sábado, 10 de outubro de 2009

Encabulada em dó maior
Emanoel Barreto

Ela chegou. Veio em passos de pantera e de veludo azul.
Atravessou o grande salão e, fazendo isso, a música parou. Atravessou o salão e, fazendo isso, deu-se a descobrir.

Estava ali uma mulher completa, intensa, inteira, farta, doidivanas;
Petulante, sólida, perfeita;
Camarada, amiga, doce solidão a dois;
Feminina, forte, descobridora;
Caminhante, sã, insana primavera;
Distante, pertíssimo, misteriosa, bela;
Felina, feliz, atraente, difícil;
Viajante, indagadora; senhora de respostas, autora de dúvidas.
Um romance inscrito em corpo de mulher.

A festa como que parou, só para vê-la. Dirigiu-se a uma mesa, sentou-se: - Dança? A pergunta havia partido de uma voz masculina em dó maior, grave. - Sim, foi a resposta que ela deu, pondo-se de pé. Com a orquestra o cantor discorria um bolero. Os passos dos casais coleavam em meio ao claro-escuro do salão. Maracas e bongôs pontuavam a música com seu remexido côncavo-convexo.

A voz de dó maior perguntou: - Qual o seu nome? Ela respondeu em surdina: - Encabulada.- Como? - foi a dúvida seguinte, ante a resposta inesperada. - Encabulada - ela disse com um sorriso de meia lua, as costas da mão encostadas na nuca do dó maior.

- Você, encabulada? - o dó maior quis saber, pois, naquela mulher, não havia espaços de silêncio.- Eu não disse que estou encabulada. Eu disse que sou Encabulada. É diferente. Sou diferente de todos e igual a mim mesma. E como não sou resposta, mas proposta, espero sempre as perguntas. As perguntas certas. Daí, porque sou Encabulada. Não vou às pessoas, elas têm que vir até a mim. Dou a impressão de estar retraída, distante do mundo, para que me descubram o caminho. Poucos descobrem... Daí, dou a impressão de estar encabulada. Mas quando alguém me descobre, está com Encabulada. Dá para entender?

O dó maior fez que sim e continuaram a dançar boleros firmes, ajustados, justos, encaixados, mínimas, semínimas, colcheias e acordes. Os violões agudos perfuravam a noite: flores e floretes, enigma de passos.Aí, foi ela quem perguntou: - Seu nome? O dó maior pensou um pouco e respondeu: - Pode me chamar de Colecionador. Sou um colecionador. Um colecionador de situações, as mais inesperadas, estranhas, belas, difíceis, lamentáveis, boas. Situações que às vezes procuro, outras não; um tempo lamento, outro tanto gosto. Como agora, que descobri você, essa mensagem cifrada, num código que ainda desconheço, mas que vou aprender. Ficou encabulada, Encabulada?

Ela voltou com seu sorriso de meia-lua e respondeu: Não. Ela não havia ficado encabulada. Afinal, disse, uma situação se constrói a dois, passo a passo, gesto a gesto, ato a ato, palavra-por-palavra. Até que, como a brisa marinha, se transforme numa lembrança. Mas, isso, já é outra situação...

E, Encabulada e Dó Maior ficaram assim, colecionados de si, pasmos e presos ao bolero que dizia as coisas que todos os boleros dizem. E no depois do tempo, fizeram-se um só, fazendo-se brotar no meio do salão.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O medo do corpo
Emanoel Barreto

Vi, há poucos dias, no Areoporto Augusto Severo, três figuras que chamavam atenção. Três freiras, embuçadas em seus enormes e sufocantes vestuários, mais pareciam três harpias. Do corpo, somente suas faces podiam ser vistas, tão encobertas que estavam por seus mantos.

A religiosidade tem isso: a busca pela anulação do corpo, corpo como forma vergonhosa de o ser humano existir, com suas premências, necessidades e anseios. O corpo é uma culpa. Repudiar o próprio corpo, entendem os que assim pensam, é uma forma de chegar ao divino. Mas o corpo continua lá, vive, pulsa, transmite.
E nenhum véu ou tecido grosso pode impedir que, no íntimo do ser, o corpo continue a ser o maior interesse de quem o teme e o rejeita.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Cavalo de Tróia
Emanoel Barreto

De Tróia virá grande cavalo
que passará por sobre nós
com suas patas de aço.

E o louvaremos com cânticos e guirlandas.
Depois, do cavalo saltarão Eles.
E nos levarão até o último florim.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Foto: vita-passione-amore-emotu.blogspot.com
A estranha procissão de lêmures
Emanoel Barreto

A velha construção era a casa dele. Antiga, e vasta como o passado, o solar era um largo ambiente de muitos quartos, três salas e um primeiro andar com outras tantas acomodações. Ao redor, protegida por alto e austero muro, um gramado malcuidado ainda respirava os ares de quando era uma elegante floração de flores e verde arrodeando toda a ainda imponente construção.

Ali morava, sozinho. Uma vez por mês, realizava, à luz de velas, uma solitária cerimônia. Cercado pelo mobiliário centenário, tendo bem perto da mão um brandy e charutos, recebia uma procissão de lêmures e com eles conversava.

O que eram? Lembranças, reminiscências sofridas, pequenas histórias de si. Chegavam um a um e postavam-se, embuçados em vestes brancas, tristes como o frio, em semicírculo. E o velho barão, o último de sua linhagem, conversava com tudo o que vivera e o que deixara de viver. Todos aqueles espectros representavam, cada um, alegrias, derrotas, desfeitas sofridas, vitórias que impusera.

E assim, ele viveu até seus últimos dias, com aquela família de recordações fugidias. E um dia, quando foi encontrado morto por um empregado que vinha ali mensalmente, tinha na direita um copo de brandy e, no rosto, um sorriso amargo.

Conheci o personagem, há anos. Foi ele que me contou de sua ronda de fantasmas. Depois, foi esquecido e o solar demolido. Somente está sendo lembrado hoje, nesta crônica que fiz, enigmática. Louco? Talvez. Mas, humano, densa e desesperadamente humano.



segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Recebo de Walter Medeiros o texto que abaixo segue:

SE SE CALA O CANTOR

--- Walter Medeiros – walterm.nat@terra.com.br *
Uma música em espanhol chegava pelas ondas do rádio para quem sintonizava a Rádio Havana às 6:00 horas da manhã, naquele tempo em que a censura imposta pelo regime militar proibia tudo, e a cada proibição causava um prejuízo inestimável e irrecuperável ao povo brasileiro. A voz de Mercedes Sosa se juntava às de Juan Baez, Pablo Milanez, Milton Nascimento e Elis Regina, em gritos revolucionários desenhados pelas letras de Violeta Parra, entre elas Gracias a la vida.

Pela manhã, os estudantes repetiam baixinho aquelas músicas, junto com o “Vai levando” de Chico Buarque, “Apenas um rapaz latino-americano” de Belchior e um “Argumento” (Ta legal, eu aceito o argumento / mas não me altere o samba tanto assim) de Paulinho da Viola. E seguiam para a noite aonde, nos bares da vida podiam conversar, mesmo que sob olhares dos agentes da ditadura, gritando pelo garçom que apelidaram de “I me free”, para sentir, pelo menos na imaginação, alguma sensação de liberdade.

Faltava liberdade naqueles bares, naqueles campi e nas ruas, pelas quais circulavam revolucionários em atos clandestinos, na luta por dias melhores na Argentina, no Brasil, na Nicarágua, no Chile, na Espanha, em Portugal, Angola, Moçambique e tantos outros países dominados pelos regimes de exceção. Luta que terminou vitoriosa em todos esses lugares, com a retomada dos processos democráticos a partir de bandeiras que reafirmavam: “O povo unido jamais será vencido”.
Eram momentos de vida ou morte, mas que comportavam versos inesquecíveis na voz de Mercedes Sosa propagando os poemas de Pablo Neruda: “Me gusta cuando calas” e era somente aí que se sentia bem com o silêncio. Não o silêncio imposto pela censura, mas o silêncio do amor. Eram versos daquelas belas páginas de “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, na qual Neruda mostrava um dos maiores gritos da história do homem: “Posso escrever os versos mais tristes esta noite”.

A tristeza veio da truculência, quando Juan Baez foi probida de cantar no Brasil, sob alegação de que sua música era subversiva. Ela que planejava trazer gande prestígio à música brasileira, gravando um disco completo com músicas de Chico Buarque de Holanda. Da mesma forma que nos carnavais brasileiros a censura proibia até ouvirmos a marcha “Bandeira Branca” com Dalva de Oliveira, confundindo-a com a música “Bandeira Branca” de Geraldo Vandré.

Nesta manhã de outubro chega a notícia da morte de Mercedes Sosa. Aquela lutadora que percorreu continentes em nome das mães argentinas e dos povos oprimidos, transformando-se numa cidadã do mundo. Que escreveu belíssimas páginas da música popular, cantando sempre com seu imenso coração e enfeitando o mundo com sua voz forte e poderosa. Com a morte de Mercedes Sosa – como diz a música “Se se cala el cantor” - cala-se um pouco a vida.
*Walter Medeiros é jornalista

domingo, 4 de outubro de 2009


Adiós, Negra
Emanoel Barreto

Mercedes Sosa. Solitária luna,
alma grande de imensidões.
Adios, Negra.
Luz e Sol da América do Sul



Copa do Mundo e Olimpíada: alucinação em dose dupla. Depois, a decepção para um povo que já vive um pesadelo.

Emanoel Barreto