sábado, 8 de julho de 2023

 "Cidadões, vocês me ajudem..."

 Por Emanoel Barreto

O cego pegou de sua sanfona e começou um cantar tão triste. O rouco instrumento, tão velho e tão puído parecia sentir tanto o cantor e sua lástima que guinchava surrados sons como um alarma bruto e sofrido. A alma da sanfona, enferrujada em tantas latumias grunhia alto o que se passava no âmago de sua vida de instrumento humilde e troncho.

 O cego, óculos escuros, como convém a todo cego, parecia ver dentro de si a escuridão que os óculos lhe impingiam. Mas não já tinha ele a sua própria escuridão? Por que os óculos? Para escurecer dos outros que era cego? 

É que os cegos - por algum estranho motivo - procuram esconder com escuridão a escuridão em que tanto já vivem. São coisas, coisas humanas e bem nossas.

 Eu observava esse cego quase todos os dias, enquanto esperava o ônibus na rodoviária velha, na Ribeira, parte antiga de Natal. Muitas vezes fiz isso de propósito: deixava o carro em casa para estar em contato com as coisas do povo, os pequenos dramas do cotidiano, o espetáculo de que eu participava quando corria para a portinha apertada do coletivo, na tentativa de não perder a vez. Essas minúsculas tragédias sempre repicam em minhas lembranças.

 Pois bem: o cego parou sua canção e cessou o urro da sanfona e disse em voz alta: "Cidadões, vocês me ajudem. Quem puder que me ajude. Perdi a vista, cidadões, e hoje me vejo nessas condições. Se os cidadões puderem... que me ajudem..."

 Assisti a essa cena muitas e muitas vezes. E muitos cidadões, condoídos e emocionados, reunidos na minúscula solenidade da esmola contribuíam com o óbolo precioso e pobre ao pobre que lhes estendia a mão.

 Hoje lembrei-me do cego. Que como pobre ficava ali a cumprir a sina dos pobres que é o ato displicente de ser esquecidos. E às vezes - só às vezes -, virar lembrança passageira como passageiros éramos nós na rodoviária: o cego, eu e os todos que estavam por lá. De alguma maneira cegos todos nós.

 Passamos por lá, o cego e eu. Passamos na cegueira da vida o cego e eu. Assim, chego a uma conclusão: "Cidadões, eu também sou cego. Minha rodoviária é este espaço, minha sanfona são essas letras. Mas, escuto algo; sim, sim, eu ouço música: será que você não está também tocando uma sanfona na sua rodoviária? Parece que sim, parece que sim..."