sábado, 16 de janeiro de 2021

 Ave César, os que vão morrer te saúdam

Por Emanoel Barreto

Há os loucos sublimes e maravilhosos, há os poetas; existem os caminhantes  noturnos e os visionários – são alegres ou tristes de uma alegria de magnífica alucinação de fazer e produzir, ou tristes da tristeza de descobrir no Homem a fera de si mesmo, a besta que fere e mata e canta – e  se alegra em ferir e matar e por isso mesmo matou e cantou.

Há também os loucos da loucura irada, da fúria bruta e vil, acoitados nas tocas e nos buracos e esgotos, de onde saem para fazer o mal a quem vier. E não são poucos.

Vivemos no Brasil a insana realidade da morte misturada a festas sujas, instantes da mais sórdida manifestação do que somos como humanidade.

Pior: o País está entregue a tipos da mais baixa estatura moral, insensíveis, cruéis e deploráveis. Para lhes fazer frente, afinal começaram os gritos pelo impeachment de Bolsonaro.

É preciso vencer essa loucura. Há como que um plano de psicopatas, ansiosos pelo descalabro como forma de vida em sociedade, dementes que acreditam em sua própria monstruosidade como manifestação de algum tipo de crença depravada e mórbida.

No ponto mais escuro do abismo temos a realidade de Manaus que chegou a tal ponto em decorrência de fatos que convergiram para chegarmos à situação desesperadora atualmente vivida.

Primeiro, a atitude de fraqueza do governador do Amazonas, Wilson Lima, que se dobrou aos empresários e reabriu o comércio mesmo frente à visível iminência do desastre; depois, a participação da sociedade que acorreu às ruas também querendo  o comércio funcionando, e afinal a  inegável e estúpida omissão do governo federal frente ao agravamento da situação.

Foi o caldo perfeito para que o desplante e o desastre se instalassem. Infelizmente isso é o Brasil. No Rio Grande do Norte parece que estamos no mesmo caminho.

A morte comanda a festança enquanto os bacantes parecem cantar a plenos pulmões o soturno lema dos gladiadores, que na Roma antiga faziam para as elites a festa da morte e diziam: “Ave César, os que vão morrer te saúdam.”

 

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

 O gol do centrefó

Por Emanoel Barreto 

De repente veio a lembrança do Colégio São João. O colégio e seus dois campos de futebol. Anos 60. O colégio era uma lembrança grande, larga como o passado. O primeiro campo, verdadeiro forno com seu chão de areia calcinada, servia para partidas improvisadas. O outro campo, não: gramado, com medidas oficiais, era usado para prélios renhidos, jogadores com posições definidas. Os professores eram os técnicos. 

Era o tempo de Pelé, Vavá, Zagalo, Garrincha, Gilmar, Djalma Santos, Didi, Nilton Santos. O Brasil bicampeão. Goleiros eram chamados de goalkeeper, valendo também guarda-valas, mas também se aceitava dizer arqueiros. 

O menino tinha uma decisão: entrar para o time da classe e disputar o campeonato do colégio. Munido de uma vontade secreta e firme começou a treinar. Depois de muito esforço foi aceito no time. E mais: ia ser o “centrefó”. Quando o professor anunciou sua posição no time, ele quase caiu. Já pensou? Ele ia ser o centrefó. Era o máximo. 
 
A expressão inglesa center for ward, absolutamente impronunciável para aqueles meninos dos anos 60 acabou virando isso mesmo, centrefó. Ele jamais imaginaria que, anos depois, todos estariam chamando centrefó de... centro-avante.

E ele ia ser o centrefó. A posição na equipe, vista como algo quase heróico, o jogador avançado que rompia defesas com seus dribles mágicos, era o sonho afinal realizado. Chegou em casa, contou aos pais, riu e, na rua, com os colegas, gritou: – Eu sou o centrefó! Eu sou o centrefó! Era o sonho calçando chuteiras. Sentiu-se completo. A vitória antecipada. O gol, guardado na gaveta das vontades, afinal iria brotar dos seus pés.

Veio então o jogo. Antes de entrar para a equipe principal ele somente havia jogado no campo de areia. Era o que os meninos chamavam de futebol de poeira. Ali, ninguém tinha posição definida, os pés afundavam e cada chute levantava uma nuvem, daí o nome futebol de poeira. Detalhe: naquele campinho de areia, ele jamais havia marcado o “seu gol.” Mas agora, não: faria muitos gols, e gols de classe, gols marcados num campo de verdade.

Afinal veio o jogo. O juiz apitou. Na tela das lembranças a partida foi lembrada quadro a quadro. Os lances duros, as jogadas corajosas, até mesmo aquela bicicleta que quase vira um gol. Tudo, tudo foi devidamente revisto com os olhar retrasado da saudade. Seu time ganhou. Cinco a um. Mas não deu para ele fazer o “seu gol”. Nem naquele jogo, nem nos outros. Jogava bem, mas não conseguiu o gol.

A vida escorreu sob os seus pés, acabou o ano, acabou-se o tempo de colégio, tudo passou. O colégio São João virou aquela lembrança travada na alma. Um dia tomou uma decisão: aquele gol não podia ser apenas uma vontade com sabor de derrota, um passe malfeito num jogo que dentro dele nunca tinha fim. Então, num final de tarde entrou numa loja de material esportivo, comprou a melhor bola e dirigiu-se ao colégio.

Ali todos estranharam ao ver aquele senhor: paletó e gravata, cabelos grisalhos, entrando colégio adentro, segurando uma bola. Ele escolhera o momento de maior movimentação no colégio. Era final de aula. Centenas de meninos deixavam as salas em meio a gritos de estopim, livres de professores chatíssimos.

Ele cruzou a curiosidade geral como um tiro de meta batido por Bellini em 1962 e dirigiu-se ao campo. Todos o acompanharam. Mais e mais meninos o seguiam. Ele passou pelo campo de futebol de poeira, já seguido por uma multidão e pronto: chegou ao campo gramado.

Dirigiu-se à marca do pênalti e ajeitou a bola. Os meninos ficaram ao redor, deixando a trave ao fundo. Ele estava em meio a um largo círculo de expectativa. Todos perceberam que viviam ali um momento especial e intenso. O rigor na face severa daquele homem, a luz do crepúsculo, a seriedade de cada gesto seu, tudo dava à cena uma composição litúrgica, ritual. Todos respiravam compassadamente; ninguém entendia nada, mas havia respeito em todos os olhares.

Ele afastou-se da bola, esperou um pouco e correu. O chute bateu na bola com força, uma força de raiva alegre e solene. A bola partiu. Como se fosse em câmera lenta cravou o gol no ângulo direito. Balançou a rede e desceu, belíssima, até se esconder lá no fundo.

O estranho saltou e deu um soco no ar. Nesse instante explodiu uma fagulha de emoção feito rastilho de pólvora. Fascinados, todos os meninos gritaram: – Gooooooooool! – e se abraçaram. Em silêncio, tal como chegara, o homem retirou-se. Deixou a bola lá, no cantinho da rede. Ao sair, ouvia aplausos, aplausos antigos, ecos que somente agora chegavam, tão tarde, depois de tanto tempo...

Nunca mais foi visto no Colégio São João; mas agora estava realizado; agora ele era realmente o centrefó.