sujeito até a saída e perguntei: “E agora?”. Ele respondeu, olhando para um lado e para o outro, para ver se ainda restava alguém: “Sei não, mas, outra, pra mais nunca.”

Apertei-lhe a mão e desejei boa sorte. E comigo, mesmo, concordava: “E eu também. Outra, pra mais nunca...”

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Felicidade, estranha felicidade...

"Um Governo só funciona quando
entende aqueles que governa.”
(Autor desconhecido)

(Crônica baseada em fato que presenciei)

A cena poderia ser tomada por bizarra, se, no fundo, não fosse bela. Humanamente bela: em sua pobreza, em sua espontaneidade, em sua exuberância, em sua despreocupação com o amanhã - essa data sem número e sem dia certo e que parece nunca chegar.Mas eles estavam ali, o casal estava ali, vivendo seus momentos intensos em meio ao trânsito do Centro, como se tudo, todos, o mundo, aqueles carros, tivessem sido feitos para testemunhar o seu amor.

Ele, um lavador de carros, maltrapilho, analfabeto, estava feliz, na companhia da mulher, que, claro, para ele, era a mais linda do mundo. Cabelos maltratados, duros como arame, vestido roto de pano ruim, um sorriso perdido na boca sem batom, aquela cinderela sem sapatos sentia-se plena.

E tudo porque ela se sentia amada, desejada, possuída, dona de casa. Uma casa grande, sem paredes, sem teto, sem móveis, sem nada, mas toda dela. A casa dos dois era nada mais nada menos que o Grande Ponto, o Centro da Cidade.Mas, sua propriedade se estendia muito mais e muito acima do que ter aquela casa de nada, que era deles.

Eles eram donos do movimento da Cidade, das buzinadas, das sarjetas, do lixo, dos cães vadios que velavam seus sonhos de sombras e barrigas vazias, sob a proteção ridícula das marquises. Mais que isso, eles eram donos das pessoas. Sim, todos, todos no mundo, existiam para, podendo, passar no Grande Ponto e assim serem vistos pelo casal. Todos eram passageiros, somente eles ficavam.

Eu vi esse casal várias vezes, sua alegria vazia, seus abraços, seus passeios pelas calçadas do Centro, mãos dadas, rindo, felizes com sua própria idéia de felicidade. Sim, porque aquele casal vivia num mundo paralelo e era feliz em relação a si mesmo.Eles não precisavam da nossa felicidade, convencional, distante, arrogante, jamais vista e sempre oculta.

Uma felicidade de segundas intenções. Não sei durante quantos dias vi esse casal ( e isso já faz muitos anos), mas sei que sua alegria era tão forte, tão marcadamente vigorosa, que não precisava de dinheiro para ser sentida.

Depois, eles sumiram, há anos. E às vezes, andando pelas ruas do Centro, tenho a impressão de que, de repente, vai aparecer aquele sujeito mal vestido, acompanhado por uma mulher sem batom. E eu vou olhar para eles e dizer: “Quando fizeram bodas de ouro, eu quero ser o padrinho.”