quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Coisas terríveis e palavras fortes

A conversa de um velho amigo, a construção de um navio e o silêncio dos mistérios

Hoje encontrei-me com um amigo. Um amigo muito velho. Talvez tenha a idade de uma sequoia. Aliás, meus amigos são todos muito velhos, antigos homens-cedro que às vezes me caminham para uma conversa, algo assim. Às vezes nem falam. Pois tão velhos somos que já conhecemos todos os nossos assuntos. Os nossos e os de outras partes, países distantes, terras onde, como acá, também se planejam horrores e se os praticam com gênio de milagre terroroso. Assim sabemos que a rigor hoje já não há mais novidades. Só um lento e clamoroso langor da vida que se repete a cada reedição de um desastre, ao retorno de um furacão ou a morticínio idêntico ao seu predecessor.

Digo que sou velho e provo: por exemplo, fui menino, jovem e velho com Ramsés I e Ramsés II. Fui também menino com Marco Antônio e muito o aconselhei a não se meter com Cleópatra. Brinquei com Semíramis e, naquele tempo, como era arquiteto fui o principal a ajudá-la a erguer os seus jardins suspensos, aquela maravilha que passeia os sonhos de quem com ela gosta de sonhar.

Naquele tempo era assim: um homem podia nascer, crescer e viver ao lado de pessoas que seriam da sua e da próxima geração. Mistério a que jamais busquei abalançar-me e desvendar. É para isso que servem os mistérios: para funcionar como um leve devaneio, uma pluma, uma suave névoa na qual entramos mas a que não desejamos, de forma nenhuma solver, pois no íntimo sabemos que o mistério é uma verdade revelada mas não dita por que é ou para que é. E é aí que reside a grandeza do mistério: ser arcano; a ignorância que ilumina a perplexidade.

Mas hoje, suspeito, não há mais mistérios. Nada há de metafísico ou filosófico, aqui no sentido da ignorância revelada dos mistérios. Está tudo cibernético demais, racional demais, explicado demais para que haja mistérios a desafiar a inconclusão que deles queremos chegar. Minto: há mistérios sim, mas somente para quem deseje ser um pouco orvalho, um pouco manhã fria, um pouco silêncio, um pouco passos silenciosos numa casa habitada apenas por um casal. Aí o mistério ainda vive; escondido, guardado entre antigos, avoengos pertences a que os olhos do mundo não deve ter acesso. O mistério pertence a fantasmas muito queridos, sei disso.

Mas dizia que hoje encontrara um velho amigo. Homem acomodado - aqui no sentido espanhol do termo, quer dizer, de classe média - já criou os filhos e respira calmamente em sua vivenda ao lado da mulher. Uma vida calma como a sombra de um jardim por onde não passa ninguém. Aproximando-se, falou-me que agora quando já é um homem remoto e nada mais tem a temer pois nada tem o que perder a não ser o seu resto de vida, tomou grave decisão: construirá navio, enorme nau de muitas velas e pelo menos oitenta peças-de-fogo e se fará aos mares.

Garantiu que percorrerá o Atlântico e o Pacífico, o Índico, o Glacial Ártico e o Glacial Antártico. E descobrirá, assegurou, um novo oceano. Ele entende que o Homem ainda não descobriu todo o planeta, coisa em que com ele concordo plenamente. Revelou-me, falando baixinho como uma pequena brisa, que esse oceano será importantíssimo para quando os povos forem fugir espavoridos dos desastres climáticos que se avizinham com a destruição lenta, programada e assassina do Planeta.

Além disso, detalhou, enquanto seu navio não fica pronto em estaleiro muito bem escondido em alguma baía ou porto seguro, anunciará desordens e grandes desgraças e fará vaticínios incontestes. Disse que proclamará sedições e grandes movimentos e inaugurará uma nova religião. Qual, não sabe ainda. Mas que ela virá, virá, tranquilizou-me. 

Mais que isso, vai exortar o povo, o povo do mundo todo, a que comece a caminhar pelas ruas munido de urinóis e que esses urinóis sejam despejados diariamente em todos os Parlamentos e que os grandes senhores e senhoras desses parlamentos sejam obrigados a fazer suas abluções matinais com todo o conteúdo que lhes for destinado. E me disse que isso é algo muito bom, no que concordei plenamente. 

Asseverou que vai ruminar horrores e gritar palavras que ninguém compreenderá. E tará o poder de conjurar raios e coriscos, choques e grandes explosões oriundos das forças dos elementos. Enquanto assim falava os olhos do meu amigo injetavam-se de algo que se assemelhava ao que conhecemos por ódio, rancor ou vingança. Perdão: acho que estou sendo injusto: indignação era o que eu via naquele olhar irado e faiscante. Indignação justa, golpe fendente de espada.

Depois, acalmou-se. E, virando-se para mim, apascentou a minha própria indignação: "Amigo, não vamos nos apressar. Afinal, tudo isso de que acabo de lhe falar é apenas mistério. Um mistério que só uns poucos, como nós loucos e velhos, podem intuir." E saiu em direção à sua casa; uma casa feita de sombra de um jardim por onde não passa ninguém. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Uma história no sertão

"Quem é aquele rapaz? Será um africano?" *
Emanoel Barreto

Lembranças - Sertão central do Rio Grande do Norte. 1961. Encantado com a paisagem eriçada e rude, eu seguia montado no passo tardo de um cavalo manso, escolhido com cuidado pelo velho Patrocínio, tio da Minha Mãe. Ele não queria que o sobrinho praciano sofresse os percalços de montar um cavalo de vaqueiro. Chamou-me e disse: "Pode montar sem medo. Esse é Soberano. Vai para onde você mandar."

E lá fui eu, percorrendo os caminhinhos, sendas abertas a facão no meio da caatinga. Coisa de quatro da tarde. O vento era só pra dizer que tinha. O vento do sertão anda abraçado com o calor, para quem não sabe. Eu me sentia um verdadeiro caubói. Durango Kid. E imaginava, em meio aos galhos secos, espinhos e cro'as de frade, cardeiros e macambiras, existirem bandidos à espreita, prontos para ser acertados pelos meus tiros de infância.

Soberano andou, andou e, lá adiante, vi uma figura que vinha em minha direção. Era um velho. Negro, alto, o cabelo branquinho, a barba também. Lembrava a visão clássica do Pai Tomás. Puxei as rédeas de Soberano, quando o homem fez sinal como a mão. Queria que eu parasse. Aproximou-se e perguntou: "O minino é arguma coisa de Seu Patrocínio?" Respondi que sim. Ele disse: "Vim aqui pra falá cum ele, um negoço de umas vaca qui quero vendê."

Eu apontei, lá na poeira da distância, o rumo da casa-grande. E ele: "Então, vô pra lá."

E eu: "Vamo, que eu vou com o senhor." E saímos. Soberano mais parecia uma muralha, perto do cavalinho dele. No caminho, contou-me coisas de suas viagens, do tempo em que vivia longe daquelas terras.

Contou, como quem conta uma epopéia, um épico, uma canção de gesta. Os olhos da minha emoção estavam arregalados, pasmos com a vida daquele sertanejo. Por um momento, quase vi a meu lado Amadis de Gaula ou o próprio Aquiles, quem sabe Orlando Furioso. Aquele homem era feito de todas as lendas que povoavam meu imaginário infantil.

E ao final, já chegando à casa de Tio Patrocínio, ele revelou: "Minino, um dia ainda vô m'embora. Vou viajá, andá pelo mundo de novo. E aí, quando eu vortá, acho qui as pessoa vai perguntá: 'Quem é esse rapaz? Será um africano?'"

Aquela conversa, aquela figura, hoje fazem parte de lembranças que ficam guardadas em meio a memórias antigas, escondidas todas em alguma caverna de Polifemo, território traçado no mapa mais meu.

E hoje, às vezes me pergunto: "E se um dia eu viajar? Também quero viajar. Vou viajar. E espero que quando eu voltar as pessoas perguntem: quem será aquele rapaz? Será um africano?
*O homem da foto é incrivelmente parecido com o personagem desta crônica.

ZOORÓSCOPO

HIENA - Boas previsões para você, hiniana ou hieniano, pelo menos na fortuna. Ganhará rios de dinheiro, não será punido e poderá, sempre, se apresentar como pessoa respeitável. No amor, entretanto, as coisas não irão tão bem. Pelo seu caráter truculento e egoísta, somente poderá fazer par com os de Barata ou Tubarão. Mas, aí, ambos sairão perdendo, pois um tentará engolir o outro. No mais, vá em frente, que a estrada é larga e o caminho é bom.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A minha tipografia



A história do Grão-Louco do Almofariz
Emanoel Barreto

Nobre Senhor,
Sede bem-vindo.

Não sei o que vos trouxe aqui ou se precisais dos meus simples labores visto que os tempos são outros e ambientes como este estão em desuso ou simplesmente desapareceram. O ambiente modesto onde estais , devo informar, é uma tipografia; como já disse, superada e antiga. Era a acá mesmo que tínheis vindo?

Ao que vejo sim: era a acá mesmo que tínheis vindo. Entrai, pois. Sou, de profissão, tipógrafo. Aqui ainda trabalho com papel feito de trapos, sendo este o melhor que existe digo de passagem e com certo afã. Esta profissão se me foi herdada d'um velho monge, que há muito morreu, e que em seu monastério mantinha uma prensa d'onde tudo aprendi .

Mas, vinde, vinde. Vede os meus tesouros. Desculpai, a iluminação é baça; é que ainda uso velas, velas de sebo, pois este ambiente é antigo e assim o exige. É que os meus fantasmas, nobres impressores, seres pertinentes, jamais aceitaram que assim não o fosse.

Mas, eis os meus tesouros: as minhas caixas, aprumadas no cavalete. Caixa alta e caixa baixa e seus respectivos caixotins. Letras maíusculas, caixa alta; minúsculas, caixa baixa. Letras lapidadas pelos melhores artesãos de França. Letras das mais diversas e trabalhadas famílias tipográficas. Ricas, belas, expressivas. Muitas deles imprimiram Hugo, Balzac e Zola, tenho certeza. Quanta honra senhor, quanta honra, não é mesmo?

Mas, quereis algo? Alguma impressão a essa hora? Não? Apenas conhecer o que faço e como vivo? Dir-vos-ei: moro aqui, aqui vivo, aqui trabalho. Ali, minha enxerga, donde me alcanço estirado, altas horas da noite. Mais adiante, um velho e pequeno fogão. Ao lado da cama é onde guardo os meus andrajos.

E o que imprimo? Tolices, senhor, tolices. Como em tempos quase já imemoriais lanço ao papel corantos, avisos, gazetas. Neles conto histórias fabulosas: o dragão que surgiu do mar e devorou toda uma aldeia pesqueira; flamejante mulhar que voa em vassoura e atormenta alguma vila perdida em confins; batalhas de grandes cavaleiros, histórias de damas tão gentis, versos de menestréis e viandantes, contos para adormecer crianças e coisas de monstros horrendos. De tudo o que o humano engenho inventivo já imaginou aqui nasce na força destas letras.

Se alguém ainda os compra? Não, senhor. Ninguém. Ninguém compra o que escrevo. E assim depois de andar o dia inteiro sem ganhar sequer um só ceitil, retorno ao meu tugúrio. Antes porém, de voltar, ando por arrabaldes deserdados. Ali encontro quem me leia. Aproximam-se de mim os desprimorosos e os desvalidos, os aleijados, os tronchos, os alienados e os sem-destino, as súcias e os mandriões. Biltres e velhacos são o meu público.

A eles entrego de graça o que escrevo. E formam-se implausíveis clubes de leitura: cada um que queira ler mais alto e com entonações as estórias que redijo. E como em suas vozes noturnas tudo aquilo se torna galante e de bom feitio. Declamam e empostam os dizeres. Acendemos fogueiras, discutimos as lendas e os mitos, acreditamos em tudo o que escrevi e para nós está tudo muito bom; e após todo o falariço nos despedimos com mesuras e até amanhãs.

Volto então feliz e realizado. Chego, abro a forte porta que protege esta cave e então me tranco. Aqui vivo um silêncio antigo, pesado; silêncio que abraça e protege as coisas que ainda vou escrever.

Como?, o senhor quer um texto? Vou já, senhor, já vou compor. Demora um pouco, pois cada letra é retirada ao seu ninho, ao seu caixotim, para vir repousar na rama. Vou escrever-vos uma hstória: a história do Grão-Louco do Almofariz. O que isso quer dizer? Não, não sei: a ideia vai-me brotando aos poucos, ganha vida e dirige meus dedos. Confiai. Ficará boa a história, muito boa. Como disse, demora um pouco. Meus dedos já não têm tanta agilidade. Enquanto trabalho podeis achegar-vos ao catre e dormir. Quando acordardes, estará pronta a história. Boa noite, senhor. Boa noite. Grato por terdes vindo... Vou começar a escrever...