Caros Amigos,A curta e afinal trágica vida da menina Isabella é exemplo gritante, emocionalmente ensurdecedor, de como é frágil a existência humana, especialmente quando se trata de um ser indefeso e esplendorosamente inocente. Não quero questionar quem foi ou foram os criminosos. Isso será apurado pela polícia e depois as coisas de jornal vão noticiar.Quero apenas expressar e compartilhar perplexidade, estranhamento e luto pela forma cruel, bárbara e perversamente requintada como foi morta. Que tipo de mente produziu tão deplorável brutalidade? É meia noite, quando redijo esta nota. A humanidade vem perpetrando, ao longo de séculos de horror, seus atos de martírio, trucidamento, dor; imposições de iniqüidades inscritas em códigos sangrentos e gestos de malignidade tão grande que superam o imaginário humano.A grande noite do mal, que habita o coração dos homens inclementes, é eterna como o tempo em situação estática: ela, essa noite de brumas e de trevas, não "existe": ela, simplesmente, é. E, naquele apartamento, naquele microcosmo onde se deu a tragédia, o derramamento daquele sangue inocente e frágil, é prova de que a rudeza da alma dos degenerados, somente se contenta quando ceva seus instintos sobre a singeleza do belo. Com toda a certeza, a respeito da menina Isabella, podemos dizer, à nossa sociedade neurótica e moralmente gelatinosa: eis aqui o cordeiro imolado.Emanoel BarretoFoto: reprodução do álbum de família
Caros Amigos,A Folha Online está com uma enquete em que procura saber qual o melhor programa de jornalismo-deboche. Trata-se, evidentemente, de um paradoxo, senão uma espécie de equívoco mal-intencionado. No mínimo. Como pode ser bom jornalismo aquele que se dedica ao deboche, ao achicalhe, a um certo tipo de humilhação grotesca, burlesca, cujo único objetivo é expor em situações ridículas, em rede nacional de TV, figuras públicas? São elencados pelo jornal os programas "CQC" "Pânico na TV" "Casseta e Planeta", além da possibilidade "Nenhum dos anteriores". Esses programas, que em nada contribuem para o jornalismo em sentido estrito, não passam de grotesquerias arranjadas. Num deles, por acaso, vi uma "reportagem" com o ministro Gilberto Gil, que comparecera ao casamento de uma filha, Morena Marina. Tentou-se de todas as formas envolvê-lo com perguntas tolas, grosseiras, inúteis. Calmo, com um olhar fulminante, Gil limitou-se a encarar seus detratores por alguns instantes. Notava-se perfeitamente o sentimento de alguém que se sente ofendido publicamente, uma pessoa que, por ser midiática, deveria, na ótica do programa, ter a obrigação de participar da farsesca representação.
Ele entrou calado e saiu mudo. A péssima qualidade da programação de TV aberta, que vem privilegiando de forma contumaz a estética do grotesco, abriu largos espaços temporais e tais produções, voltadas todas para o senso comum, o espectador sendo incentivado a agir como populacho, saco vazio a ser preenchido com esse tipo de lixo. O Brasil já tem problemas demais. Não seria o caso de abrir-se um programa para os grandes cantores como Gil e Cia., em vez de dar larga às vozes fanhas que formam um coral de abusados?Emanoel Barreto
Caros Amigos,Não sou dos que acreditam que uma imagem diz mais que mil palavras. A angulação, o uso de lentes especiais, o desfoque, enfim, técnicas de posicionamento e edição, podem performatizar uma foto de tal maneira que sua publicação venha a ser interpretada de forma totalmente diversa do acontecimento que a gerou. A foto acima, entretanto, se encaixa perfeitamente na afirmativa generalizante de que a imagem fala mais que a palavra pronunciada ou redigida. Aí, cabe bem essa afirmativa do senso comum. Trata-se, inequivocamente, de um flagrante monstruoso da fome na África negra, abandonada e explorada pelos países centrais. A imagem é um dado alarmente, pelo poder de síntese e argumentação imagética. É um grito e um protesto. Uma acusação à humanidade enquanto suposta instância ética coletiva; humanidade que se desetizou e se distanciou de sua essência de humanização e compaixão. Seria mesmo a denúncia da calamitosa situação dos povos africanos de um modo geral, não fora um problema: o fotógrafo, Kevin Carter, que ganhou o Pulitzer de fotografia em 1994, esperou friamente que o abutre se aproximasse da criança faminta, nas terras áridas do Sudão, para captar o momento. Depois, partiu e deixou a criança à própria sorte. O menino estava a, apenas, um quilômetro de um campo de atendimento a famintos, mantido pelas Nações Unidas.Movido pelo objetivo de obter um grande flagrante, esqueceu que, antes de ser jornalista, ele, o fotógrafo, era um ser humano. Faltou-lhe a compaixão. Sua ação aética embasou-se unicamente na captação do instante preciso para a obtenção da foto. Com isso, aliou-se à grande indiferença aos deserdados, aos invisíveis que sofrem e caminham todos os dias em avenidas, ruas, becos, lama e territórios tórridos. A indiferença, que se tornou sinônimo de insensibilidade e inumanidade, rege os destinos do mundo e dos que buscamapenas o lucro, o individualismo, o bem estar privativo e doce das bonanças e privilégios. Do menino, não se sabe o que aconteceu, mas é fácil imaginar. De Carter, pode-se informar: suicidou-se três meses após ter feito a foto, sucumbindo a profunda depressão. Assim caminha a humanidade.Emanoel Barreto
Caros Amigos,O poeta e jornalista Walter Medeiros, amigo de velhas datas, enviou este belo "O cais", que trago a vocês.Abraços, Emanoel BarretoO cais
Walter Medeiros
Carregado de sonhos, o navio
Singra, leve, a barra potiguar;
E em seu branco silêncio secular
Atraca sob as bênçãos desse rio.
O Forte é a eterna testemunha
De tudo que a história aqui faz,
Aliado com o mais belo cais
Canguleiro sem qualquer alcunha.
E os encontros se sucedem, felizes,
Uns chegando, outros indo seu destino
Pelas águas do formoso Potengi;
Corações de amor e cicatrizes,
Qualquer adulto parece um menino,
Cá, olhando o navio a seguir.
Caros Amigos,Foi triste, foi feio,foi sórdido demais.Foi um tempo longo,gelado, cruel.Inumado, indecente,brutal, lamacento.Foi triste, foi feio,foi dor, foi tormento.Foram facas longas,sangrentas, ferozes.A morte a cavalopisou sobre a Vida.E gritos contidospercorreram prisões.Lamentos seladossurgiam de corpos.Despedaçados corposem tantos porões.Foi triste, foi feio,insano terror.Instantes, instintosestavam ali.Carrascos escurostramavam nas trevas.E faziam vítimas,caladas, morrer.Quanto horror.Quanta desonra. Carrascos armados; amados, não.A Pátria não quis aqueles filhos.Abortos pardacentos.E a história guardou seus nomesnos escaminhosmais sujosdo esquecimento.Emanoel BarretoFoto: O jornalista Vladimir Herzog, morto nas dependências do Doi-Codi