A conversa de um velho amigo, a construção de um navio e o silêncio dos mistérios
Hoje encontrei-me
com um amigo. Um amigo muito velho. Talvez tenha a idade de uma
sequoia. Aliás, meus amigos são todos muito velhos, antigos homens-cedro
que às vezes me caminham para uma conversa, algo assim. Às vezes nem
falam. Pois tão velhos somos que já conhecemos todos os nossos assuntos.
Os nossos e os de outras partes, países distantes, terras onde, como
acá, também se planejam horrores e se os praticam com gênio de milagre
terroroso. Assim sabemos que a rigor hoje já não há mais novidades. Só
um lento e clamoroso langor da vida que se repete a cada reedição de um
desastre, ao retorno de um furacão ou a morticínio idêntico ao seu
predecessor.
Digo
que sou velho e provo: por exemplo, fui menino, jovem e velho com Ramsés
I e Ramsés II. Fui também menino com Marco Antônio e muito o aconselhei
a não se meter com Cleópatra. Brinquei com Semíramis e, naquele tempo,
como era arquiteto fui o principal a ajudá-la a erguer os seus jardins
suspensos, aquela maravilha que passeia os sonhos de quem com ela gosta
de sonhar.
Naquele tempo era assim: um homem
podia nascer, crescer e viver ao lado de pessoas que seriam da sua e da
próxima geração. Mistério a que jamais busquei abalançar-me e
desvendar. É para isso que servem os mistérios: para funcionar como um
leve devaneio, uma pluma, uma suave névoa na qual entramos mas a que não
desejamos, de forma nenhuma solver, pois no íntimo sabemos que o
mistério é uma verdade revelada mas não dita por que é ou para que é. E é
aí que reside a grandeza do mistério: ser arcano; a ignorância que
ilumina a perplexidade.
Mas
hoje, suspeito, não há mais mistérios. Nada há de metafísico ou
filosófico, aqui no sentido da ignorância revelada dos mistérios. Está
tudo cibernético demais, racional demais, explicado demais para que haja
mistérios a desafiar a inconclusão que deles queremos chegar. Minto: há
mistérios sim, mas somente para quem deseje ser um pouco orvalho, um
pouco manhã fria, um pouco silêncio, um pouco passos silenciosos numa
casa habitada apenas por um casal. Aí o mistério ainda vive; escondido,
guardado entre antigos, avoengos pertences a que os olhos do mundo não
deve ter acesso. O mistério pertence a fantasmas muito queridos, sei
disso.
Mas dizia
que hoje encontrara um velho amigo. Homem acomodado - aqui no sentido
espanhol do termo, quer dizer, de classe média - já criou os filhos e respira calmamente em sua
vivenda ao lado da mulher. Uma vida calma como a sombra de um jardim por
onde não passa ninguém. Aproximando-se, falou-me que agora quando já é
um homem remoto e nada mais tem a temer pois nada tem o que perder a não
ser o seu resto de vida, tomou grave decisão: construirá navio, enorme
nau de muitas velas e pelo menos oitenta peças-de-fogo e se fará aos
mares.
Garantiu
que percorrerá o Atlântico e o Pacífico, o Índico, o Glacial Ártico e o
Glacial Antártico. E descobrirá, assegurou, um novo oceano. Ele entende
que o Homem ainda não descobriu todo o planeta, coisa em que com ele
concordo plenamente. Revelou-me, falando baixinho como uma pequena
brisa, que esse oceano será importantíssimo para quando os povos forem
fugir espavoridos dos desastres climáticos que se avizinham com a
destruição lenta, programada e assassina do Planeta.
Além disso,
detalhou, enquanto seu navio não fica pronto em estaleiro muito bem
escondido em alguma baía ou porto seguro, anunciará desordens e grandes
desgraças e fará vaticínios incontestes. Disse que proclamará sedições e
grandes movimentos e inaugurará uma nova religião. Qual, não sabe ainda.
Mas que ela virá, virá, tranquilizou-me.
Mais
que isso, vai exortar o povo, o povo do mundo todo, a que comece a
caminhar pelas ruas munido de urinóis e que esses urinóis sejam
despejados diariamente em todos os Parlamentos e que os grandes senhores
e senhoras desses parlamentos sejam obrigados a fazer suas abluções
matinais com todo o conteúdo que lhes for destinado. E me disse que isso
é algo muito bom, no que concordei plenamente.
Asseverou que
vai ruminar horrores e gritar palavras que ninguém compreenderá. E tará
o poder de conjurar raios e coriscos, choques e grandes explosões
oriundos das forças dos elementos. Enquanto assim falava os olhos do meu
amigo injetavam-se de algo que se assemelhava ao que conhecemos por
ódio, rancor ou vingança. Perdão: acho que estou sendo injusto:
indignação era o que eu via naquele olhar irado e faiscante. Indignação
justa, golpe fendente de espada.
Depois,
acalmou-se. E, virando-se para mim, apascentou a minha própria
indignação: "Amigo, não vamos nos apressar. Afinal, tudo isso de que
acabo de lhe falar é apenas mistério. Um mistério que só uns poucos,
como nós loucos e velhos, podem intuir." E saiu em direção à sua casa; uma casa
feita de sombra de um jardim por onde não passa ninguém.