Dos perigos de fazer uma viagem perimetral de inspeção
Caro leitor,
Devo
dizer-vos que encontro-me hoje no ano de 1789 e estou a serviço de empresa
para a qual trabalho mas cuja finalidade operacional não tenho condições
de explicar qual é, pois nunca a entendi. Percorro algum país em
viagem perimetral de inspeção. Também não sei exatamente o que isso
significa, mas cumpro com meu mister da melhor forma possível: interrogo
pessoas a esmo, pergunto como vai o tempo, inquiro se nasceu algum novo
carneiro, busco informar-me sobre qual a idade de uma formiga, indago
se um peixe pode ser segrado rei, se uma cobra pode prescrever
receituário médico e coisas que tais. Como vedes, coisas jurisconsultas e
altíssimas.
Anoto
tudo e logo em seguida jogo as anotações fora. Em seguida a mim vem um
inspetor que recolhe meus escritos, os lê e os arremessa no mato, e
atrás dele vem outro e faz a mesma coisa e logo após outro, outro e
outro, e isso se repete indefinidamente. Mas, atentai bem, estas foram
as instruções que recebi para que fosse levada e efeito uma eficaz
viagem perimetral de inspeção. Sendo assim, como cumpro com inominável
prazer e desesperada ânsia este fado, creio que estou me saindo muito
bem.
A
carruagem em que me desloco é uma espécie de inferno ambulante, tal o
calor impregnante que me acossa em meio a estrada sacolejante. Já
superamos, eu e os outros infelizes viajores que cumprem comigo este
périplo insano, cada um com seus motivos, chuvas que mais se assemelham
às mais imponentes cachoeiras, ataques de salteadores, perseguição de
matilhas e gritos de pavor de velhas devotas em lugarejos insólitos -
elas emitem guinchos terríveis quando nos veem em nosso lastimável
estado: roupas sujas, cabelos eriçados, botas enlameadas, olhos
injetados, pensando, tais e bondosas criaturas, que somos representantes
do Maldito. Velhos curas nos expulsam apresentando o crucifixo. Como
medida de bom senso fugimos sem parar.
Afinal,
digo-vos, aproximo-me do término de minha viagem e eis que surge o
gerente geral de viagens perimetrais de inspeção e me avisa: "Vais
iniciar imediatamente uma viagem perimetral de inspeção, pois dizem que
nos confins deste país maltas de desocupados, biltres temíveis, répobros
insondáveis, ímpios impudentes e homens mal-faladores, além de néscios
preguiçosos e beócios empedernidos preparam surtida contra a lei e
contra ordem e, destarte, El Rey precisa de dados e números para
preparar as defesas de todos os burgos."
Diante
de tal quadro fugi, pois horrendo medo se apoderou de mim,
inopinadamente, ao sentir que meu trabalho é cousa de louco ou de alguém
a este assemelhado. Embrenhei-me na primeira e mais feroz floresta,
cujas árvores têm arestas e espinhos de mais de um metro de comprimento e
aliei-me ao primeiro magote de ímpios e outros banidos que encontrei.
E, assim, senti-me pleno e lesto: depois desta fuga participarei de
assaltos aos burgos mais solenes e preclaros, ataques a cidades ilustres
e luminosas e jamais, nunca mais, farei novamente uma viagem perimetral
de inspeção.