terça-feira, 26 de novembro de 2019

"O delegado sou eu!"

Eu o vi duas ou três vezes: bêbado, mirrado, bracinho fino erguido e indicador apontado para o alto, caminhava bradando uma inútil advertência: "O delegado sou eu! O delegado sou eu!" Ninguém contestava, até porque nele ninguém prestava atenção a não ser eu, em minha ingênua curiosidade de menino; não sei se perplexo ou estranhamente fascinado com aquela cena que oscilava entre o ridículo e o comovente eu acompanhava com o olhar aquele homem trôpego e malvestido. Isso aconteceu em algum instante dos anos 1960.

Da minha casa eu o via seguir ladeira abaixo, Rua Princesa Isabel, centro de Natal. Ele passava na calçada do outro lado da rua e seus gestos hoje me lembram um Carlitos torto e anônimo, um brasileiro pobre que se dizia autoridade.

Bem que eu poderia tê-lo presenteado  (meninos, se você não sabe, podem tudo) com uma linda viatura policial que naqueles tempos eram chamadas de "tintureiras", para ele fazer valer sua disposição de Quixote e prender todo mundo. A tintureira seria toda pintada em preto e branco e Delegado poderia cumprir mandados, fazer flagrantes, capturar os maus. 

E mais: eu poderia pedir ajuda aos meus amigos Zorro e Tonto, Billy the Kid, Kit Karson, Roy Rogers, o Fantasma, Búfalo Bill, Águia Negra, Falcão Negro, Daniel Boone, Dom Chicote, Cavaleiro Negro, Kid Colt e, claro, Jerônimo, Aninha e Moleque Saci. Se a coisa ficasse muito feia poderia chamar o Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda e mais: El Cid, o imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França. Athos, Porthos, Aramis e d'Artagnan também poderiam vir.

Eles eram invencíveis, eram meus amigos e jamais se negariam a ajudar a mim e ao Delegado. Eu daria a ele um dos meus revólveres de plástico, quem sabe até mesmo um de metal, o mais bonito, o que disparava espoletas. 

Com essas armas eu mesmo prendi muitos bandidos que habitavam esconderijos imaginários somente conhecidos por mim. Eu tinha até uma estrela de xerife ganha numa promoção da Toddy, premiação chamada Patrulheiros Toddy. Eu era um Patrulheiro Toddy e bem poderia ter ajudado ao Delegado. Mas não fiz nada. Não chamei os caubóis meus amigos, nem os grandes espadachins, não lhe dei a tintureira, não lhe dei meu revólver, não saí galopando a seu lado rua abaixo.  

Nada, nada, nada; somente o vi passar; tão desamparado, maltrapilho e tão bêbado, um pobre brasileiro e se perder na pesada ladeira da Princesa Isabel.
E ele se dizia delegado. Ele só queria respeito. Porque tinha a autoridade de ser povo, pobre e cambaleante.

Após aquele dia nunca mais reencontrei o Delegado. E, acho, somente hoje descobri que ele também era meu amigo, e tão corajoso e firme como Jerônimo ou Zorro. Afinal, eu e o Delegado vivíamos em mundos próximos, universos imaginários, e queríamos ajudar, prendendo bandidos. Naquele tempo, além de querer prender bandidos, eu tinha outra paixão: queria ser arqueólogo, pensava em ir ao Egito e fazer grandes descobertas. Não fui.

Hoje penso no meu amigo Delegado, reduzido a uma réstia de lembranças. E agora me vem, não sem um certo temor e uma fisgada de angústia: acho que quando ergo minha voz nestes textos de internet também estou descendo alguma ladeira e grito como o louco sublime: "O delegado sou eu! O delegado sou eu! O delegado sou eu!"



sexta-feira, 22 de novembro de 2019


A família pobre e sua galinha muito amada

Vi ontem uma cena de patética ternura: uma família pobre caminhava pela Roberto Freire levando consigo alguns bens modestos, certamente parte relevante do seu limitado patrimônio.

A mãe agarrava-se a um enorme e amassado pacote, o pai seguia com uma grande bolsa de lona e a filha, menininha de uns sete anos, abraçava com terna alegria uma galinha. Isso comoveu-me: a atitude da criança e seu bicho mui amado. 

Não tive outra coisa a fazer senão parar o carro e ficar observando aquela singela procissão, humilde manifestação de unidade familiar. Acima de tudo pelo fato da presença da galinha, conduzida pela criança como se fora objeto de extrema relevância ou pessoa muito querida.

Eles foram se afastando, afastando, afastando, até se tornarem toquinhos de gente perdidos nas lonjuras da grande avenida. 

Não sei qual o destino final da galinha; certamente a panela no almoço de domingo. Mas a forma como a menina a segurava, o carinho com que a tratava poderia sugerir que ela teria até mesmo a improvável chance de virar animal de estimação. Torço pela galinha.

Mas a cena trouxe também à minha retina a visão de uma típica família brasileira com seus parcos pertences, suas coisas valiosamente pobres; um nada que vale tão pouco que até uma galinha é coisa a ser levada em conta. E o pior: tudo resultado de trabalho sofrido e mal pago per omnia secula seculorum. 

Aquela família certamente jamais saberá que este repórter, velho e feio, a olhou com intensidade e atenção. E certamente seguirá seus dias vazio abraçando outras galinhas e levando pelas ruas seus surrões cheios de cacarecos e outras miudezas, tudo tão importante e tão despossuído. 

Abraços a esses três desconhecidos. Abraço ao pai e à mãe. Abraços à menininha. Abraço muito especial à galinha – que, benza Deus, vire bicho de estimação e escape da panela.  






quarta-feira, 20 de novembro de 2019


Meus planos para me tornar um grande mendigo

Quando criança eu acreditava sinceramente que os mendigos moravam numa grande cidade, secreta e barulhenta. Uma cidade cheia de ruas onde os mais pobres pediam dinheiro e comida aos que dentre eles tivessem ganho mais esmolas. Os mais desvalidos dentre os desamparados ganhavam seu óbolo e assim todos sobreviviam.

O dinheiro restante era escondido num buraco; à noite, porém, os ricos vinham e roubavam o dinheiro. Um amigo havia me garantido: “Os pobres é que sustentam os ricos; eles só são ricos porque roubam as esmolas dos pobres.” 

Diante de tal revelação pensei em crescer, tornar-me um mendigo notável, ganhar muitas esmolas e alertar a meus desgraçados pares a respeito do roubo dos ricos. Mais: iria construir uma grande casa e ali todos seriam abrigados. Na casa haveria fogueiras em todas as salas para que todos pudessem preparar sua comida. 

Então, para dar andamento e meus magníficos planos, resolvi fazer algo realmente notável, útil e essencial à minha condição de futuro e talentoso pedinte: seguir um esmoleiro, aprender suas artes e preparar-me para o futuro. Animado com a minha incursão fui dormir tão logo chegou o anoitecer.
Quase não dormi à noite, pensando no meu aprendizado; noite que antecedia um sábado. Veio a manhã. Acordei. Rápido como um raio parti para a mesa, tomei o café e escapuli. 

Tive sorte: dois ou três quarteirões depois de minha casa encontrei um mendigo: um tipo de má catadura que me olhou com um olhar de cobra, ameaçador e agudo. Tremi, baixei a vista de forma astuta, ele seguiu seu rumo.
Eu, claro, fui atrás. Acompanhei o sujeito, que tinha uma forma bastante peculiar de obter ajuda: deitava-se no chão e de repente dava enormes saltos. Algumas pessoas fugiam temendo ser atacadas, mas outras paravam e observavam a cena louca. Então, ele sacava do bolso do seu surrado paletó um bilhete e o exibia a quem o observava. 

Batata! Ele obtinha sucesso. As pessoas, aparentemente comovidas, lhe davam moedas e até mesmo notas de razoável valor. Perguntei a um senhor que havia lhe dado dinheiro o que dizia o bilhete; o homem respondeu: “Ele garante que tem uma terrível doença no cérebro e salta quando a dor se torna insuportável. Perdeu o emprego devido e essa doença e precisa do dinheiro para sustentar sua pobre mãe. Fiquei com pena e dei dinheiro.”

O pedinte ganhou notas, moedas e retirou-se. Continuei a segui-lo. Ele rumou a um bairro distante, um bairro aonde eu nunca havia estado. Conclusão lógica: “É aqui que fica a cidade dos mendigos”, festejei intimamente: “Será minha grande descoberta.”

Então resolvi falar com o homem. Precisava confidenciar meus planos de ser um esmoler de grandes qualidades. Nisso, ele correu de repente. Entrou num beco e sumiu. Tive a impressão de ter visto dois soldados da polícia em seu encalço. Com certeza ouvi gritos.

Resolvi que minha aventura deveria terminar ali e caminhei penosamente de volta à minha casa. Confesso que estava meio decepcionado com o meu infame professor, reles vigarista. 

Mas a visão de velhinhas, aleijados e mulheres cheias de filhos pedindo esmolas confirmou minha convicção de que aquelas pessoas precisavam de ajuda. E eu estava decido a ajudar a todos. 

Cheguei afinal à minha casa; quase meio-dia. Fui ao quintal e reuni tudo quanto pude em matéria de galhos secos, pedaços e madeira, carvões perdidos na areia, revistas antigas jogadas ao chão, caixões velhos, ripas e caixas de papelão e arrumei uma grande fogueira. 

Meus pais terminaram notando minhas arrumações e logo fui levado à inquisição familiar: o que era aquilo? Já não bastava brincar de índio e atirar flechas nos passantes da rua, fazer laços de caubói e puxar as outras crianças pelo pescoço como se fossem gado e quebrar pratos e vidros das janelas com as pedras de minha atiradeira?

Expliquei que meus intentos eram bons, ou seja: queria trazer meus pobres para a nossa casa. A fogueira era para fazer a comida delas. E já havia cavado um buraco no quintal, onde eles esconderiam toda noite as esmolas para não ser roubados pelos ricos. 

Todos iriam dormir no chão da casa; de manhã sairiam para pedir esmolas. Eles não iam atrapalhar ninguém na casa. Simples assim.
Meus pais ficaram perplexos. Diante de tal e lamentável projeto minha fogueira foi desfeita em dois tempos e o buraco imediatamente tapado. Mas ainda hoje penso que os pobres devem ter uma casa. E tenho certeza: toda noite os ricos roubam as suas esmolas.  

sexta-feira, 26 de abril de 2019


Minha entrevista com frei Damião, o santo do povo

Creio que foi no ano da graça de 1980 que tive a oportunidade e fui pautado para entrevistar a venerável figura de Frei Damião, o santo do sertão, amado do povo, protegido de Deus e de Nossa Senhora. Vindo da distante cidade de Bozzano, Itália, para cuidar do rebanho de sertanejos, preservar a fé e encaminhar as almas todas para o Céu.

Fui à cidade de Ceará Mirim, pouco mais de 30 minutos de Natal, onde ele se encontrava. Encontrei-o na igreja matriz. Abençoado templo povoado por imagens de santos e de anjos, querubins e serafins. A pequena e cândida figura atendia em confissão a enorme fila de mulheres cobertas por véus e envoltas em doce auréola de rezadeiras, como só as existem no Nordeste. Mulheres suadas de fé.

E eu fiquei olhando para elas. Atentei para suas bocas que fervilhavam baixinho rezas velhas, mistérios sussurrados em uma língua estranha que jamais consegui apreender desde quando, ainda menino, olhava minhas tias fervorosas diante de uma vela e de uma imagem de Nossa Senhora. Deviam ser coisas muito altas, evoladas da inefável religião dos bons, áugúrios de uma vida melhor depois da morte, quem sabe o repouso calmo no regaço da Virgem.

Preste atenção na boca de uma velha rezadeira: é ali que mora a alma, tenho certeza. A minha mente de repórter, todavia, estava preocupada com algo mais urgente e menos devoto: o tempo. Eu tinha hora para voltar à Tribuna do Norte e fazer o meu texto.

Com alguma insistência junto a um auxiliar do beato consegui parar a confissão e ele me atendeu. Confesso, sem trocadilho algum, que nem mesmo sei o que perguntei. Mas, o que mais valia era relatar o encontro dulcíssimo do pastor com o seu rebanho, captar o ambiente angélico, a doçura do olhar do Frei, seus conselhos e penitências passadas àquelas pessoas sacras e pias.

Saí, confesso novamente, com a alma cheia de alguma candura - certamente meu coração de repórter, feio e mau, tocado pelos instantes miríficos. Assim, de volta à redação, encontro com outra figura humana portentosa: Dorian Jorge Freire, diretor de Redação. Católico, minúsculo de tamanho mas enorme em sabedoria e humanismo.

Terminado o meu texto, Dorian, que também tinha grande espírito de humor, contou-me o seguinte: Certa vez, Barreto, Frei Damião estava com suas missões pelos sertões distantes. Fazia sua costumeira pregação contra o pecado, a devassidão e o adultério. Defendia o sacramento do matrimônio e dizia que, sem ser casado, o casal era "como o cachorro e a cachorra, o touro e a vaca." . Advertia também a todos contra o perigo do comunismo vermelho e ateu.

E dizia: "O comunismo é pecado grande, pecado mortal. O comunismo é a besta-fera que vem para desafiar o Evangelho. O comunismo é o perigo até mesmo para as mocinhas." O povo olhava e ouvia tudo, pasmo, temeroso, pronto para fugir, caso o comunismo chegasse a qualquer instante.

 Parecia até que o comunismo estava por ali, pronto para desferir seu bote. Afinal, Frei Damião fez sua última invectica contra o comunismo periculoso e bradou ao povo sertanejo, como se fora um novo Conselheiro: "E então, quereis o comunismo?, e o contrito povo, procissão desvelada e crente, respondeu piedosamente, em coro monumental "Quereis!"