"O presidente Geisel é um safado!"
A
Fundação da Coojornat, Cooperativa dos Jornalistas de Natal-Coojornat, aconteceu dia 1º de outubro de 1977. Para os jovens que a haviam criado - com o incentivo do cartunista Henfil, então morando em Natal -, era uma conquista. Uma fresta na luta contra a ditadura. Dermi Azevedo era o presidente, Arlindo de Melo Freire vice, e eu secretário.
Dias depois uma desagradável surpresa: uma desagradável surpresa pelo menos para mim. Veja só: nós havíamos alugado uma casa na Rua São Tomé, Cidade Alta, em frente ao Senac. Ali seria a sede da Coojornat. Num sábado, poucas semanas após a fundação, faríamos uma espécie de inauguração festiva, um congraçamento. Cheguei por lá mais ou menos às três da tarde; da rua ouvi música. Som muito alto. Estranhei, porque não tínhamos contratado qualquer serviço de som, muito menos com aquela potência toda.
Dias depois uma desagradável surpresa: uma desagradável surpresa pelo menos para mim. Veja só: nós havíamos alugado uma casa na Rua São Tomé, Cidade Alta, em frente ao Senac. Ali seria a sede da Coojornat. Num sábado, poucas semanas após a fundação, faríamos uma espécie de inauguração festiva, um congraçamento. Cheguei por lá mais ou menos às três da tarde; da rua ouvi música. Som muito alto. Estranhei, porque não tínhamos contratado qualquer serviço de som, muito menos com aquela potência toda.
Parei
o carro a uns 20 metros da Cooperativa, pensando: "Quem diabo contratou
esse som?", e continuei andando. Quando cheguei em frente ao Senac,
descobri: a música vinha de lá mesmo, do Senac, que promovia alguma festividade.
Superada a pequena dúvida entrei na sede da Coojornat e fiquei por lá,
conversando com um e com outro. Nisso, entram dois sujeitos que se
dirigiram a mim e se "identificaram": um era "jornalista", o outro "bancário".
Estranhei a visita por um motivo simples: o que um bancário teria de interesse numa cooperativa de jornalistas? E o "bancário" era o que mais perguntava. Expliquei que eu era o secretário da Cooperativa e falei do projeto como um todo. Então, o que se dizia jornalista quis saber se eu tinha o estatuto da Coojornat. Respondi que sim, mas o documento estava em minha casa. Rápido, ele perguntou: "Posso passar lá, para ver os estatutos?", eu respondi que sim, dei o endereço e marquei para que ele fosse à noite me procurar.
Os tipos agradeceram
e foram embora. Minutos depois chega Dermi Azevedo e eu lhe conto o caso,
já sentindo que boa coisa aquela visita não fora . Dermi disse: "Barreto,
você ficou doido? Isso é o SNI, Barreto."
Respondi:
"Dermi, eu sei, rapaz. Mas, quem não deve não teme. Os caras vão lá em
casa lá pelas sete da noite.Vamos ver no que vai dar."
E
Dermi: "Então, tome cuidado". E cuidado foi o que não deixei de tomar.
Avisei a um cunhado que morava vizinho e mim. À minha mulher, grávida
de nossa segunda filha alertei que iríamos receber um mal elemento.
Feito isso começou a espera. Meu cunhado ficou na sala da casa dele
aguardando para intervir se fosse preciso, enquanto minha mulher estava
trancada num quarto.
Devo
dizer: não sei se a pouca idade - eu tinha 26 anos - ou a convicção de
que nada fazíamos de errado, mas o fato é que a palavra medo sequer me passou pela
cabeça. Havia, claro, a certeza de que alguém muito mal intencionado
viria, mas o enfrentamento não me causou qualquer abalo. Estava
precavido, intimidado não.
Pouco
depois das sete o sujeito chegou. Subiu os degraus da entrada da minha casa e eu o recebi. "Boa
noite, boa noite. Vamos sentar", foi o diálogo inicial. O elemento
sentou-se a meu lado e aí começou um ridículo interrogatório travestido
de conversa. O treinamento do agente, um reles espião de baixíssima
categoria, era básico. Limitava-se fazer perguntas que tentavam induzir-me a
dar respostas de contestação à ditadura, como se fosse ele um
jornalista insatisfeito com o regime, em confidência com um colega.
Exemplo: "A Cooperativa trabalha para quem?
Resposta:
"Somos uma entidade, uma cooperativa de mão-de-obra intelectual.
Prestaremos serviços de assessoria de imprensa e teremos um jornal
próprio."
"Vão trabalhar também para o governo?"
Ao
que eu disse: "Se formos contratados, por exemplo, por uma Secretaria
de Estado para fazer assessoria de imprensa ou um jornal, um house
organ, sim."
E ele: "Mas, aí, vocês vão perder a independência."
Eu
disse: "A finalidade da cooperativa não se resume ao jornal próprio.
Queremos ampliar o espaço de trabalho da categoria, entende? E saiba que
isso não vai interferir em nossa independência."
E
a conversa seguiu nesse tom. Eu sabia que tinha de dar respostas
exatamente opostas ao que ele esperava de mim. Ou seja: se concordasse
com tudo o que ele dissesse contra o governo daria ao agente munição para
fazer relatório dizendo que a Coojornat era mesmo um célula comunista
perigosíssima. E nesse conto de vigário eu não iria cair. Então, dava
respostas as mais cândidas possíveis.
Percebendo
que a tática investigativa tosca não estava dando certo - a abordagem
pura e simples da atuação da Cooperativa -, ele partiu para o ataque
direto: começou a falar mal do ditador Ernesto Geisel. Para o
investigador, era a última cartada. O agora ou nunca. Fechei-me em
retranca e em nenhum momento concordei com o que ele dizia. Afinal o
homem desfechou um golpe fendente: "Esse presidente é um safado."
Não
sei de onde tirei um argumento inesperado, mas sei que que desarmou o
sujeito: "Acho que não. Pelo que soube, ele já foi secretário da
Segurança no Rio Grande do Norte - e disse lá um ano qualquer - e, nessa
época, um rapaz foi preso sob acusação de ser comunista. Depois,
descobriram que o cara não era comunista coisa nenhuma e ele, Geisel,
foi pessoalmente libertar o prisioneiro."
Mesmo
assim o investigador não se deu por vencido: Disse: "É, mas tem uns
assessores escrotos..." O "assessor escroto", para o agente, era o
ministro de Minas e Energia, Shigeaki Ueki que, se dizia, pensava em
privatizar a Petrobras. O investigador disse isso com todas da letras:
"Ele quer entregar a Petrobras." Aí eu comecei a ficar irritado com o
nível sórdido da investigação e fui claro com o tipo: "Colega, você tem
aí algum documento que prove que você é jornalista? Como você sabe em
nossa profissão tem muito picareta e dessa gente não gosto."
Ele
respondeu: "Claro". E escandiu a palavra: "Claaaaaaaaaaaaaaaaaaaro!" E então, na
sequência da resposta, cometeu o erro que o desmascarou por completo. Disse: "É
bom você me pedir o documento, amigo. Em nossa profissão tem muita infiltração. Nunca se sabe, né?"
Explicando:
picareta, em jornalismo, é aquele cara que vive de expedientes, ganha
propinas, faz louvações, essas coisas. Infiltração, algo bem diferente.
Infiltrado dizia-se de pessoa de esquerda que atuava em qualquer ambiente visando
difundir a ideologia socialista.
Em seguida ele, pelo excesso de documentos que apresentou, provou o
que não era. Puxou do bolso uns dez documentos que o diziam jornalista:
desde uma fajuta carteira de sindicato até uma autorização para cobrir
visita presidencial à Paraíba, estado de onde se dizia originário.
Mostrou também carteira de radialista, noticiarista de não-sei-de-onde,
repórter de jornal-fulano-de-tal; isso, aquilo, aquilo outro.
Pronto: para mim, estava desmontada a farsa. Mas ele insistia: "Você me disse que tem os estatutos da cooperativa, não foi?
Eu
disse: "Foi." E completei: "Por sinal, é idêntico ao da Coojornal, do
Rio Grande do Sul, com pequeníssimas modificações, relativas à realidade
local."
Qual não foi minha surpresa quando ele disse: "Ah, mas se é assim, não quero."
"O quê? Não quer?", perguntei, já começando a me exaltar. "Não quer, por quê?"
Ele respondeu: "Porque os estatutos da Coojornal nós - veja bem - nós já temos..."
Eu
disse: "Mas eu insisto."
Saí um instante da sala, e voltei com o calhamaço na mão.
"Pronto", eu disse. E continuei: "Está tudo aqui. O amigo veio buscar, o amigo vai levar."
E quase atirei a papelada em cima dele. Acho que, naquele instante, o agente viu que tinha perdido o seu tempo: não iria levar nenhum relatório espetacular a seus maiores, nem jactar-se de haver descoberto um terrível complô comunista em Natal.
Saí um instante da sala, e voltei com o calhamaço na mão.
"Pronto", eu disse. E continuei: "Está tudo aqui. O amigo veio buscar, o amigo vai levar."
E quase atirei a papelada em cima dele. Acho que, naquele instante, o agente viu que tinha perdido o seu tempo: não iria levar nenhum relatório espetacular a seus maiores, nem jactar-se de haver descoberto um terrível complô comunista em Natal.
Eu
entreguei os papéis e fiquei de pé; grosseiramente de pé. O sujeito, sentado e perplexo. Afinal levantou-se, pôs o documento debaixo do braço e pediu desculpas pelo
tempo que me havia tomado. Tomou o caminho da porta.
Já ia descendo as escadas para se perder na escuridão, quando eu disse: "Noite dessas o amigo volta. Dessa vez, vai ser melhor: vou lhe servir um cafezinho..."
Já ia descendo as escadas para se perder na escuridão, quando eu disse: "Noite dessas o amigo volta. Dessa vez, vai ser melhor: vou lhe servir um cafezinho..."