sábado, 28 de janeiro de 2006

Um sax para a lua

Durante o Governo Tarcísio Maia o poeta Sanderson Negreiros foi nomeado para a Secretaria de Assuntos Extraordinários. Sanderson, também jornalista de grande sensibilidade, iria cumprir uma missão: colocar o Governador em contato com o povo e com as gentes simples, uma vez que Tarcísio, cultor de um comportamento discreto ressentia-se desse tipo de convivência.

Sanderson, logo que assumiu o cargo, criou o que haveria de ser chamado de "Encontros com o povo", uma maneira simples e eficaz de cumprir com o seu projeto: TM, como o Governadors era chamado nas manchetes, às comunidades humildes. Ali, Tarcísio inspecionaria obras, falaria com os homens, com as donas de casa, com as crianças.

Um desses primeiros encontros ocorreu em Mãe Luíza. Foi tudo às mil maravilhas. Tarcísio, feliz, apertava a mão de um e de outro, ouvia reclamos, tomava providências na hora. Depois, os encontros foram estendidos ao interior. Então, numa bela manhã de sábado, Tarcísio seguiu a Carnaúba dos Dantas, onde faria a inauguração de uma estradinha que ligava o pequeno município a uma grande rodovia.

Eu viajava num carro da assessoria de imprensa, colocado à disposição dos jornalistas. Eu era da Tribuna do Norte e Dermi Azevedo representava o Diário de Natal. O carro do governador seguia a exatíssimos 80 quilômetros por hora, velocidade máxima então permitida . Antônio Melo, assessor de imprensa, comentou conosco: “Vejam bem, o Governador não permite que se corra a mais.”

Chegamos afinal à cidade, que à época, sequer dispunha de hotel. O prefeito cedeu sua casa ao Governador e comitiva. À noite, assistimos a um literalmente grandioso espetáculo na igreja do lugar: um coro de vozes femininas entoava músicas sacras, compostas e regidas por ninguém menos que o maestro Felinto Lúcio, enquanto a missa prosseguia.

Eu não havia notado o coral, até ser envolvido por aquele som, ao mesmo tempo arrebatador e singelo, supremo e sublime. Felinto regia como que tomado pelas mãos de Deus. A música fluía de si, e refulgiava na igrejinha iluminada. Uma vigorosa alegria da fé se espalhava pela noite do sertão.Terminada a missa, uma quermesse aguardava o Governador, centro de todas as atenções. Tarcísio, frugal, retirou-se cedo da festa.

Acompanhamos o Governador. E ficamos, eu e Dermi, na sala principal da casa, conversando. De repente, em meio a um luar desse tamanho, ouvimos música: era um sax, acompanhado pelo suave rufar de um tambor. Eram dois músicos, de uma banda vinda de uma cidade paraibana para uma retreta em Carnaúba dos Dantas. Paramos a conversa para ouvir em silêncio.

Fardados, o saxofonista e o homem da caixa caminhavam à luz fria da lua. Um vento tímido palmilhava a rua, em respeitoso movimento aéreo. À frente, o instrumento tocava uma música calma, tão calma e tão tenra como o orvalho que começava a chegar às flores do campo. Fiquei parado, melhor paralisado à janela, olhos cravados na cena.

Tocavam Royal Cinema, composta por Tonheca Dantas, irmão do maestro que, fala-se, teria composiões suas tocadas até na Capela Sistina, Vaticano. Na verdade, tocavam o sentimento da humanidade, compassados à presença profunda do luar tão branco. E foram passando, passando, passando, deixando atrás de si a música e logo após ela o silêncio da cidade que dormia ninada pelos dons dos que estão em paz.


Carnaúba dos Dantas. Quando um dia eu voltar, quero encontrar de novo aquela música. Sei que ela está me esperando, oculta em alguma esquina, quem sabe escondida em alguma longa dobra do tempo, tocando em surdina para o sertão ouvir.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

O terror como espetáculo

"A beleza é uma
forma de genialidade."
(Oscar Wilde)

Tanto quanto produzir efeitos danosos, material e humanamente falando, os atos de terrorismo têm por objetivo funcionar como discurso, amplificado e reproduzido pela mídia. Daí porque o 11 de setembro de 2001, o atentato ao metrô de Madri, as explosões de homens-bomba em Israel. A lista seria enorme. Para o terrorista, é preciso que o fato literalmente exploda na TV, na manchete jornalística, no visor da Internet, a fim de que o atentado esteja plenamente consumado. Sem a publicidade, o efeito rumoroso da bomba inexistiria. O terror, para si e para os outros, é a mais terrível forma de espetáculo midiático.

É preciso que o ato obtenha o efeito social maior que é exatamente esse: aterrorizar. É preciso levar pânico, incerteza, temor, insegurança, expectativa angustiante a respeito de quando haverá uma nova e insidiosa agressão. E mais: agressão que atingirá inocentes, pessoas que seguem seu cotidiano, alguém que apenas vai passando e morre pela explosão de uma bomba. O terror precisa dizer: eu não tenho medidas, não tenho limites éticos, compaixão ou racionalidade.

E o jornalismo diz: eu preciso informar, as pessoas têm o direito de saber o que está se passando. Assim, firma-se um conjunto comunicacional de, literalmente, alta potência: o atentado e a sua apresentação via meios de comunicação de massa. Quando chegamos a esse aspecto, vale uma reflexão, uma vez que os efeitos perversos do terrorismo se expandem exatamente pelo jornalismo quando este, na missão de informar, termina servindo de haste complementar ao atentado.


E o pior é que não há como calar. É preciso anunciar o atentado. O grito da imprensa, mesmo funcionando, segundo a ótica terrorista, como sinete de que novos gestos brutais virão, é também a denúncia da violência como instrumento político traiçoeiro e cruel.
A mídia, hoje, assumiu um papel de relativa centralidade nos processos sociais, a ponto de incentivar o surgimento ou cancelamento de atos de repercussão nos mais diversos campos. Os constantes atos terroristas são uma prova disso. Por outro lado, quando o presidente George W. Bush saiu de seu imobilismo ante a tragédia dos moradores de Nova Orleans, negros em sua maioria, terminou por cancelar sua omissão, ante as reprecussões negativas.
Sabedores de que o jornalismo funciona, transversalmente, como mais uma peça no encaixe de seus planos, os terroristas se articulam a fim de tirar proveito.
O que foi o 11 de setembro de 2001, senão um grande discurso? O discurso da força e um discurso de mídia. Ficou dito naquela data que os Estados Unidos não são invioláveis, ficou claro que é possível atacar a maior potência do planeta em seu próprio território.
As torres representam o capitalismo, o Pentágono o poderio militar e a Casa Branca o sentimento de pátria, a ofensa à home land. Nada disso foi por acaso. E nada será por acaso, quando de novos atentados, como vemos diariamente no Iraque.
No Oriente Médio, a eleição de radicais islâmicos tem trazido expectativas negativas
quanto ao relacionamento da Autoridade Nacional Palestina com Israel, que se recusa e conviver com um governo que classifica como acolhedor de terroristas.
De outra parte, não há como o jornalismo silenciar, pois o silêncio terminaria colaborando com o terror.

Na verdade, estamos falando de uma realidade complexa, de muitas faces e outras tantas interligações. O jornalismo não é um dado de mundo isolado do mundo, como uma casinha lá nos mais distantes sertões. O jornalismo é parte de um intricado processo social e, como tem por missão relatar o mundo, acaba sendo absorvido pelos fatos que re-trata, como num doloroso e contínuo moto perpétuo.







quinta-feira, 26 de janeiro de 2006

Cascudo e o lobisomem

"Isso é bom."
(Palavras do filosófo Immanuel Kant, pouco antes de morrer)

Uma das coisas que mais gostava de fazer, quando repórter da editoria de Geral, era entrevistar Luís da Câmara Cascudo, o Mestre Luís da Câmara Cascudo. Dali, de sua casa na grande subida da Junqueira Ayres, o Professor via o Potengi amado e descortinava todo um mundo de lendas, mistérios, cantigas e danças, credos e medos que o Homem tem guardado dentro de si.

Certa vez, pautado para entrevistar o Professor, terminamos falando exatamente sobre lendas e crendices populares. As coisas do povo, a fé do povo, o medo irracional que nos acompanha a todos e se aflora nos momentos de tensão ou insegurança.

Ele me falou do saci-pererê, disse que o molequinho, em tempos outros, fizera muito medo a muitos e comparou essas épocas passadas com o tempo em que a entrevista transcorria (anos 70) e lembrou: o medo do saci, se transformara no medo da perda do emprego, no terror da inflação que, à época, roía o país.

Explicou o Mestre que o medo persiste, somente se apresenta sob formas variadas, dependendo do estágio em que se encontre uma certa sociedade. E vieram outras lendas, a caipora, o bicho-papão, a mãe d’água, a boitatá, o lobisomem, ah, o lobisomem.

Sobre a boitatá - me lembro como se fosse hoje - ele comentou: “ Bicho grande, cobrona que brilha de noite, iluminada toda pela luz dos olhos dos bichos que já comeu. Os olhos ficam brilhando dentro da cobra, meu filho...E disso o povo tinha medo, nisso o povo acreditava.” E completou: “Hoje, a boitatá é a inflação”, e deu uma de suas gargalhadas, todo ele envolto na fumaça do charuto.

Sentado em sua cadeira de espaldar alto, largos apoios para os braços, o Professor foi servido de água por Dona Dhália, sua mulher, virou-se para mim e disse: “Já estou quase mandando você baixar em outro terreiro” (era com essa expressão que ele gaiatamente expulsava seus entrevistadores). E disparou de letra: “O que mais você quer saber?”

Respondi em cima: “Professor, o senhor tem medo de lobisomem?” Sorrindo, após mais um fumarento aspirar do charuto, respondeu e sua voz tinha um tom sombrio, pesado sortilégio de quem sabe de tudo:

“Não, meu filho, não. Aqui dentro desta casa, sentado em minha cadeira, nesta cidade do Natal, sob a proteção das luzes que nos cercam, digo a você que não. Mas no sertão, numa noite de lua, numa sexta-feira aziaga, a cruviana me rondando, sim. Numa hora dessas meu filho, eu tenho medo de lobisomem. E agora, vá baixar noutro terreiro.”

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

A casa da noite eterna

“A mão que afaga é a
mesma que apedreja.”
(Augusto dos Anjos)

Em crônica anterior contei como um maníaco, José Vilarim Neto, quase extermina toda uma família. Durante um acesso de desequilíbrio matou duas irmãs, a avó destas e uma empregadinha grávida. Praticou necrofilia com um dos corpos, cavou um grande buraco no quintal da Granja Capim Macio, onde ocorreram os crimes, e depois esperou para matar a mãe da família, a alemã Ruth Looman e a sua filha mais nova. Ela e a menina conseguiram sobreviver, após brutal luta da mulher com o Monstro de Capim Macio, como ele então ficou conhecido.

Se você rolar a página, logo abaixo encontrará a primeira crônica.

Hoje, contarei como, cerca de 20 anos após os crimes, voltei ao local para uma nova matéria, numa nova tragédia, ocorrida ali, na Granja Capim Macio, um local habitado pela dor.
Fazendo uma viagem no tempo, vamos retroceder: eram seis horas da manhã de um dia entre janeiro a março de 1975, quando a Kombi do Diário esbarrou à minha porta, com a buzina aos berros. De dentro do carro saltou o magérrimo, capetíssimo, elétrico fotógrafo Paulo Saulo, cuja máquina há muito parou de bater.


“Barreto, vamos lá em Capim Macio, que mataram gente como o diabo” , foi logo avisando. Detalhe: eu tinha, no máximo, cinco meses de jornalismo e a matéria era muito difícil. Requeria: frieza para ver cenas de sangue, calma para anotar os dados, fontes na polícia, habilidade para entrevistar – sem chocar – os familiares sofridos e revoltados, faro para captar coisas que os outros jornalistass não estivessem vendo e, afinal, rapidez para fazer tudo isso, voltar à redação e produzir o melhor texto possível. E essa prática eu não tinha.

Em cinco meses de jornal você não desenvolveu ainda todas essas qualidades, que somente se aperfeiçoam com o passar do tempo. O jornalista Cassiano Arruda me deu umas instruções, dizendo que a matéria deveria ser romanceada, ou seja: evitar o jargão típico do noticiário, a notícia seca, concisa, optando-se por um tratamento tipo história, com começo, meio e fim. Esse artifício permite captar toda a emoção dos fatos e dar ao leitor a sensação de visualizar a cena. É técnica eminentemente literária, exige prática. E essa prática eu também não tinha.
Eu outras palavras: eu estava perdido.


Depois de falar com Cassiano, na redação, meti-me na Kombi e fui até a cena dos crimes. Vi o buraco onde Vilarim havia jogado os corpos sofridos de suas vítimas, vi o rifle de cano partido por Ruth, na luta grotesca. Senti o sofrimento da família e, ao dar-me conta de mim, estava completamente desorientado: como eu ficava mais na redação e o repórter Pepe dos Santos fazia campo, eu não tinha fontes policiais e isso era suficiente para prejudicar a coleta de dados.

Piorando a situação: ninguém da família para falar. Aí, dei sorte: ao encostar-me ao lado da porta, duas senhoras, certamente muito amigas da família, conversavam a respeito dos crimes. E não é que elas sabiam de toda a história, até mesmo com detalhes? Foi só acalmar os nervos e anotar, silenciosamente, todo o drama, relatado na crônica anterior e sintetizado na abertura deste texto. Pouco depois um delegado deu uma entrevista coletiva e confirmou o que eu havia anotado.

Vinte anos depois
O tempo passou, eu deixei o Diário, cumpri outras missões. Mas, nos caminhos e descaminhos da vida, eis-me de volta ao Diário, cerca de 20 anos depois. E não mais como homem de polícia, mas editor do noticiário de Cidade. E um dia, não é que ouço o mesmo Pepe dos Santos dizer que, na casa onde fora a Granja Capim Macio tinham havido mais dois crimes?

Os crimes, conhecidos no noticiário como “O crime do pé-de-lã”, tinham acontecido há tempos, bem antes do meu retorno ao Diário, mas a descoberta de que foram na mesma granja eram o detalhe de valor, o lance de qualidade da matéria, o rastro de sangue se espalhando pelo tempo.
Pepe estava indo para o local. E aí me meti na conversa: “Espere, Pepe. O repórter dessa matéria sou eu. Vamos voltar à granja, para ver como ficou, qual o clima que existe por lá.”


Fomos.

Chegamos.
Mas, aí, as coisas já estavam bem diferentes: Capim Macio já não mais era o bairro silvestre de há 20 anos. Ao redor da casa outras casas, e ruas, e becos, e pessoas passando. Nada mais da bela granja, uma casa aprazível, preguiçosa, que convidava a uma convenção de redes, brisas e luar. Não havia mais a sensação de se estar entrando num pequeno bosque, para se chegar a uma casinha, lá longe, escondida. Assim era a Granja Capim Macio.

A casa fora destruída e em seu lugar existia uma construção de arquitetura medíocre, tijolo por tijolo, a mísera estética da gravidade. Só. De modo algum reconheci a granja, mas, Pepe, sim: “É aqui mesmo”, garantiu. Pensamos em entrar, mas tememos que houvesse cães. Criamos coragem, entramos. Passo a passo, esperando o suposto e temido ataque. Mas não havia cães. Encontramos na casa apenas uma solidão que falava através de dobradiças que rangiam. Um vento frio cortava salas e o corredor. O chão parecia sofrer, ao ser pisado. Era como que um processo de sufocação, um clima de abandono, o abandono dos acorrentados.

Ali, naquela casa, havia morado um casal. Isso, anos depois da tragédia de Ruth e Vilarim. Resumindo o caso, o segundo caso, foi assim: o marido era trabalhador do petróleo e descobriu que em suas ausências era traído pela mulher. Um dia fez que ia sair mas não foi, voltou de surpresa à casa, flagrou e trucidou a mulher e o amante em meio a grande luta. Sangue, muito sangue. Era o destino daquela casa: dor, sofrimento, gritos, gritos na noite eterna de tudo o que não compreendemos.

Fiz minha anotações, agora já tão senhor dos fatos, preparado, bem diferente do repórter de há 20 anos atrás, tonto, sem uma só fonte policial. Eu disse: “Vamos embora? Já acabei.” Pepe concordou, com um sinal de cabeça. Os registros que eu fizera descreviam a atmosfera, o ambiente, a alma da casa, sua essência acabrunhada. Não havia personagens, somente a solidão e o silêncio ajudariam a compor o texto... O gancho da matéria era a coincidência de tantos crimes num mesmo lugar. Dei por encerrado o trabalho e fomos embora.

Quando saímos, bati o portão da rua com força, como quem quer deixar para trás um passado que não vale a pena. Caminhava para a Kombi, quando tive a impressão de ter ouvido, longe, baixinho, uma gargalhada. Mas, sabe?, acho que foi só impressão... Espero...