quarta-feira, 28 de junho de 2023

 

               A louca falava só, e dizia:

“Helenita, Helenita, calaboca Helenita...”

 Por Emanoel Barreto

Havia na rodoviária velha da Ribeira uma pobre louca que falava sozinha. Falava com seres invisíveis, pessoas que habitavam seu mundo, seu único, inacessível e paralelo mundo. Eu a observava, mas nunca consegui saber seu nome, enquanto, à noite, às vezes altas horas da noite, depois do expediente no jornal, esperava o ônibus para ir para casa.

Sozinha, sentada em um banco, cercada de pacotes mal-arrumados, falava, falava muito, gesticulava, discutia, irritava-se, reclamava, pedia, e, creio, era até atendida pelos seus amigos invisíveis. Sim, pois, de vez em quando, se abria em sorrisos da mais esmerada simplicidade. Certamente agradecia o que havia pedido.

E eu ali, lendo algum jornal, mas com um olho naquela cena. A estranha, inesperada personagem, em pleno devaneio de vida, esquecida ao mundo, entretida em si mesma, pobre imagem de uma vida aparentemente em vão. Eu disse aparentemente em vão. Quem sabe...

E vinha o frio da noite, aquela brisa da Ribeira, brisa fugitiva do Potengi, trazendo em seu corpo de nada o cheiro do mar, mar e vida, maresia, mar-Ribeira. Passavam vultos escusos, caminheiros da noite, uma ou outra radiopatrulha, vagabundos sonolentos, bêbados equilibristas. E eu um pouco de tudo isso.


E ela falando, sozinha. Falando, falando, coitada: feliz. Calada para o mundo, alerta para si. E uma de suas amigas mais amigas, íntima, conciliatória e cúmplice era uma certa Helenita. 

Sim, Helenita. Helenita, a invisível, a impalpável, mas, viva; viva sim, para a louca, presente em sua presença.

E ela dizia: “Se acalma, Helenita. Deixa de coisa, mulher. Deixa de dizer besteira... Helenitaaaaaa....” E, gesto brusco de mão morena, dava um tapão no ombro intangível da mulher. E ria, ria, gargalhava quando a outra parecia revidar, ali, na penumbra encardida da rodoviária velha. Ali, naquele ponto de encontro das gentes noturnas.

Depois de muito tempo de espera lá vinha o ônibus que eu esperava: pesadão, cansado, velho, luzes fracas, salão de luz mortiça, passageiros tombando de sono, cabeças balouçantes, corpos vivos pendentes de cansaço. Eu entrava no sacolejo do veículo lerdo e lá me ia, deixando para trás Helenita e a louca.

Às vezes meu instinto de repórter me chama a voltar à Ribeira para ver se ainda as encontro: Helenita e a louca. Helenita eu já conheço. Sei que é estabanada, brincalhona, faceira, gosta de falar besteira não é mesmo? 

Mas, se Helenita eu já conheço, nada soube da louca. E hoje, fosse possível voltar, gostaria de saber o que ela teria a dizer sobre o mundo de agora, muito mais estranho, ameaçador, cheio de ódio e feras humanas. Suspeito, sim, suspeito, que ela ia preferir o mundo de Helenita...

terça-feira, 27 de junho de 2023

 Feitiçaria no Beco da Mucura

Por Emanoel Barreto

Todos os meninos da rua onde eu morava recebiam das mães este conselho: “Não chegue nem perto do Beco da Mucura.” E nada mais se dizia a respeito do motivo da ordem, que nos chegava envolta em brumas e mistérios. Era como se nos avisassem que naquele local morava o perigo, que é amigo do medo, que é irmão gêmeo da tragédia e da dor.

Um menino me disse uma vez que um seu colega havia se metido a ir ao beco e jamais havia voltado. Até fora visto uma vez depois de muito tempo, mas já não era mais o mesmo: tinha cara de cachorro e havia atacado um senhor que ia passando.

E todos nós, unidos pelo medo, nunca nos atrevíamos a ir ao beco. Até que um dia uma velha, de aspecto de bruxa e muito feia, vestida em farrapos e encurvada, chamou-me a atenção. Num repente, resolvi segui-la. “Será que mora no Beco da Mucura?” – morava.   

Ela segurava um saco feito de tecido grosseiro. Dentro dele uma coisa viva se agitava de forma intensa e sem parar. Imaginei que seria o filhote de um monstro, quem sabe um pequeno lobisomem.

E contra todos os conselhos, o bom senso e até mesmo o temor que me invadia segui a velha. Ela caminhava entre a multidão das calçadas, e eu atrás. Afinal chegamos ao beco. Tinha aspecto sombrio, era estreito, comprido e as casas pareciam se apoiar umas nas outras para não cair. Era tudo tão ameaçador, as pessoas pareciam tão monstruosas, que tive a sensação perfeita de que estava dominado por um frio inexplicável e que quase me paralisava.

O beco fazia ziguezagues e depois de abria em muitas vielas acanhadas. Somente então percebi: estava perdido, andara tanto que não tinha noção de como sair, fugir seria o termo certo, daquela situação.

Mas continuei seguindo a velha, que afinal chegou à sua casa. Feita em madeira e taipa, folhas de zinco e papelão era na verdade um refúgio, um buraco de morar. Percebi, olhando por uma janela lateral: ali se amontoavam a velha e umas cinco ou seis crianças molambentas.

Quando ela entrou ergueu o saco numa espécie de gesto triunfal e as crianças gritaram “êêêêêêêêê!!!!!”, festejando aquela chegada. Depois disso o que vi e vou contar aconteceu muito depressa: a velha meteu a mão dentro do saco e dali retirou um gato que miava enlouquecidamente. A velha bateu mão de uma faca que estava sobre uma mesa, decapitou o animal, tirou as vísceras, esfolou a pobre vítima e jogou o bicho direto numa panela que pôs a ferver.

Eu estava petrificado. De repente ela virou-se para mim e disse: “Eu sabia de você o tempo todo. Era isso o que você queria saber, não era? O mistério do Beco da Mucura? Pois já sabe, rapazinho: o mistério daqui é fome. É servido?”

Disse isso, chamou as crianças e todos partiram para cima de mim. Nem é preciso dizer que fugi correndo como um louco. Depois de horas de desespero em vielas, becos e enganchos de todos os tipos vi-me afinal fora do Beco da Mucura. Afinal cheguei a minha casa.

Dia seguinte contei aos meus amigos a história toda, e disse: “A feitiçaria da Mucura é fome.” E, ainda hoje, em todo o Brasil, é assim: nossa feitiçaria é a fome.