segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Demencial, grandioso, ele fazia discursos para ninguém. Novo capítulo de uma história das ruas




A Ribeira e seus loucos

Trago agora outros personagens da Ribeira. Além da louca que falava na imaginária amiga Helenita havia outra: negra e muda, cabelos crespíssimos e curtos, ela caminhava pelo bairro, perdida de si. Balbuciava coisas incompreensíveis, comia restos e dormia pelas calçadas.
http://prataepixel.blogspot.com.br/2008_12_01_archive.html

Ela e outros personagens habitavam o velho bairro e sumiram com a passagem do tempo. Quem sabe morreram e hoje são fantasmas à procura do seu tempo. 

Além da muda havia um outro tipo estranho que construiu para si um amontoado de tábuas, um labirinto de restos de construções, que somente há muito custo se equilibrava em pé. Era ali, imediações da Tribuna do Norte, vizinha ao prédio da Agência Dumbo de Publicidade que funcionava aquela estranha notre dame. 

E aquele aparato desesperado servia também de morada àquele apóstolo bizarro; mas, acima de tudo, era o púlpito de onde fazia insólitas  pregações, longuíssimos discursos defendendo não sei se um deus ou alguma causa maravilhosa e absurda.
Não imagino a quem se dirigia; talvez ao mundo todo a advertir desgraças e administrar conselhos e crenças. Muitas vezes o vi: a voz alerta e os braços em gestos largos, muitas mesuras representando seu teatro trágico e fantástico. Eu parava e ficava a ouvir. Depois seguia para o jornal entusiasmado com o que não compreendera.
Mas a Ribeira tinha grande fauna. Veja só: havia também um cego que andava depressa. Mantinha um braço estirado, encostava-o às paredes frontais das construções: edifícios, quiosques e biroscas; caminhava firme e isso dava rumo e trajeto a seu labirinto escuro.

Havia também um outro, uma espécie de desocupado caminhante que a todo custo tentava vender às pessoas revistas velhíssimas. 

Talvez a nos chamar a viver permanentemente o passado  retratado naquelas páginas e a nos dizer: "Leiam, os males que estão aí não valem mais nada. Já passaram, perderam a validade. Venham rir dos males que passaram." 

E aqui eu complemento: do mesmo que os males velhos valem muito pouco as coisas que hoje vivemos e que nos apavoram.


PS: Sobre a Ribeira afinal registro: é um bairro de sombras onde a saudade anda vestida de farrapos.


ZOORÓSCOPO


VAGALUME - É o zoosigno dos poetas e outros sublimes sem-juízo. Anda para lá e para cá, e sua pobre luz não é suficiente para acender nas almas duras algum sentimento. Mas seguem. E vivem plenamente sua loucura raspando de faíscas breves o peso da noite.


domingo, 25 de janeiro de 2015

Belíssima reflexão sobre o momento fotográfico: um presente que me envia o amigo Pedro Jales





A foto como instante, irrepetível ato

Por Pedro Jales

Emanoel Barreto: "Sépalas"
A fotografia lida com o instante. É o momento escrito em luzes, cores e, sombras. Ela capta o instante, o fugaz, logo, seu objeto estético é o tempo. A combinação  de luz, sombra e formas capturam uma fatia, única, da tessitura do tempo.

Ao compararmos os  objetos da escultura e da arquitetura,  a teoria nos  ensina que a primeira lida com  o volume, enquanto na segunda o objeto é o espaço. Levando a comparação para a pintura versus fotografia, percebe-se que o pitoresco não é o objeto estético da fotografia;  a fotografia pode até agenciar a apreensão do pitoresco dispondo-a para a pintura, mas só de passagem.

Na fotografia o trabalho, a manipulação sobre o  objeto se dá numa margem muito estreita, ferindo o limite do escopo da pintura, mesmo que seja uma pintura expressa em  pixels. 

Logo, não existe “criação”, ou melhor, o processo completo entre a inspiração, a apreensão do objeto, e a consecução, é instantâneo, estampando a emoção diretamente do nível subjetivo. O lapso entre a percepção e a captura é crítico, pois uma foto muito estudada invade o objeto estético do retratista, do escopo da pintura, portanto. Quanto mais se demora estudando luzes, ângulos e enquadramentos, mais  se invade o âmbito da pintura. Logo, quanto menos interferência técnica, quanto mais automática a câmara, quando mais instantânea a foto, mais pura a obra. No limite, a qualidade técnica fica a cargo dos técnicos que constroem a câmara.

Dizer que a manipulação digital matou a fotografia, me parece um equívoco: a manipulação digital expandiu as fronteiras da pintura, do trabalho com cores continuando e ampliando a inspiração, do laborar, do desbastar e polir, do construir experiencial sobre o objeto estético. Criou novos métodos e técnicas. Porém, as técnicas construtivas da fotografia digital, a tecnologia tornada acessível, também ampliaram, e ainda vem muito por aí, enormemente as possibilidades da fotografia. Vide por exemplo, as fantásticas nova fotografias esportivas, que reproduzem instantes muito mais curtos, antes inimagináveis, ou dificílimos de se captar.

A fotografia como linguagem estética, é impressionista. Quando deixa de sê-lo, passa a ser pintura. É de fora para dentro, projetando uma disposição para o estético, uma entrega, uma permanente atenção ao mundo e ao tempo, com seu fluir e sua tessitura,  enquanto objeto estético. A experiência estética é subconsciente; não há a interpretação criativa, não  há necessidade do experienciar emotivo para produzir a obra. É o “olhar fotográfico”.

A experiência se desperta num nível profundo, e se projeta no objeto fotografado. Ela dribla e escamoteia a emoção vivenciada, observável, pois o momento produz uma semente de emoção, própria do tempo, das condições temporárias locais, que transcende o conjunto emocional diretor do  comportamento e das sensações. 

A fotografia da bailarina não é a dança. A fotografia da expressão do ator não é a sua emoção. A fotografia precisa de um quadro famoso não é a pintura. A fotografia do animal em movimento não é o movimento do animal, e assim, cada objeto estético se abriga em sua própria arte, restando à fotografia apenas o instante.