sábado, 17 de dezembro de 2011

Poema para Bagdá 
(1/30 - Março/2003)

Madrugada em Bagdá

--- Walter Medeiros


Naquelas ruas passaram
Homens, deuses, peregrinos,
Os mais diversos destinos,
Até os que lhe assaltaram.

Naquelas ruas viveram
Sonhos da humanidade;
Lutas pela liberdade,
Que agora inverteram.

Naquelas ruas caíram
As bombas imperiais;
Descabidas, ilegais,
Que o mundo não ouviram.

Naquelas ruas tombaram
As crianças indefesas;
O povo, a fácil presa,
Para os que usurparam.

Naquelas ruas ficaram
Sonhos do meu coração;
Com pranto e emoção,
Que nem as bombas mataram.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Entrevista feita por mim com a ajuda do Professor Deífilo Gurgel, em 1975

"Vou entrando neste ornó"


O que é isso, Sr. Sarnoff?
Que bruxaria é essa?”
(Assis Chateaubriand vendo, nos EUA, experiências de TV em cores, anos 50)

Uma velha empregada dos meus idos de menino costumava me cantar uma canção folclórica, com os seguintes e estranhos versos:

Vou entrando neste ornó
Não venho fazer mal
 

Venho arregatar a meu filho
Que está preso neste ornó...
 

Meu filho é moura, 'stá batizado
Já 'stá na lei da cristiandade... (bis)

E repetia aquela esquisita música: que o filho do personagem era “moura”, “estava batizado” e, santamente, “na lei da cristiandade”. O que queriam dizer aqueles versos? Qual seu sentido? A poética, eminentemente despojada, escovada de qualquer enfeite estético convencional, sequer tinha rimas. Mas, se eu conseguisse cifrar musicalmente essa letra e você soubesse ler pauta musical, veria como havia força, raiz, virtuose telúrica naquela exótica composição. Uma cantilena, uma oração. 

Pois bem, jamais esqueci aquela música, apesar de sequer imaginar qual o seu verdadeiro sentido.

Mas, veja só como são as coisas: certa feita fui, na companhia do folclorista Deífilo Gurgel a um bairro popular, na periferia, para entrevistar Zé Relampo, artista genial que, se vivo ainda for, dá espetáculos maravilhosos com bonecos de joão-redondo. Era o ano de 1975. A entrevista era para o Módulo III, um caderno especial, dominical, que então o Poti, edição dominical do Diário de Natal, publicava.

Antes de chegarmos à casa de Relampo, me vem à memória a velha canção folclórica, coisa do Amazonas ou arredores e vi que ali poderia estar a solução: Deífilo, como estudioso do assunto, poderia ser o decifrador daquele antigo  mistério de um menino que, agora jornalista, já pouco acreditava em lendas e dava passos rápidos para duvidar de tudo.

Cantei a Deífilo a canção - que ele jamais tinha ouvido - ele a achou interessante e, num minuto - para você ver o que é tratar de um assunto com um especialista - ele decifrou o mistério.

Explicou: aquilo era um romance, um tipo de literatura oral. E mais: “ornó”, era uma corruptela de “nau”, as naus portuguesas, que cruzavam os mares, dominando o mundo. “Arregatar”, nada mais era do que “resgatar”, salvar, livrar quem estivesse preso. E “moura”, era nada mais nada menos que “mouro”, o árabe, o infiel, que dominava a Terra Santa.


Daí, o motivo da composição: se o filho do cantor era “moura, mas já estava batizado”, não, realmente não, jamais poderia ficar preso no “ornó”, uma vez que já estava convertido aos princípios da Igreja. Faz sentido, faz sentido... Faz sentido, mas demonstra uma relação de dominação cultural, imposição de poderio injusto. No fundo, a canção revela uma perda de identidade, em função da força vinda de fora e que nos leva sempre a um ornó que não desejamos.

Para mim, foi como um achado, uma alegria, um reencontro e um estímulo a fazer com o meu maior entusiasmo de foca a matéria com Zé Relampo. E ainda hoje, em horas vazias, às vezes quando teclo estes textos noturnamente para enviar ao Coisas de Jornal, pareço ouvir:
Vou entrando neste ornó, não venho fazer mal...


E eu, que continuo mouro, sinto-me ausente da minha própria, simples e esquecida canção vinda dos moradores do Norte. Mas espero, algum dia, ser arregatado deste ornó...

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

De como eu fui preso no meio do catimbó ou o representante das almas

No ano de 1930 morava eu na Pensão Calango, na verdade Hotel Hospedaria S. Francisco das Boas Almas, mas que, dadas as suas modestas acomodações, havia recebido dos seus ocupantes aquele título, bastante elucidativo. Ali se arranchavam estudantes como eu, caixeiros-viajantes, ocasionais visitantes da cidade e, algumas vezes, indivíduos de trato furtivo, devo supor fugitivos e que tais.

Pois bem, dentre esses tipos eis que nos chega um que se apresentou como "alta autoridade em coisas místicas". Era um tipo alto, magro, branco de cabelos avermelhados e crespos. Os olhos muito pretos completavam a figura. Levemente encurvado, era de poucas palavras e recebia pessoas que iam "pedir conselhos". Quando isso acontecia ele fechava a porta do quarto a chave e se ouviam cantorias e loas numa língua estranha. Algumas vezes gritos horrendos, guinchos cortavam os ares e então silêncio total . Pouco depois o consulente saía dizendo "está bem. Agora está tudo bem."

Certa noite cheguei tarde das aulas. O quarto do tal sujeito ficava nos fundos do quintal da hospedaria e para lá me dirigi ao ouvir chorosa ladainha que aos poucos se transformou em um batecum pesado, em meio a grande falariço que virou cantar forte e rápido. Aprorimei-me da janela lateral e, pela fresta, vi a seguinte cena: o tipo estava entonado numa capa preta que lhe chegava aos pés e tinha acendido uma fogueira no meio do quarto. A seu redor uma ciranda de mulheres dançava um samba de doido.
Ao fundo sentava-se um homem que gritava: "Ele vai chegar? Ele vai chegar?" 

E aquele círculo de dementes respondia:"Ele vai chegar! Ele vai chegar!", e continuava a dança. O da capa preta dava voltas rápidas e fortes fazendo o manto abrir-se, o que lhe dava poderosa aparência de taumaturgo do além.Continuemos: para melhor ver a cena, subi ao telhado do quarto, fastei umas telhas e de lá continuei a acompanhar o amalucado espetáculo. 

Para completar, um amigo meu, colega de hospedaria, também fora atraído por aquela loucura, e ao ver-me encarapitado correu para perto de mim e ficou a meu lado. Perguntou: "O que diabo é isso?, e eu espondi: "Só Deus sabe o que diabo é isso. É negócio de doido."

Nesse instante o homem, lá embaixo, insistiu: "Ele vai chegar? Ele vai chegar?", ao que turma toda respondia: "Sim! Ele vai chegar!, e o homem retornava: "E vai trazer o dinheiro? Vai trazer o dinheiro?!"
E todos, no mesmo tom, garantiam: "Vai trazer o dinheiro!"

Aí, aconteceu outra loucura: as mulheres se apoderaram de latas cheias de água e jogavam no sujeito, dizendo: "Toma este banho de salvação! Fica limpo que a fortuna vem!". Encharcado, o pobre começou a dar saltos enormes e se dizia forte e poderoso e berrava: "Agora que ele chegue e traga o meu dinheiro! Estas santas orações vão me fazer ficar rico!"

Então o mestre daquela cantilena apoderou-se de uma chibata e passou a surrar o infeliz que gritou: "O que diabo é isso? Pelo amor de Deus, o que diabo é isso?", enquanto a chibata ligeira o açoitava. O mestre respondeu que aquilo era a "limpeza" da alma. "A surra divina retira o pecado!" e lepo no lombo do coitado, que se desesperava: "Ele vai chegar? Ele vai chegar? Quero que chegue com o meu dinheiro!"

Nesse momento meu amigo se mexeu. Foi o suficiente: as telhas se deslocaram, um caibro cedeu, outro também, um terceiro escorregou e o telhado veio abaixo. Caímos bem no meio da bagaceira. O feiticeiro gritou: "Pronto! Ele chegou e veio logo dois. Veio logo dois, tá vendo?!" Diante disso o homem surrado não se fez de rogado e atirou-se ao meu pescoço perguntando "onde estava o dinheiro". Queria saber se eu "era o representante das almas" e como iria ajudá-lo a sair da falência de sua bodega.

De nada adiantava negar. O homem continuava sua inquirição e partia para cima de mim e do meu amigo. O mestre gargalhava alto e sua ciranda de mulheres loucas dançava sem parar. Nessa luta, a fogueira cresceu e tomou conta do quarto. Todo o Hotel Hospedaria S. Francisco já estava desperto e correu para ver aquela cena de alucinados.  O corre-corre e o falariço tomavam conta de tudo. As chamas se espalhavam e assumiam proporções enormes e o homem lá: "Você é o representante? Se é o representante, onde está o dinheiro?" Cadê o dinheiro que Deus mandou, fila da puta?"

O dono da pensão e os moradores, vendo isso, partiram para cima de mim, do meu amigo e dos desmiolados, gritando: "Bando de catimbozeiros! Bando de catimbozeiros! Arreia o pau no lombo deles! Arreia o pau!" 

E o pau cantou. Uma velhinha, empunhando uma cruz e uma enorme vela, como se já não bastasse tanto fogo, cantava:

"Queremos Deus, homens ingratos
"Ao Pai supremo, ao redentor
"Zombam da fé os insensatos
"Erguem-se em vão contra o Senhor
"Dá nossa fé, oh! Virgem, o brado abençoai
"Queremos Deus que é nosso Rei
"Queremos Deus que é nosso Pai"

Para atiçar ainda mais a assembléia de dementes aconteceu o seguinte: nas imediações morava um padre que sofria de insônia. Quando ouviu toda aquela lamúria, cantilenas, loas e proclamas alucinados, veio ver o que era. Percebendo que o louco se atirava ao meu pescoço correu para me ajudar, gritando: "Em nome de Deus para com isso!" E dizia: "Irmãos, vamos rezar em outro credo. Abaixo o catimbó!" Mas deu tudo errado. As pessoas pensaram que o padre fazia parte do magote e meteram-lhe: "O pade está chamando Deus para perto do Cão!", urravam. No meio da confusão o mestre de todo aquele pandemônio se evadiu, bradando: "Taí! Isso é a paga por terem prejudicado os trabalhos!" E sumiu.

Para encerrar: o comerciante foi dominado e eu posto a ferros. O padre também foi preso. Meu amigo conseguiu escapulir. Logo depois a polícia chegava e fomos parar na delegacia.  Lá, o delegado, já quase umas duas horas da manhã, virou-se para mim e disse:"Bota todo mundo no xilindró. Especialmente esses dois: o padre, que é padre catimbozeiro e esse aí, que é o secretário do Cão".

O "esse aí" era eu, e somente então fui perceber: no meio da desordem a capa preta tinha ficado presa ao meu pesçoco e eu estava vestido de secretário do Cão: dos pés à cabeça. Passei bem uns dez dias preso, só comendo pão e água, até que um tio meu foi me soltar. Quando me viu em estado tão lamentável, disse: "Que vergonha, meu filho, que vergonha para a família. Além da cachaça, agora deu pra catimbó..."

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Minha neta virou um camarão
--- Walter Medeiros
– waltermedeiros@supercabo.com.br

O Teatro Alberto Maranhão lotado, domingo, começo da noite, mostrava “Uma História no Fundo do Mar”. No salão do Palácio de Poseidon, Deus dos Mares, o ballet das Pérolas encanta a todos, principalmente Seida, filha de Poseidon. Ela é uma princesinha que adora dançar com todos os seres do mar: camarões, cavalos-marinhos, estrelas, algas e com suas queridas amigas sereias. Aí aparecem problemas, que repercutem, preocupam, mobilizam, são finalmente resolvidos, e a paz e a tranqüilidade voltam a reinar no fundo do mar.

Belo resultado do trabalho da Escola de Ballet Maria Cardoso que, segundo quem bem conhece, zela pelo trabalho técnico e artístico dos alunos. São aulas práticas e teóricas de ballet clássico, aulas de alongamento, aulas teóricas de anatomia-fisiologia e nutrição, que atendem qualificada clientela. Uma grade de níveis composta por baby-class, iniciação, preparatórios, básicos, intermediário, avançado e ballet adulto, findou toda naquela aventura marinha. 

Era uma espécie de fantasia real, materializando um método humano que preza primordialmente pela amizade e respeito entre todos os participantes da Escola - mães, pais, alunos, professores e funcionários. É o que corre no meio do ballet clássico em Natal, onde a diretora geral Maria Cardoso é considerada um exemplo de profissional a ser seguido, pela sua criatividade e pelo trabalho que desenvolve. 

No meio da fantasia, lá estava eu assistindo embevecido o carinho de todas aquelas bailarinas, que passam, sobem, dançam e envolvem seus corpos de pérola, ouro, água marinha, em cenário tão belo, onde flutuam ao som das notas sentidas e fortes da música clássica. Os braços elegantes contornam o espaço, desenhando círculos e outras formas, as mais belas que alguém já viu. A beleza da dança é por demais potente e deixa extasiados centenas de corações felizes.
Cheio de emoção, fixamos nos olhos belos de Nicole, que olha para a multidão e nem me vê. Mas ali estava vivendo belo momento e o guardando na memória. Era o ápice do espetáculo e, ao seu redor, brilhavam apoteoticamente, como Joia, a
primeira Bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Cláudia Mota e como Guardião do Tesouro o primeiro bailarino solista Edifranc Alves. 

Tudo em meio a pérolas, camarões, cavalos marinhos, peixes, algas, ouriços e estrelas do mar. Nicole é a nossa neta; em meio a tudo isso, ela foi transformada em um belo camarão. A outra neta, Letícia, de um ano e meio, estava na platéia e já queria que aquele espetáculo, formado por mais de sessenta bailarinos, demorasse mais. Ou seja: minha agenda vai ter muito ballet pela frente.