sábado, 4 de março de 2006

Natal vista do alto

"Deus não pode
jogar dados."
(Albert Einstein)

A crônica abaixo é do meu livro Crônicas para Natal - as crônicas do Jornal do Dia.

A cidade se espalha e cresce, como paisagem de prédios e céu.
Inteira enquanto parte de si mesma, Natal é música de casas e paredes, torres e paisagem humana e bela.


Ruas ainda calmas, como se a cidade ainda não tivesse a malícia urbana, Natal é porto de sua própria chegada.

E se a amplidão do mundo a torna pequenina, Natal se deixa colher nas manhãs de todo dia. E cresce em silêncio e calma. Ainda.

quarta-feira, 1 de março de 2006

O maior pintor do mundo

O jornalista não tem amigos ou inimigos.”
(James Reston, jornalista americano)

O repórter-fotográfico Paulo Saulo costumava chegar à redação do Diário de Natal, inícios dos anos 70, sempre com novidades, falando alto, gesticulando muito. Uma vez, e isso já contei, veio com a história de um sujeito que fazia esculturas em vidro, a partir de velhas lâmpadas fluorescentes. Resultado: fui com ele fazer a matéria, o quarto onde o cara trabalhava quase explode com um bujão de gás (as esculturas eram feitas com vidro incandescente) e, no fim, ele confessou que sequer havia colocado filme na máquina.

Pois agora, veja só essa: uma tarde, coisa de duas e meia, ele entrou novamente feito um louco, redação adentro. Nesse tempo, a redação do Diário era onde hoje fica o parque gráfico. Mas, então , trabalhava-se assim mesmo: birôs metidos entre grandes cilindros de papéis, as rotativas ao fundo. Às segundas-feiras, meio da tarde, elas começavam a funcionar endiabradas, imprimindo a edição especial, que saía coisa de cinco e meia.

A rotativa imprimindo uma edição vespertina e nós preparando a edição do dia seguinte. Era um barulho enlouquecedor. Mas era bom, era muito bom.

Sim, mas, o que eu ia dizendo? Sim: ele entrou feito um louco pela redação e berrou que trazia em sua companhia ninguém menos que “o maior pintor do mundo”. Com isso, parou todo mundo, claro. Quem seria o maior pintor do mundo? Miguel Ângelo certamente ficaria no rastro; Boticelli a mesma coisa; Picasso nem se fala; Da Vince, hummm...; Salvador Dali, pra quê?

E então apresentou-se o maior pintor do mundo: ninguém menos que... um desconhecido... Isso mesmo: um ilustre desconhecido, mas catalogado por Paulo Saulo como o maior. E sabe por que o homem era o maior...? Pelo fato simples de que o sujeito era um incrível miniaturista. Ou seja: era o maior porque pintava o menor.

Veja só que loucura: ele pintava em cabeças de alfinetes. Utilizando-se de uma técnica preciosíssima, cuidadosíssimo, pacientíssimo, ele pegava um fio de pincel, também finíssimo e, toque a toque, reproduzia, por exemplo, a Última Ceia, numa cabeça de alfinete. Para pintar, tanto como para ver o resultado do trabalho, servia-se de uma poderosa lupa. Olhando por ela, dava para você ver as figurinhas: Jesus ao centro, os apóstolos, a grande mesa, tudo em cores, forte, incrível.

Havia outras obras, mas já não me lembro quais. Mas, como havia uma dificuldade intransponível (ninguém conseguiria fotografar as miniaturas) a matéria, acabou não sendo feita e assim o maior-pintor-do-mundo acabou passando pela redação do DN e de lá voltando para o seu mais completo e ínfimo anonimato.

Hoje, olhando bem, creio que Saulo tinha uma certa razão: a pequenez daquelas imagens, fruto de um grande trabalho, talvez valesse àquele homem o título de ser o maior... Havia ali um estranho desvelamento, um dedicação insana, personalíssima, humana, incompreendida e incompreensível: por que ele não se dedicava a pintar em tamanho convencional?

Por acaso não sabia que aquilo jamais lhe renderia dinheiro? Havia arte naquilo? Havia, admitamos que havia. Afinal, aquele pobre artista dedicava-se à imensa tarefa de ser ele mesmo. Mesmo que isso não valesse um centavo e, do mundo, ganhasse apenas o elogio de um fotógrafo que o proclamou como o maior pintor do mundo.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Donos de nada

"Os presidentes passam, a imprensa fica."
(Sylvino de Godoy Neto, presidente da Associação Nacional de Jornais.)

A partir de hoje, estarei publicando trechos do meu livro "Crônicas para Natal - as crônicas do Jornal do Dia".

São visões, entendimentos, momentos, captados de Natal, seus momentos, seu povo, suas belezas e misérias, grandezas e limitações. A crônica abaixo volta-se para as favelas de Natal. Favela enquanto instante social grafado na geografia dos dramas da minha cidade. Seus moradores são, como diz o título, "Donos de nada".

É uma crônica curta, como curtos e pobres são os dias dos que têm o nada como propriedade e estilo de vida. Vejamos:

Diagrama da pobreza, descaminho dos donos de nada, a favela é o rumo perdido, o norte desorientado.

Alagada de problemas, passada de dores, a favela é o universo dos que vivem em vão. O povo tem a fome tatuada na boca.

E se apresenta como alguém que perdeu a própria sorte.

Favela. Ali, são todos passageiros. Dormem nas nuvens da incerteza e se alimentam de todas as dores do mundo.