sábado, 18 de março de 2006

O baobá: árvore com lâminas no azul

"Fi-lo, porque qui-lo."
(Ex-presidente Jânio Quadros, sobre sua renúncia)

A Crônica a seguir é parte do meu livro "Crônicas para Natal, as crônicas do Jornal do Dia", publicado no ano de 2000.

Nodoso tronco da vida. Árvore.
Baobá imenso, enorme elefante vegetal.

Semente gerada no seio fecundo e primitivo da África,
desabrochou aqui, nas terras de um sol festeiro e nordestino.

Grande baobá, gigante de fibras vivas, fizeste,
como fez o Potengi, a alegria dos olhos de Saint Exupery,
o escritor que pintava nuvens com palavras.

E hoje, imóvel como a eternidade, contemplas o ocaso do século 20.
Mas teus galhos continuarão como lâminas no azul.

quinta-feira, 16 de março de 2006

Quando a terra é boa

“E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...”
(Mário Sá Carneiro - 1890/1916 - Portugal)

Quem olha o sertão sofrido, seco, cansado, faminto, se não conhecer o Nordeste, chega até a pensar que aqui é o país da tristeza. Mas quem conhece o sertão chovido, terra molhada e boa, sabe bem das belezas que lá existem.

Sertão é tradição, é luta, é poesia que brota do chão que traz em si um celeiro de fartura.Em junho, nas festas de São João, comemora-se com alegria inteira a dádiva do milho, a memória popular revivendo antigos rituais de vida amiga da terra.

Quando a terra é boa, o chão é semente ritual. E terra boa é terra molhada da chuva de Deus.Mas hoje a realidade é um drama, fenômeno natural atiçado pela displicência política, pela falta de decisão, pela modorra dos eternos gabinetes que olham e calam, sem olhar para o povo que clama trabalho e pão.

O sertão é uma grande espera, dizia Guimarães Rosa. Mas esperar é atitude de sábio, de quem encontra em si as forças necessárias e urgentes para enfrentar incertezas e medos. E vencer; mesmo que a vitória demore, como as chuvas que tardam, mas um dia chegam. Vão chegar.

quarta-feira, 15 de março de 2006

Ze de Nuca: não foi cachaça, mas ficou tonto...

"Seu doutor uma esmola
a um homem que é são,
ou lhe mata de vergonha,
ou vicia o cidadão."
(Luís Gonzaga)

De Edgar Manso recebo este causo. Edgar gosta da vida no sertão e está preparando um livro relatando coisas e casos do povo nordestino. O autor preserva o modo e o jeito de falar, bem típico do nordestino do campo. Leia abaixo:

Toda cidade pequena tem suas peculiaridades, e as do nosso interior nordestino não poderiam ser diferentes. Jacaraú, no nosso vizinho estado da Paraíba é uma dessas pequenas cidades. Pequena mas muito agradável, faz divisa com o Rio Grande do Norte, ali pelas entranhas do nosso agreste, quase colado com Pedro Velho, cidade do balneário mais animado dos domingos.

Zé de Nuca é um amigo que tenho por aquelas bandas, amigo de verdade. Cabra bom, trabalhador, honesto e muito inteligente, não teve estudo mas é formado na universidade da vida com menção honrosa.

Zé é um homem de seus 56 anos mas tem uma energia de menino, poucas pessoas tem a disposição dele para trabalhar, e se depois do trabalho aparecerem umas garrafinhas de cachaça paraibana escoltadas por galinhas caipiras abatidas na hora, aí é que o serviço do homem rende.

Um pouco afastado de Jacaraú existe um lugarejo denominado de Jerimum. São seis ou dez casinhas fincadas no meio dos canaviais, um verdadeiro oásis para quem vem trafegando naquelas tortuosas estradas carroçais e seco para bebericar e jogar conversa fora.

Nesse verdadeiro paraíso funciona o bar de dona Francisca, o estabelecimento serve a melhor galinha caipira que já comi até hoje, sempre regada a uma boa cachacinha. O local é totalmente familiar, dona Francisca cozinha, suas duas filhas servem e seu marido, o internacionalmente conhecido "Quincão Buceteiro", providencia o abate das galinhas, a retirada dos cocos e a segurança do ambiente, afinal de contas o elemento usa na cinta uma peixeira meio graúda que se não matar da furada mata do "tétuno", como ele gosta de dizer.

Como não poderia deixar de ser, onde tem ingredientes como matutos e cachaça, tem marmota também. Zé de Nuca até o ano de 2004 nunca tinha ido a médico, tinha uma saúde de Leão, quando era indagado sobre quando faria o famigerado "exame de prósta" ele se alvoroçava e dizia: "No meu furico ninguém chafurda!"

Em março de 2004 houve um bolão de vaquejada no vizinho município de Rio Tinto, Zé não corre mais, mas ainda gosta muito de participar da fuzarca. Foi nessa noite que aconteceu uma das estórias mais engraçadas que já ouvi.

O bolão começou ao meio-dia do sábado e nessa hora lá estavam Zé e seus dois filhos mais velhos que praticam esse esporte nordestino, logo acharam a cabroada e começaram o tirinete de cana, conversa vai conversa vem e chega a noite, hora dos vaqueiros bons entrarem na pista, todos se arrumam perto da cerca para ver melhor, a poeira cobre no centro, é queda de boi, queda de vaqueiro cambão, boi na faixa e a ritumba entra pela madrugada.

Lá pelas três da madrugada Zé de Nuca se afasta para dar uma mijada do outro lado da cerca, quando termina e pensa em voltar para junto de seus amigos ele se sente mal, ele não faz a menor idéia do que seja pois havia parado de beber logo cedo portanto não era efeito da cana.

Então, se sentindo muito mal ele resolveu dar o recado aos filhos que já ia para casa, quando foi passar por entre os arames da cerca não conseguiu se manter equilibrado e passou na maior dificuldade. Zé estava sendo acometido por um AVC, nunca passaria isto pela sua cabeça, e ele continuou na sua intenção de se despedir.

Quando ele chegou próximo da turma seu filho se virou e achou ele com a cara estranha: - O que é pai? Zé tentou responder e não conseguiu, só fez balbuciar e não disse nada, aí ele resolver fazer um gesto indicando que já ia embora e partiu.

Graças a Deus Zé de Nuca conseguiu dirigir até em casa e sua mulher solicitou rapidamente uma ambulância para levá-lo à João Pessoa e deu tudo bem. Mas o melhor da estória ainda está por vir: quando o filho de Zé voltou pro meio da turma logo perguntaram onde estava Zé de Nuca, aí seu filho respondeu: - Hômi, pai é foda. Tava tão embriagado que num conseguia nem falar, gemia, gemia e num dizia nada. Só sei que se virou e saiu as queda pra pegar o carro. Ô hõmi trabaioso!!!.

terça-feira, 14 de março de 2006

Dia da Poesia: em parte, vira luz...

“É que eu sonho esvair-me em vícios de marfim...”
(Sá Carneiro, em Certa vez na noite ruivamente)

Hoje é o Dia da Poesia. Não quer dizer que é o dia do verso, aquele conjunto de palavras que, ao fim da leitura de uma quadra, por exemplo, resulta numa rima. Não, poesia é muito mais. Porque poesia é sentimento, é interioridade vivida internamente e exposta pela palavra.

É panorama humano íntimo que deságua no gesto escrito, o poema. Creio que seja até mesmo mais que isso: poesia é ato de viver, poesia é ato de coragem. Coragem de ser dissidente, coragem de se expor ante aqueles que pensam que tudo sabem, que tudo podem e por isso tudo pedem.

Poesia é atitude voltada para a reflexão. Portanto, está parada dentro de você, muito embora seja, dentro dela mesma, um redemoinho. Poesia é feita a passos de ferro.

Poesia é caminho que não vai a lugar algum,
uma vez que o poeta
busca sempre a incerteza jamais o porto.

Sem o porto, ele parte;
em parte fica;
em partes se desfaz;
em partes se constrói;
em parte vira luz.
Depois, tudo escurece.
Só isso.
E, como nos interrogatórios,
nada mais digo,
nem nada mais me seja perguntado.

Antes porém, de retirar-me, resolvi, para marcar a data, transcrever Mar Português, de Fernando Pessoa. Sá Carneiro, citado acima, é também poeta português.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o Céu.

Do jornalista e poeta Walter Medeiros recebo "Espetacular", poema que segue abaixo:

No rumo Oeste
Nuvens douradas
Viam prata
Pelo Céu azul.

E o fim da tarde
Mostra uma dimensão
Espetacular
No horizonte.

Desenho único
Do infinito
De um momento
Angelical.

Pela estrada
O automóvel
Quer alcançar
O que se esvai.

E o desenho
Troca de estrela
Contente com
O contorno lunar.

Noite que cobre
Com manto puro
Relvas e rios
Pelo sertão.

Campos de amor,
Muita labuta,
Sossego, luta,
Um esplendor.





segunda-feira, 13 de março de 2006

Prenderam o ladrão e a polícia sumiu

"Bandido é bandido;
polícia é polícia."
(Do assaltante Lúcio Flávio)

Houve, em Natal um homicídio cometido, como se diz no jargão jurídico, com “requintes de perversidade.” Um velho vigia da Galeria Olímpio, no Alecrim, fora atacado, dominado e, indefeso, morto por um rapaz louro, que logo ficou conhecido como Galego da Galeria.

Ao que me lembro, o velho, amarrado com arame, foi golpeado com um bastão ou algo assim, até a morte. A falta de detalhes deve-se ao fato de que, quando ocorreu o crime, eu ainda não estava em jornal e portanto valho-me das informações que via na imprensa e, claro, não dá para recordar com exatidão.

Pois bem, o Galego acabou fugindo e a polícia começou a perseguição. Nesse meio tempo eu comecei a trabalhar no Diário de Natal. Nessa época o Diário saía às segundas, à tarde. Assim, aos domingos nós trabalhávamos, preparando a edição do dia seguinte.
Eu chegava à redação às sete da noite e pegava o material coletado pelo repórter Pepe dos Santos. Eu reescrevia as anotações dele. “Traduzia Pepe”, como se dizia na redação, uma vez que ele trazia, em texto literalmente bruto, um emaranhado de informações que precisavam receber ordenamento.

Ele apurava muita coisa, era extremamente detalhista, mas, na hora de redigir... Pois bem, eu estava, em finais de 74, na hoje extinta editoria de polícia. Tinha coisa de uns dois meses de jornal.

Num domingo, pela manhã, fui fazer a cobertura nas delegacias. Por algum motivo Pepe estava sem condições de trabalhar. Saí na Kombi do jornal dando uma geral nas delegacias. Fatos de importância viravam notícia, coisas menores (queda-de-bebo como se dizia) iam para a coluna Ronda, transformados em notinhas de cinco ou seis linhas.

Pois bem, logo que chegamos a uma delegacia, na Ribeira, estava um sujeito à porta, um alcagüete, contando detalhes de uma perseguição: ninguém menos que o Galego da Galeria tinha sido preso. E o tipo se gabava de, mesmo sem ser policial, ter participado da caçada. Somente não alardeou ter atirado também.

“A puliça cercou o cara e mandou bala”, contava.” Era cada rajada que até fazia medo”, continuou, e disse: “ Quando a rajada cobria, ele dava cada pulo que era isso”, e levantava o braço coisa de meio metro, para mostrar como o bandido saltava, encolhendo as pernas para não ser atingido.

Ele retardava a informação mais importante, a prisão do bandido, para valorizar o seu relato e prender a atenção de alguns homens que estavam à sua volta. Eu não conhecia nenhum deles e, entre irritado e ansioso pelo desfecho da conversa comprida, perguntei: “E afinal, ele foi preso?”

Fora, fora preso, confirmou o homem. “E está aí, nessa delegacia. Pode entrar”, disse, como se fosse a maior autoridade policial do Estado. Eu não pensei duas vezes, meti o pé e fui entrando. Era o máximo. O Galego da Gelaria, o bandido mais perigoso do Estado, preso, e eu ali. Inexperiente, sem fontes na polícia, sem sequer uma identidade profissional que me garantisse, fui entrando.

Nessa época o grande repórter policial de Natal era mesmo o velho Pepe dos Santos, hoje um dinossauro e aposentado (outro dia falo mais dessa grande figura). Ele sim, tinha fontes e conhecia todo o submundo do crime.

Fui entrando, fui entrando e não é que não havia um só guarda, delegado soldado, nada, ninguém, para tomar conta do bandido? A delegacia estava completamente desguarnecida. Entrei e lá estava, numa cela, sozinho, sentado no chão, ninguém menos que o Galego.

Olhei e vi, numa parede, sustentado por dois pedaços de ferro cravados lado a lado, um grosso pedaço de pau, certamente para espancar os presos. Lembrai-vos de que nessa época ainda vivíamos a ditadura militar e direitos humanos eram o mesmo que nada.

O criminoso contou como havia fugido, como havia resistido à prisão, como fizera de tudo para não ser preso.

Aí, quando eu falava com o Galego... Bom, nesse momento, imagine só, entra o investigador relapso, aquele que havia deixado a cadeia sem guarda. Ele entrou e foi logo dizendo “Ei! Que negócio é esse?”

Parei. Pensei: “E agora?”

Agora? Agora era enfrentar o homem.
Ato contínuo, respondi: “Nada, não é nada, estou só falando com o Galego.”
E ele: “Pode não.”
E arremeteu: “E daqui não sai ninguém. Não sai nem o senhor e nem esse seu papel na mão”, referia-se às minhas anotações. As coisas tinham se complicado como eu jamais havia suposto.

O policial caminhou decidido em direção a mim. Eu estava sentado no chão, cara a cara com o bandido. Levantei-me dei espaço ao policial, que seguiu como quem fosse direto para a cela. Recuei, de forma a que ele ficasse de costas para as grades do xadrez.

Foi aí onde ele errou. Ele aceitou meu jogo e ficou de costas para o Galego, cruzei as mãos às costas protegendo o papel e fui saindo, pé ante pé, passo a passo, caminhando de costas, os olhos fixos no investigador. O homem, nunca compreendi porquê, parou e ficou olhando minha escapada, até que cheguei à porta da delegacia e ao sol do domingo. Respirei fundo e corri para a Kombi. Eu tinha uma grande notícia e o policial burro amargava uma derrota íntima frente a um foca sem fontes.