sábado, 12 de abril de 2014

"Yolanda" com Chico Buarque e Pablo Milanez

PROCOL HARUM- A WHITER SHADE OF PALE- LEGENDADO EM PORTUGUÊS BR




O texto que nunca existiu ou minhas mãos estão em greve


Caro leitor,

Querida leitora,

Estou tentando escrever alguma coisa que mereça ser minimamente digna de ser lida, mas estou sem ideias. Sinceramente, não sei se é mesmo falta de ideias ou algo inesperadamente pior, fantasticamente pior. Explico: estou vivendo grave problema: minhas mãos – já pensou? – me comunicaram que, nesses quarenta anos de jornalismo, já trabalharam demais para mim. Dizem e reafirmam que sou “péssimo patrão”, jamais as remunerei ou agradeci, nunca as elogiei, jamais as tratei como parte de mim, nunca as acolhi como pessoa igual a mim. Nunca lhes tive carinho ou emoção. E até advertiram:


– Barreto, a continuar assim, faremos greve. Greve de fome.

– Como assim? Vocês farão greve de fome? – fiquei perplexo. 


Mais que isso: tornei-me nervoso, hesitante, incerto, indeciso, indefinido, inseguro, irresoluto, titubeante, vacilante. Temi estar ficando louco. Esperei um pouco e as mãos me responderam, para meu completo espanto:


– Sim – e dedilhavam o teclado por iniciativa própria – faremos greve de fome; fome de palavras – e explicaram: – Como sabemos que você é faminto, faminto de palavras, não escreveremos mais nada, entende? Objetivamente: a fome será sua, não nossa. Esta a nossa sutil e vigorosa vingança. 


E arremataram: – Veja só, Barreto: temos conosco todas as palavras do mundo; elas estão embutidas, imbricadas, enclausuradas em nossos dedos; somos donas dos termos, dos ditos, dos sentimentos impressos. Somos senhoras de tudo o que as palavras representam e sentem. Não teremos de você compaixão alguma. Sabemos que você depende da escrita para viver e, mais que isso, para so-bre-vi-ver. Por implicação: como você precisa de palavras, mas está sujeito e refém de nós para tê-las – e não as terá –, ficará por nós preso, detido, encarcerado e sem rumo. Sentiu o peso, brother?


Devo dizer que “senti o peso”. Tremi. Vi que estou numa situação muito difícil. 


Sem rodeios, e para que você entenda minha situação, informo: até o momento não consegui escrever nada, pelo fato simples de que minhas mãos estão em greve. 


“Greve de advertência”, disseram, para em seguida ameaçar: – Ou você começa a nos tratar como uma pessoa igual a você ou vamos parar definitivamente. Isto feito, arroste; enfrente as consequências: vai ficar para sempre mudo, vazio de palavras escritas... Aguenta essa barra, velho? Suporta ficar sem escrever? 


Fiquei sem palavras – e aqui não há trocadilho...


 Veio então a última ameaça, na verdade uma sentença de culpa, um mandado de prisão: – E, se você não mudar por completo, faremos conluio com sua boca e ela também se calará. Saiba: sua boca também tem muitas reclamações, viu? Ela já disse que topa entrar na greve. Se isso acontecer, você estará definitivamente mudo, calado de textos e de voz; já pensou? você ficará silente em todos os sentidos. Textos vocais e escritos perdidos para sempre. Terá sentimentos mas não meios de os expressar. Olhares, mas não instrumentos para os viver; sonhos, reais e irreais, que não poderão chegar à vista do mundo. Prepare-se, maldito: seu fim vai ser triste.

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As mãos disseram isto e se foram em meio a escuridão intensa. Fiquei pasmo, calado e sem inspiração. Sinto-me perdido e louco. Vou tomar um Bourbon. Se der, vou para Nova Orleans. Lá tem blues e o som pesado de que gosto. Mas, aí, me ocorreu uma coisa horrível: e se meus ouvidos também entrarem em greve? Não quero nem pensar....

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Epílogo 


Caro leitor, amiga leitora,

Estou desesperado. Peço, se possível, que alguém me ajude. Alguém me indique um caminho, uma porta, uma vereda, uma senda para escapar à tal armadilha das minhas mãos. Estou tentando escrever, mas nada sai; as mãos não obedecem. Estou silencioso de texto, calado de mim. Esta a minha terrível realidade: minhas mãos estão em greve. 


Redijo, mas a elocução textual, a expressão impressa, a frase em letras, a locução desesperada na lauda luminosa do computador, a oração escrita, a sentença forte, o termo mágico, o verbo eloquente, o vocábulo alado estão distantes; mui remotos de mim. Nada sai, por mais que eu tente. As letras aparecem na tela do computador, mas logo se esfumaçam em espetáculo até bonito de se ver. 


Perceba o meu drama e meu desespero: uma a uma as frases desaparecem na névoa que se forma na virtualidade do monitor; uma a uma se trans-formam em bruma, em suave vertigem. É a greve das mãos. 


Ajude-me, leitor ou leitora. Desculpe-me por, de alguma forma, os ter enganado. Estou tentando sinceramente escrever, mas nada consegui. Mas, o que mais me enerva, envergonha e acabrunha, é que você ficou até aqui, teve a paciência de me acompanhar mas acabou desperdiçando o seu tempo com um texto inexistente escrito em palavras invisíveis. 


E tudo porque minhas mãos estão em greve. 
Desculpe, eu não sabia que elas iam fazer isso comigo.

De qualquer forma, muito obrigado. 

E perdão por fazer você ler um texto que nunca existiu. 
 a) Emanoel Barreto 


quinta-feira, 10 de abril de 2014

Segredos da floresta africana

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Meu aeroplano, a África e os ensinamentos de um soba
Emanoel Barreto

Não sei se já lhe contei, mas tenho um aeroplano. Um biplano que uso costumeiramente para atavessar o Atlântico e chegar à costa da África. Lá, com habilidade, um pouco de esforço, muitas vezes medo e um laivo de irresponsabilidade aterrisso na praia - apesar de ser aquele tipo de pista totalmente irrecomendável às pessoas de bom senso o que não é exatamente o meu caso. Tanto, que faço tais e insólitas proezas: desnecessárias porém essenciais ao meu paradoxal pensamento aeronáutico.  

Outras tantas cruzo longitudinalmente o continente e atiro-me à costa mais oriental, chegando muitas vezes à Somália, país perigosíssimo, uma vez que ali praticamente inexiste essa instituição a que chamamos Estado. E piratas e quejandos podem ser encontrados pelas praias aprestados a atacar navios. Não poucas vezes tive que arremeter ante a iminência de ataques de tais turbas.

Mas, quando fixo-me em praias ocidentais daquele belo e sofrido continente tenho especial preferência por Angola ou Senegal. 


 E fico ali; e nas praias podem surgir elefantes desgarrados, leões que lutam inutilmente contra as ondas e horrendos crocodilos marinhos em visão terrível e chocantemente bela. Tais crocodilos, creio, deveriam estar na Austrália, mas, não sei porquê, aparecem por terras d'África quando estou por lá.

Certa vez me apareceu um soba na costa sul de Angola e me contou segredos, segredos que somente podem ser encontrados nos mistérios das florestas. Era noite. E após saber de todas e tão grandes sabenças, das quais a rigor não entendi nada, atirei-me a voar na noite: à luz do mar e ao som do céu profundo.

domingo, 6 de abril de 2014

Não deixe de ler: os trúculos estão chegando

Cuidado. Úculos, búculos e trúculos vão dominar o Rio Grande do Norte


Há dias esteve em minha tipografia um homem que, pretextando estar a serviço de “altos assuntos”, anunciou-se como sendo “um búculo”. Como não tenho a mais mínima compreensão do que seja tal e tão louca pessoa, situação, cargo ou patranha, calei-me e esperei que ele mo explicasse o que seria isso, ou seja: quem seria ele, qual o seu propósito, intenção e meta. Pródigo em palavras foi logo dizendo:

– Existem, meu caro tipógrafo, na sociedade brasileira os mais variados tipos de homens em termos de depravação política.

– Sei disso.

– Sendo assim – prosseguiu – da mesma forma como há corruptos lamentáveis, safados de todas as espécies, ladrões engalanados, honrados salafrários e magníficos farsantes, surgimos nós, os que somos búculos.
A isso seguiu-se a explicação: – Cientista cujo nome prefiro não declinar nos está criando em laboratório mediante rigoroso processo de reprogramação mental. E dividiu-nos em três classes ascensionais: úculos, búculos e trúculos. Primeiro o indivíduo é preparado para ser úculo. Depois, após elevados estudos, chega à condição de búculo. Afinal, o eleito para tal e excelsa obra passa à situação de trúculo, grau máximo. Todavia, já na condição inicial pode o úculo começar a trabalhar. Detalhe: somos recrutados das classes mais sofridas, vimos dos trabalhos pesados, dos salários indignos. Sendo assim, ao nos tornarmos sequencialmente úculos, búculos e trúculos deixamos a classe trabalhadora e passamos a instância superior, privilegiada, cheia de mimos e pertences. Destarte, gostamos de tal felicidade e da desigualdade que a gerou.

Indaguei: – E porque o senhor está me contando tudo isso? Para mim tudo continua sem sentido. Qual a “excelsa obra” a que se dedicam? O que são úculos, búculos e trúculos?

A resposta deixou-me ainda mais atônito: – Não sei. Sei apenas que ficamos privilegiados.

– O senhor não sabe? O senhor é um búculo e não sabe o que é ser búculo?
– Não sei, e isso é o mais importante. O que importa realmente é o agir sem saber para quê, entende? Agir segundo o que se nos foi dito em laboratório e pronto.

– E o que lhes está sendo dito?

– Simples – foi a resposta: – Devemos ingressar na vida pública, ganhar mandatos e dar vazão a todos os instintos humanos de lucro, desvio de dinheiros públicos; vamos alimentar-nos de propinas sórdidas, viver de concussões secretas e prevaricações desleais: tudo o que não tínhamos com nosso miserável soldo de trabalhadores. Vamos agir segundo o sistema sem compreender sua essência de sistema, vamos viver apenas aderindo e gozando. Reproduzir o que já existe e viver segundo suas regras.

– Mas, senhor – enfatizei – isso já há muito tempo. No Brasil e no Rio Grande do Norte essa raça, literalmente, abunda. Os senhores estão sendo preparados apenas para uma coisa: um elevado grau de corrupção. Os senhores são, no máximo, uma nova categoria semântica da expressão ladroagem pública, só isso.

– Ohhhhhhhhh!!!! – ele manifestou-se decepcionado. – Quer dizer que sou apenas um corrupto? Um reles corrupto? Não tornei-me um ser superior, uma elite? Deixei de ser trabalhador para ser um tipo de bandido?
– Sim, meu caro. Objetivamente, o senhor é um ladrão.

– Não – ele contestou – não sou um ladrão pois ainda não tenho um mandato, como me foi determinado nas experiências laboratoriais. Mas, espere-me e o senhor verá a minha competência. Sua ignorância me enoja.
A seguir, retirou-se.

Hoje, para minha surpresa, abri o jornal e vi a manchete:

“Honorável trúculo é candidato a governador do Estado”

Imediatamente compreendi: o sujeito, em menos de 24 horas, havia completado seu processo ascensional e passara à condição máxima de corrupto mediante científica e exata programação. E então, neste exato momento, ao redigir este coranto percebi, para desespero meu: estamos perdidos: os corruptos serão produzidos em série. E pior: seguindo os princípios da alta ciência, agirão com ainda maior desenvoltura, perspicácia, pragmática e acurácia.

Comecei a tremer. Fiz então o seguinte: estou encaixotando meus amados tipos, minhas caixas altas e baixas e preparo-me para fugir. Para onde, não sei. Mas farei o seguinte: vou dirigir-me ao porto e esperar o próximo vapor. Embarcarei naquele que for para a mais distante ilha, uma ilha ainda não inscrita em qualquer mapa; aquela será o meu lugar.

De lá mandarei a este infeliz Estado meus textos e minha palavra escrita. Na esperança de que tais ditos tenham aqui alguma eficácia de contestação e repúdio aos costumes locais.   

Ao mesmo tempo desejarei que, em tal lugar, na ilha distante para onde irei, os autóctones – bárbaros e bondosos – não cheguem ao estágio de civilização e venham, um dia, a se tornar úculos, búculos e trúculos. É isso.
Quanto a você que fica, leitor, desejo boa sorte. Reze. E assim que puder embarque e fuja também.
Um forte abraço,
Emanoel Barreto