quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Coisas terríveis para salvar o mundo

De como fazer a destruição para termos um grande futuro

Fui procurado hoje em minha tipografia por excelente pessoa, que pelos modos gentis e gestos refinados logo vi tratar-se de um sapo. Homem viajado, elegante e de pensamentos elevados, disse-me que buscava um editor para grande obra intitulada De Mundis Terrificus e Preclarus. Pedi informações a respeito e informou-me que trata-se de livro magnífico onde se explicará a importância do uso correto das pedras redondas, aliadas às exposições discretas do finis concertus para o bem da humanidade.

Percebi imediatamente que é missão de alta relevância e coloquei-me à disposição. Isto posto, o sapo pediu permissão para convidar à tipografia dois outros grandes sábios. Atendi imediatamente e pouco depois desciam de um tílburi um jovem orogangotango e um velho e digno papagaio, cavalheiros de estirpe e condições.

Informaram que o livro, cujos originais da peça introdutória me foram entregues, é uma larga e profunda reflexão sobre a condição humana. Conversamos longamente e eles se retiraram. Eis o que diz o texto que me foi entregue:

A questão humana é de alta relevância. Assim, torna-se imperioso aprofundarmo-nos em seu estudo, uma vez que, historicamente, está comprovado que temos incrível tendência ao conflito e à nunca solução do conflito e aí está mesmo a essência da nossa condição.
Sendo assim, é preciso dar condições à humanidade para que procure a sua própria destruição.

Para tanto, devemos nos atilar a desenvolver processos autodestrutivos, aliando a isso as intempéries naturais. Acontecidas estas, devemos mobilizar máquinas extraordinárias, enormes, ciclópicas, a fim de ampliar os resultados da força dos elementos.

No texto está também explicado que, por exemplo, devemos aproveitar a destruição da orla de Ponta Negra, promovendo, a partir dali, a construção de grandes buracos em todas as ruas, avenidas e vielas, a fim de que isso se torne obra d'arte grandiosa e apreciada.

Percebi que há nisso grande saber e poderosa filosofia. Construídos os buracos, será preciso criar imediatamente uma empresa que refaça tudo, ou seja: os buracos sejam tapados e depois de tapados sejam novamente refeitos e assim indefinidamente, já que é para isso que os governos foram criados. Claro, notei que tal filosofia é de grande valia.

Em caso de ação de elementos perigosos, como assaltantes e outros do mesmo tipo, será preciso criar linhas de financiamento de armas, a fim de que os malfazejos possam executar com perícia e mestria suas grandes artes de roubar e matar. Mais: os hospitais públicos devem ser fechados ou tornados ainda piores em seu funcionamento, a fim de desestimular as pessoas a não adoecerem. A culpa das doenças são os hospitais, está dito no texto. E assim, eliminando-se a causa, será extinta sua consequência, a doença e os doentes.

O documento fala em muitas e muitas outras cousas extraordinárias, como estimular o analfabetismo e os programas sociais de casas populares, levando-se as pessoas a procurar cavernas e tendas, que são mais baratas. E, sem saber ler e escrever, as pessoas não terão intentos danosos de formular ideias malsinadas, que só trazem o desespero e a desagregação social.

Como vê o leitor, trata-se de obra de grande valia que, disseram-me o sapo, o orogangotango e o papagaio, irá orientar o natalense no sentido de um grande passo para o seu futuro. As bases estão construídas. Agora, resta-nos trabalhar em seu aperfeiçoamento. 

domingo, 19 de janeiro de 2014

O debate sobre as drogas



Neusa, onde 
está você, Neusa?

Vi recentemente vídeo em que uma jovem completamente drogada, experienciando uma espécie de alucinação ou algo que o valha, diz não saber aonde está e procura desesperadamente por uma mulher chamada Neusa. Tem movimentos descontrolados e recebe ajuda de um rapaz para recompor a saia. Esse, aliás, é o único gesto de solidariedade que recebe: no mais, o que se ouve são vozes de rapazes e moças que, sem manifestar qualquer atitude de amparo ou compaixão, ficam, como se diz hoje, zoando a moça.

Ouve-se claramente a voz de uma jovem que pergunta “quem é você guria, quem é você?”, mas não notei, digamos assim, da parte dela, comunhão com o ser humano ali fragilizado. Não ouvi ninguém dizer, por exemplo, “vamos pegar essa menina e levar a um hospital.” Em síntese: se não recebeu violência física, pelo menos até aonde o vídeo mostra, ficou como que sendo jogada de um lado para o outro.

Essa a situação de um drogado. Essa a situação de quem perde o controle sobre si próprio e fica nas mãos de desconhecidos. Fui repórter policial por cerca de onze meses e vi nas delegacias homens presos por uso de drogas. Pessoas largadas ao chão, tremendo, encolhidas. Isso foi em 1975, época em que não havia qualquer movimento pedindo a liberação de drogas. 

Creio que isso não seria uma boa medida. Os discursos de hoje, chamados de anti-proibicionistas, são, tenho certeza, bem intencionados. São pronúncias de intelectuais, pessoas com capacidade crítica. São assertivas bem assentadas teoricamente e têm, não resta dúvida, a intenção de atitude humanista e libertária. 

Mas, quem já tem ou teve um parente ou amigo dominado pelas drogas sabe bem que a realidade é muito diversa do discurso. Na vida de cada casa, na intimidade dos relacionamentos, é possível perceber a devastadora ação das drogas quando levadas às últimas consequências: desde o álcool à cocaína, da maconha ao crack e por aí vai. Nessa convivência afundam o viciado e toda a família. 

Ao longo de meus 39 anos de jornalismo acompanhei vários casos. Pelo menos dois morreram em situação miserável ou quase isso. Tenho plena consciência de que há alguma tendência social favorável à liberação das drogas, ou seja, há um consenso parcial em processo o que indicia claramente uma crise no modelo da proibição.

Sei que o assunto, de forma inescusável, já está em debate no fórum da cotidianidade, no ritmo das ruas, nas festas, no hedonismo que, no fundo, é um direito. A questão também é o fato de que a droga está entranhada ao crime organizado e, parece-me, o simples fato de liberar sua venda não irá inibir a ação dos traficantes. 

Acato o direito às decisões individuais. Espero que a humanidade saiba lidar com os desafios que ela própria criou. Mas tenho medo, tenho muito medo, de ver outros jovens à procura de Neusa. Esse o grande problema: aonde está Neusa.