sábado, 18 de fevereiro de 2006

Uma lembrança de Djalma Marinho

“O futebol está tão lento que,
quando a bola sai de uma área
e chega à do adversário, já é noite.”
(Do legendário jogador espanhol Di Stéfano )

O poeta Diógenes da Cunha Lima certa vez escreveu a respeito do deputado Djalma Marinho, a quem descreveu como “o homem que pintava cavalos azuis”. A imagem, plena de força de expressão, resumia de forma magistral a figura de Djalma, ou seja: ele tinha o vigor dos corcéis em seu galope desabrido e, ao mesmo tempo, trazia em si a grandiosidade do infinito, o sonho do horizonte. A descoberta do passo seguinte.

Pois bem: ainda recordo a minha última entrevista dom Djalma, num começo de tarde chuvoso, na casa de Márcio, seu filho, onde hoje é o edifício que leva o nome do deputado. Djalma estava com a mão direita enfaixada. Sua frágil e firme mão, tantas vezes brandida de tribuna da Câmara, em defesa de seus ideais.

Djalma, o mesmo que, citando Calderón de la Barca, enfrentou o poder devastador da ditadura, quando queriam cassar o deputado Márcio Moreira Alves. Disse ele: “Ao Rei tudo, menos a honra.” Seria o achincalhe total, o encurvamento da Casa, o abismo da Desmoralização. Ele disse não e veio o fechamento do Congresso, que quebrou-se mas não sucumbiu.

Sim, mas, voltemos à entrevista. Ele falava de democracia, resistência sem violência, coisas assim e lá para as tantas, sentenciou: “Devemos ser como Atenas e nunca servir a Cartago.” E foi, foi, foi, falando sempre de democracia, convivência de contrários. Atenas, onde nasceu a democracia, seria bem diferente de Cartago, um reino na África, de onde Aníbal partiu com seus elefantes, para combater seus eternos inimigos, os romanos.

Creio que Djalma queria dizer que, em vez de buscar a guerra, o homem deve buscar o auto-conhecimento, a ponderação, o equilíbrio, a serenidade. Creio que era isso.Terminei a entrevista e, tempos depois, morria Djalma. Fui incumbido de cobrir seu sepultamento.

Lembro bem da emoção das palavras do senador Dinarte Mariz, chorando o desaparecimento do suave guerreiro. Uma tarde de chumbo, a noite se estampando como um véu de luto, recobrindo o cemitério. Quem sabe, uma carpideira, como na Grécia.

O tempo passou e uma vez, na TV, vi uma matéria na Câmara dos Deputados. E lá ao fundo o retrato de Djalma, como que dizendo em seu silêncio fotográfico: “Lembrem-se: ao Rei tudo, menos a honra.”

O problema é que, para muitos deputados, honra é uma palavra que não consta do
vocabulário.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

O detetive Perpétuo*

"Deixei de fumar por absoluta
incompetência pulmonar."
(Ex-ministro Mário Henrique Simonsen, antes de morrer de câncer)

Meu velho amigo, o detetive Perpétuo, contou-me um caso ocorrido em Natal no início dos anos 60 quando ele, em silêncio, poderia ter sido promotor, juiz e executor de uma sentença, levando um homem pobre a morrer na cadeia. Um homem que, na verdade, estava agindo em legítima defesa de uma criança.


Foi assim: em 1961, ele estava num velho bar da Ribeira, coisa de sete da noite. O expediente dele na delegacia havia terminado, e Perpétuo tomava um uísque antes de voltar para casa, onde já o esperaria o jantar preparado por Dona Altiva, sua mulher.

Então, uma mulher entra correndo e diz: "Seu Pepeto me ajude." A pobre criatura estava descabelada, tremia, suava e vira nele sua última salvação, porta final do seu desespero. Perpétuo perguntou o que havia e ela relatou depressa, enquanto o puxava pelo braço: "Venha comigo, que meu vizinho, um homem já velho, roubou a minha filha e está com a menina trancada na casa dele."

Entraram na sacolejante viatura e foram até o morro de Mãe Luíza, então uma favela. No escuro havia pouquíssimas lâmpadas nas casas e ruelas da então favela de Mãe Luíza), ele divisou as duas casinhas, afastadas das demais, já no meio do matagal.
"É ali?", quis saber. "É ali", confirmou a voz trêmula da mulher. Perpétuo aproximou-se da casa do raptor. Silêncio completo. Andou a seu redor, em busca de encontrar algum ponto por onde pudesse penetrar na casa. As janelas todas estavam fechadas. Ele rondou uma, duas, três vezes.

Parou e ficou ouvindo: dava para perceber um ruído, um ronco, um regougo, lúgubre som vindo de uma garganta arfante. Supôs que a menina estivesse sendo vítima de alguma violência pelo velho e não pensou mais: atirou-se de cabeça contra a janela do casebre, que cedeu como se fosse feita de papel.

Perpétuo caiu bem no meio da pequena sala de chão batido e deparou-se com uma cena, que ele assim me descreveu: "Acocorada a um canto, a menina chorava. E à sua frente, o velho, ou melhor, o velho enfrentando um homem moço e forte. O velho era um aleijado e, com o apoio da muleta, usando aquela parte onde se apóia a axila, empurrava o homem, pelo pescoço, contra a parede. Mal se sustinha de pé, em confronto desigual, enquanto o outro empunhava uma faca para matá-lo a qualquer momento, se fraquejasse."

E concluiu Perpétuo: "Puxei o revólver, mas fiquei parado, até que o invasor bambeou. Fora sufocado, morreu, caiu e tombou no chão, como um fardo. Na verdade, o que tinha corrido fora o seguinte: o homem havia pegado a menina e, supondo que na casa do velho não tinha ninguém, foi esconder-se lá com ela. Mas Seu Felício, esse o nome do velho, estava na casa e enfrentou o agressor, com grande coragem. Eu me virei para o velho Felício e disse que fosse embora, construísse um barraco em outra favela qualquer e estava tudo bem. O assunto estava esquecido."

O velho sumiu na noite, Perpétuo voltou para casa e jantou em silêncio enquanto Dona Altiva comentava a respeito do grande sucesso do rádio, "O direito de nascer." Ele a olhou e sorriu na noite. Sabia que na favela uma menina dormia em paz.

*As aventuras do detetive Perpétuo são ficcionais.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Silêncio, vou matá-lo agora...

"Rio Grande do Norte,
rio grande da morte,
rio grande sem sorte."
(De um poema de Bosco Lopes in memoriam )

Simplício sempre, sempre fora assim: assíduo, trabalhador, correto, desempenho sem qualquer genialidade, mas eficaz. Tudo na medida. E o reconhecimento pelo seu trabalho era, no máximo, um sorriso de satisfação do chefe, melhor dizendo, do dono da loja. Até que um dia Simplício descobriu: estava com câncer.

“Seu Simplício, vou ser muito sincero”, disse o médico, “o senhor só tem, no máximo, seis meses de vida.” Ele encarou o doutor com seus olhos castanhos, deu uma tragada forte no cigarro sem filtro e somente disse: “Está bem.”

Saiu do consultório e um pensamento aliviado o acudiu: Seu Ascânio, o patrão, não iria lhe falhar naquele momento difícil. Afinal, nunca havia pedido nada e agora era chegado momento. Não disse nada à mulher, esperou passar uma semana, tomou coragem e falou com Ascânio. O homem, de vista baixa estava, de vista baixa ficou, traçando uns rabiscos numa folha de papel.

Simplício, de pé, petrificado, esperava a resposta, como quem espera uma sentença: seria possível que, após sua morte, o patrão providenciasse a Dona Santa, a viúva (o casal não tinha filhos), o pagamento de uma espécie de pensão, já que a Previdência iria pagar a ela uma miséria?

Ascânio esperou um minuto, pensou e disse, enquanto amassava o papel e o jogava no cesto: “Não, Simplício, não. As coisas não vão bem e..”, foi interrompido por Simplício: “Mas seu Ascânio, e esses anos todos, eu aqui, minha fidelidade ao negócio, minha vontade de ajudar... isso não vale nada? Não merece reconhecimento?”

O homem respondeu: “E já foi reconhecido. Você não tinha um salário mensal? Esse foi seu reconhecimento.” Simplício não retrucou e retirou-se, voltando a seus afazeres. Ressentido, trancou-se em sua dor e esperou pela morte. Enquanto isso, tramava uma vingança: sabia que Seu Ascânio era diabético e muito descuidado com a saúde; sabia que ele tinha o costume de guardar cheques em branco e assinados.

Só precisava combinar as duas coisas no momento apropriado, para garantir a sobrevivência de Santa.Sentia que a doença o corroía por dentro e precisava agir rápido. Então, aconteceu: num sábado, foi para casa e pouco depois Ascânio relefonou, pedindo que ele voltasse à loja e ficasse em sua companhia, para revisar umas tabelas de preços. Sentiu que estava ali sua chance e voltou correndo.

Ascânio tomava muito café, fumava muito e estava com as taxas elevadíssimas. Foi suficiente substituir o adoçante por açúcar às quatro da tarde e pouco depois ouvir o baque do corpo caindo. Como ninguém sabia que ele havia voltado, foi ao talonário de cheques, preencheu um com a quantia de 60 milhões de reais. Pôs o cheque no bolso, fechou a loja e saiu quando a noite caía. Na segunda-feira o corpo foi encontrado e todos lamentavam a morte de Ascânio.

Simplício também lamentou o desaparecimento, foi a um cartório onde depositou o cheque, dizendo que o envelope onde este se encontrava deveria ser entregue a Dona Santa, após a sua morte, o que ocorreu quatro meses depois. E foi emocionada que a pobre velhinha recebeu o cheque, que lhe garantiria o resto da vida: “Meu Deus, como meu marido tinha um bom patrão.”

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Um frio de tarde sem fim

"Deus poupou-me do
sentimento do medo."
(Juscelino Kubitscheck)

A mulher subiu à redação trazendo um estranho pedido nos lábios: denunciar uma chacina, um morticínio intenso havido numa remota granja, onde seres vivos haviam se entredevorado até o fim, sem ter outra opção de alimento. Era uma senhora de cerca de 50 anos, mas 50 anos sofridos, cansados, cheios de perplexidade.

Caminhava meio encurvada, um vestido simples sobre o corpo meio balofo, os cabelos grisalhos arrumados de qualquer jeito sobre a cabeça de testa engelhada. Nunca entendi porque ela compareceu ao jornal para me contar aquilo, uma vez que não tinha qualquer relação com os envolvidos no morticínio e o fato já fazia algum tempo de ocorrido.

Mas ela ali estava e precisava ser ouvida. Mas o movimento no jornal era tamanho que eu mal tinha tempo de parar, a fim de dar-lhe atenção. Ela contava uma história aos pedaços, paradas, freios verbais, tudo ditado pelo meu corre-corre, em pique de fechamento, comecinho de noite.

De repente eu me virava e dizia: “Bom, mas continuando...” E ela tentava retomar sua história, até ser interrompida novamente: algum repórter me pedia uma melhor angulação para a matéria que estava por redigir.

E assim o tempo se passava. Até que reuni forças e me retirei para um canto com a mulher. Em resumo, contou-me o seguinte: numa granja, em tal município ( não me lembro o nome do município), alguns irmãos abandonaram tudo e foram embora, sem qualquer explicação. Abandonaram a propriedade, os animais, tudo, ao léu, sem deixar ao menos um caseiro para cuidar.

A ventania passou a ser companheira de portas e janelas, o silêncio apoderou-se de todos os cômodos, o negrume da noite endoidecia até mesmo o mais corajoso dos homens. E aí, aí veio a tragédia que ela queria me contar: na pocilga, esfomeados, os porcos, sem ter o que comer, sem poder fugir, partiram para um cruel, cruento e total ciclo de canibalismo, devorando-se uns aos outros.

Os guinchos dos animais, contou, eram tão terríveis, que as mães das cercanias achavam que algum monstro desalmado estava vindo para pegar seus filhinhos. Ela contou-me essa surrealista história e ficou assim: parada, fixa em meus olhos, como quem espera remissão ou sentença. Jornalisticamente, nada havia a fazer, uma vez que o fato se passara há meses e certamente não restaria mais nada do que se dera.

Mas até hoje me recordo da incrível história e do que pensei, enquanto ela descia as sombrias e estreitas escadarias da Tribuna do Norte, verdadeiros labirintos cretenses, e se perdia para sempre de minha visão: “Senhora, compartilho de seus estranhos sentimentos. O drama solitário da vida se ferindo, me cala no corpo um frio de tarde sem fim.”

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Uma crônica da seca

"Bobagem! É andando
que cachorro acha osso."
(João Guimarães Rosa, em Sagarana)

Eles seguem, calados e tristes, o caminho da solidão. Os campos do silêncio são o mapa de todas as dores do sertanejo. A imensidão sofrida da caatinga seca demarca esse país de pobres do campo, cujas fronteiras têm por limite suas almas feitas de incertezas.

Caminhantes da vida, rumando para o nada, eles têm na fome a companheira constante de dias e noites. O sertanejo, sua mulher, seus filhos, trazem no olhar triste o lamento calado de todos aqueles que já não têm mais palavras. Palavras perdidas, lavoura perdida, pasto morto.

Mãos calejadas contam histórias de saudade da chuva. Chão seco se estirando como um tapete de espinhos.Plantadores, eles hoje colhem lamentos. O inverno é só uma lembrança e ninguém, ninguém, poderá dizer quando a água vai voltar.

Eles bebem o gosto sujo do barro na água cavada do chão embrutecido.Terra, tanta terra e nada para esse povo comer.O sertão é como um abismo plano, onde seu povo plantou os grãos amargos da fome, servidos em mesas pobres e vazias.